Na
edição de segunda-feira, dia 3 de maio, do Jornal de Hoje, terceiro diário de maior
difusão em Natal (RN), o colunista e publicitário Alex Medeiros
publicou um artigo defendendo a propaganda da concessionária
Via Costeira, produzida pela agência Lúmina e veiculada na edição de 29 de abril
do jornal Tribuna do Norte,
em que o rosto de uma mulher espancada (que é a primeira impressão que
tem quem vê o anúncio, embora ele sustente que a mulher seria
apenas "acidentada") é associado à carroceria amassada
de um carro, e ofendendo de maneira vulgar e gratuita as organizações,
movimentos e instituições que defendem os direitos humanos
e os das mulheres.
Recebemos hoje, terça-feira 4 de maio, esta resposta
de Valéria Pandjiarjian, coordenadora da área regional de
violência do Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher (CLADEM), que com prazer divulgamos
para os leitores de Tecido
Social.
(A)ÉTICA CRIATIVA
ou UMBIGO CORPORATIVISTA
Por
Valéria Pandjiarjian*
É
inegável que a publicidade e a comunicação são campos de grande
fascínio e poder. Comovem, encantam, provocam. Comunicam,
seduzem, iludem. Compram, vendem, lucram. Produzem e reproduzem.
Educam e deseducam. Valoram e desvaloram. Constróem
e destróem.... mas nem sempre desconstróem.
Salvo
belas exceções, ainda estão destituídas de
tarefa mais ousada: o questionamento e a desconstrução
em bases éticas. Desconstrução do inquestionável, do estabelecido
e do intocável, que em geral servem a alguns e
desservem a muitos.
Viva
a liberdade de criação e de expressão, sem dúvida! E poucas
pessoas e grupos têm tanto espaço, domínio
e poder inerentes para expressar e vender sua
idéia quanto as que atuam no campo da publicidade
e dos meios de comunicação, principalmente os de massa.
Tanto até que algumas não usam, abusam desse poder.
Felizmente,
e muito felizmente falando, a reconquista e manutenção da
democracia traz também o irrefutável, imprescindível e
inalienável direito constitucional da "livre expressão
da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação,
independentemente de censura ou licença" (art. 5o., X
CF).
Só
que, para alguns, parece que a liberdade de criação
e expressão pode - e, às vezes, deve - ser exercida
independentemente da ética, bem como dos princípios de
cidadania, igualdade, dignidade da pessoa humana e tantos
outros também constitucionalmente garantidos. Será que
nos faltou constitucionalizar a ética?
É na
esteira desse pensamento - em que vale tudo pela venda de uma
"boa" idéia - que, por vezes, surgem vozes
de pseudo-arautos da liberdade de expressão, quando
alguém, em geral com razão, questiona forma e conteúdo de uma
mensagem veiculada pela mídia e propaganda.
Vale
perguntar: Foi isso que ocorreu com o artigo A Oficina das Patrulhas Ideológicas, na coluna do publicitário
e jornalista Alex Medeiros, publicada em 03/05/04
no diário Jornal de Hoje,
terceiro maior jornal de Natal (RN)?
Trata-se
de um texto em defesa da propaganda de uma concessionária
de automóveis que mostra o rosto todo machucado de uma
mulher com a chamada "Mecânica, funilaria e pintura.
Tá na cara que precisa".
Resumindo
o "irresumível", para não virar pretexto de
que se retirou do contexto. Segundo
frases, parágrafos pitorescos e quase inteiros do
texto:
- "A guerra-santa contra o anúncio já teria
amedrontado" a agência responsável pela campanha,
que "teria prometido nunca mais produzir propagandas
que insultem, agridam ou desrespeitem a dignidade da pessoa
humana".
- "A fogueira da hipocrisia no Brasil anda
produzindo histerias nunca vistas nem nos tempos da ditadura
militar, principalmente depois do advento da postura 'politicamente
correta' inventada por intelectuais esquerdóides que perderam
a causa com a redemocratização nacional"
- O anúncio "... é uma puta sacada e se
fosse criação minha já estaria inscrito em festivais publicitários
e nunca em boletim de ocorrência de delegacias ou mesa
de promotor público".
- Em reação às críticas feitas à propaganda
diz: "O rapaz defensor dos direitos da mulher
nem se manifestou com o anúncio anterior ao da moça, onde
o rosto de um homem também apresenta hematomas e o texto
sugere o serviço de funilaria do anunciante. Só quem não
tem a menor noção de criatividade e linguagem poderia
imaginar que quem deve ir à oficina é a pessoa (humana,
como dizem) e nunca o automóvel que a vítima ocupava".
- "Outra coisa: o rosto não é de uma mulher
espancada e sim acidentada. E por que as entidades feministas
só identificam 'degradação' no anúncio com a mulher e
não com o homem? "
- "As Torquemadas-de-saia papa-jerimuns
e latinas garantem vigilância total e juram que até os
jornais de Natal se comprometem a fazer censura prévia
do que sai das oficinas de criação das agências"
- "A democracia brasileira em sua fase
adolescente tem produzido acidentes de percurso sociológicos
que estão levando a sociedade à hipocrisia e formando
personalidades neuróticas que se fecham num mundinho peculiar,
achando-se salvadores da raça".
- "Não vejo como condenar uma agência e
um anunciante só porque entidades ideologicamente equivocadas
se auto-nomeiam, mecanicamente, justiceiras das mulheres".
Enfim, quase
todas as "pérolas" do texto reproduzidas.
E não é o caso de ir uma a uma desfilando e descontruindo
ou recontextualizando. Mas é ótimo pretexto de reflexão, embora de
triste fecunda inspiração.
De
fato, foi tão "bem sacada" a propaganda, que
conseguiu exatamente o que queria.... passar uma mensagem
de impacto, causar polêmica e, assim, tornar ainda mais
visível o produto ou serviço que quer vender. Mas o tiro pode
sair pela culatra.
Se
para uns e outras o anúncio é uma "puta sacada",
para umas e outros existem várias leituras e interpretações
possíveis. Especulando algumas delas....
Associar
o rosto machucado de uma mulher à carroceria de um automóvel
é tão de mau gosto quanto associá-la ao rosto de um homem.
E seria tão ou igualmente desrespeitoso, não fosse
um detalhe histórico por nada desapercebido, que
agrava e compromete a "brilhante" idéia
de colocar a mulher como vítima e protagonizadora da grande
sacada. Que detalhe? O da permissiva e autorizada violência
de gênero contra as mulheres, no espaço público e no âmbito
doméstico e familiar.
Permissividade
reproduzida, por vezes, não só em propagandas, mas em
várias leis e políticas vigentes, nas instituições,
no enredo da prática social e em tantos espaços, meios
e mensagens que nos rodeiam. Não são só profissionais
de publicidade e de comunicação que produzem mensagens...
e nem só deles(as) essas mensagens se sustentam.
"Publicitários
têm mais o que fazer e não estão articulando com seus 'braim-storms' a
desgraça do mundo ou a dizimação das mulheres", outro
texto ipsis literis. Verdade. E nunca escutei
alguém dizer o contrário.
Mas
quem produz, patrocina e veicula meios e mensagens tem
o raro privilégio e oportunidade de medir e refletir
sobre o impacto dessas mensagens. E trabalhando com indicadores
pré e pós veiculação da mensagem, os quais vão muito
mais além do número de produtos vendidos ou serviços prestados.
Dá pra calcular ou assumir, nessa perspectiva, uma margem
mínima de responsabilidade no antecedente e no consequente,
não?
Profissionais
da publicidade e da comunicação - tanto quanto ativistas
de direitos humanos, inclusive das mulheres - estão imbuídos(as) de
reflexividade, conceito bem desenvolvido pelo sociólogo
Anthony Guiddens (aquele mesmo... e mesmo que amigo do Tonny
Blair, como disse um psicanalista e filósofo, reunidos
em uma única pessoa, Ney Bianco).
E
o pior não é a prática de atos com impactos negativos
sem que tenha havido intenção para tal. Margens de erros e
riscos sempre existem, em campanhas publicitárias de produtos
e serviços, eleitorais, de opinião e comportamento etc
e tal. E, muitas vezes, assume-se o risco de produzir
um resultado não desejável e até mesmo impensável. O
pior mesmo parece ser a recusa de alguns em promover
a reflexividade sobre o consequente não desejado,
não previsto e, até mesmo, não assumido de ser produzido. Deixar
de dialogar sobre essa base pode, no mínimo, fomentar
ações futuras inconsequentes. E como o mundo tem textos, contextos
e dinâmicas, nem tudo é previsível. Vale uma avaliação
em vetor de dupla mão: no consequente e no antecedente.
"Tá
na cara que precisa" de quê? Mais fácil (des)qualificar
qualquer manifestação crítica de "patrulha ideológica",
"censura prévia" ou postura "politicamente
correta", conceitos bem diferentes e que para muita gente
não se aplicam em nada ao caso em questão.
Enfim,
também é sempre mais fácil desqualificar o outro (um "tal"
Antonino Condorelli, um "tal" monitoramento
de ações", um "tal" Comitê Latino-Americano
e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher",
"Torquemadas-de-saia papa-jerimuns e latinas", e
por aí afora), do que promover um diálogo aprofundado
que não fique no medíocre e rasteiro ressentimento do
umbigo corporativista.
Até
"monitoramento de ações", mecanismos de controle
social da mídia e da propaganda, no limitado entender, vira sinônimo
de censura prévia e ofensa à liberdade de expressão.
Não
há dúvida, tal qual ainda preconiza o texto: "salário
mínimo de R$ 260, turistas que atraem meninas pobres em Ponta
Negra, verbas de educação desviadas para fins particulares,
a fome que destrói o tecido social da Nação". Também
é verdade. Mas verdade também que o anúncio foi desinfeliz...
fazer o quê? O consequente dele também destrói o tecido social
da Nação e fere a dignidade da pessoa humana.
Tudo
bem.... de tréguas se travam batalhas... mas aqui não é guerra
e muito menos santa.
Nada
mal ser arauto do direito à liberdade de expressão.
Lamentável é usar o pretexto de ofensa a esse direito,
para defender interesses corporativistas ou sabe-se lá de
que(m). Lamentável e sem comentários são os ataques
às "tais" pessoas e entidades de direitos humanos,
inclusive das mulheres.
Mais
lamentável ainda é perceber que, em nome
desse direito, falaciosamente cria-se um campo fértil
para a propagação de posturas agressivas e reacionárias,
das quais nem mesmo a agência responsável pela referida
campanha publicitária compartilha. E, por certo, delas
não deve compartilhar também um elenco expressivo
de profissionais de agências de propaganda, anunciantes,
meios de comunicação, e talvez até mesmo de concessionárias
e oficinas de mecânica, funilaria e pintura.
Para inquietar
o caldo de reflexões, recomendável mesmo seria
um pouco de leitura de bons artigos, textos e livros
que pensam e tecem sobre direitos humanos, feminismo,
violência contra as mulheres, racismo, desigualdade sócio-econômica, ética,
política, publicidade e comunicação etc. etc. etc. Recomendável
seria a simples, porém profunda observação da vida ou a
reflexão sobre a experiência, sobre o que se lê, o que se
vê, o que se escuta, o que se consome.
Mas,
considerando a ocasião, o tema e a falta de tempo para
tanta coisa, recomendável pode ser a breve
leitura de um texto bem curto e atual: O
erotismo do corpo feminino brutalizado, artigo da
colunista Bia Abramo, publicado na Folha
de S. Paulo, em 02/05/04 (Folha
Ilustrada, Comentário, pg. E 3). No mínimo, faz
refletir sobre o conteúdo das imagens e mensagens, e sobre
a não passividade e apatia de quem as recebe pela televisão
ou por qualquer outro meio de comunicação de massa.
E
isso faz lembrar Eugênio Bucci, quando observa que não
por acaso a televisão trabalha com uma das maiores pulsões
do inconsciente: o sexo e a violência. E ele desconstrói -
em uma argumentação que só ele mesmo poderia reproduzir
- a falácia de que é a democracia do que se quer ver,
justamente porque não passa pela intermediação da consciência..
nem antes, nem durante, e talvez mesmo, nem depois de sua
veiculação. Eugênio está autorizadíssimo e convidadíssimo
a me corrigir e dizer que falei bobagem se tiver entendido
mal o que ele disse, ao vivo e em cores na TV Cultura.
Escrever
esse texto é menos uma resposta a um caso isolado e muito
mais uma proposta para nos debruçarmos na ousadia da
reflexão. É desejo de compartilhá-la com quem
pense igual, parecido ou totalmente diferente.
É escutar
as companheiras feministas - estamos despertando
e apontando para o mundo da comunicação para além de
nós mesmas. Dialogar com diferentes mulheres
e homens que atuam no campo dos direitos humanos e feminismo,
da publicidade e da comunicação, da filosofia e da psicanálise
etc. Quem sabe ter a chance de escutar ao menos, entre
tantas figuras, Fátima Pacheco Jordão, Jurandir
Freyre Costa, Eugênio Bucci, Suely Carneiro, Alberto
Dines, Raquel Moreno, salpicadas aleatoriamente
em uma lista infindável de pensantes críticos e reflexivos
(de anônimos a famosos) que passeiam por alguns desses
campos com olhares privilegiados.
Mesmo
com tantos sinais explícitos, preferia pensar que matérias
dessa natureza fossem raras, e frutos de uma ingenuidade,
purismo ou imaturidade política, ao invés de manifestação
do umbigo corporativista de pouca, ou quase nenhuma,
ética e autocrítica.
A
análise da propaganda em questão não resiste ao pente fino
de uma mínima visão crítica, à percepção da associação
simbólica da mensagem - no caso bem mais explícita que
simbólica - e não resiste à noção elementar de que a
publicidade trabalha com mensagens subliminares, até por detrás
do que é explícito.
É,
pois, reprodução de um modelo de pensamento, criatividade e expressão
alimentado ainda por valores e atitudes calcados em estereótipos, preconceitos
e discriminações que marcam a nossa sociedade e nela reproduzem
a violência. E é difícil mesmo deles nos livrarmos. E
deles não estão imunes profissionais de qualquer área,
inclusive da publicidade e da comunicação. Exige um tanto
de reflexão, autocrítica, humildade... abandono da arrogância
antes de tudo.
O
discurso em defesa de propagandas nessa linha é tão ou
ainda mais lamentável e danoso que as próprias mensagens
por elas veiculadas. Espera-se que não tenha vida longa
a lógica perversa e rasteira que rege a propagação de ideologias
radicalmente machistas, capitalistas e racistas "por
meio de qualquer meio". Alguns, sem se dar
conta, reproduzem essa lógica; outros, o fazem propositadamente,
e ambos acabam lançando mão de uma provocação inconsequente,
muitas vezes com um nobre e nada condenável objetivo a
priori de vender produtos, arregimentar consumidores
e auferir lucros. Depende de como.
Ainda bem que tantos outros pensam e agem de forma diferente.
Ainda
nos falta aprender a "pensar e transgredir".
Como diz Lya Luft, "pensar pede audácia, pois refletir
é transgredir a ordem do superficial que nos pressiona tanto
... pensar não é apenas a ameaça de enfrentar a alma no espelho:
é sair para as varandas de si mesmo e olhar em torno, e quem
sabe finalmente respirar".
A
aludida propaganda não se sustenta aos olhos de quem enfrenta
a alma no espelho, vê além do próprio umbigo, sai
para as varandas de si mesmo, olha o entorno e respira.
Que tal sair um pouco do umbigo corporativista e respirar?
Cabe aqui a máxima consagrada em uma bela propaganda,
por acaso, de um fabricante de automóveis: "Está na hora
de você rever os seus conceitos".
Se
eu fosse criadora da polêmica campanha ela não teria
saído assim... Mas, ainda que por um lametável surto tivesse
cometido a criação dessa campanha, ao invés de inscrever essa peça
em algum concurso publicitário como foi sugerido, investiria energia,
dinheiro e tempo para pensar e transgredir... sair para
as varandas da minha inteligência e imaginação, e
quem sabe reconstruir uma idéia de peça publicitária mais ousada, desafiadora,
audaciosa ... e claro, criativamente ética.
É
preciso questionar e desconstruir em bases éticas. É
preciso pensar e transgredir. Criar para além do superficial estabelecido
e, acima de tudo, sobre o que parece e aparece, para alguns,
infelizmente, como intocável: a lógica extremadamente capitalista, racista, patricarcal
e machista, conservadora e reacionária que ainda
habita um bom pedaço desse nosso caldo de cultura brasileiro,
latino-americano e mundial. Habita o (in)consciente, o
imaginário social, o pensamento de cada dia, a prática
social e institucional predominante.
E
para o texto de quem, nas linhas e entrelinhas, confessa fazer polêmica
"só pra chatear"... Bem, a liberdade de expressão
e o livre arbítrio existem e valem para todas as pessoas.
Que se faça uso e não abuso. E, de preferência, por
meio de criativas idéias, imagens, palavras, posturas e
atitudes, basta escolher como.
Por
acreditar que a publicidade e a comunicação, assim como
os direitos humanos e o feminismo, podem ser instrumentos
de transformação social, é que vale a pena ousar pensar
e transgredir sobre (a)ética criativa.
*Valéria Pandjiarjian é
advogada feminista, coordenadora da área regional de violência
do CLADEM, Comitê Latino-americano e do Caribe para a Defesa
dos Direitos da Mulher (violencia@cladem.org)