Tecido
Social
Correio Eletrônico da Rede Estadual de Direitos Humanos
- RN
N.
028 – 14/03/04
Madri,
11 de março de 2004
"He llorado
en Venecia, me he perdido en Manhattan, he crecido en La Habana,
he sido un paria en París,
México me atormenta,
Buenos Aires me mata, pero siempre hay un tren que desemboca
en Madrid"
Joaquín Sabina,
cantor espanhol, "Yo me bajo en Atocha"
Por
Antonino Condorelli
Quinta-feira, 11 de março: três explosões laceram o ventre
de Madri. Em plena hora do rush, pouco antes das 8 da manhã,
as estações de Atocha, na zona sul da cidade, Santa Eugenia
e El Pozo, na periferia da área metropolitana, são o pano de
fundo de cenas dantescas: vagões de trens desventrados, corpos
ensaguentados, cadáveres despedaçados, sirenas soando, ambulâncias,
helicópteros, medo, dor, incredulidade e horror nos rostos...
Naquele
dia, meu corpo e minha cabeça estavam em Parnamirim, participando
da Caravana de Direitos Humanos, tentando disseminar uma consciência
cidadã na população de um município periférico do Rio Grande
do Norte, como é meu dever ético... Porém, meu coração estava
em Madri. Morei dois anos naquela cidade. Além de amizades e
lembranças, deixei lá um pedaço de mim.
Defendendo
os Direitos Humanos, você mexe todo dia com barbárie. Mas pensar
que alguma amiga ou amigo seu, que alguém com quem compartilhou
momentos da sua vida possa estar morto com o corpo dilacerado
em meio de escombros, que seu cadáver totalmente desfigurado
possa estar envolto em um plástico e deitado no chão com centenas
de outros lhe faz tocar a angústia com as mãos.
Depois, faz pensar nas coisas da vida. Se não tivesse
conhecido uma brasileira, se
não tivéssemos namorado e se e eu não tivesse resolvido, há
uns dois anos, vir morar no outro lado do Atlântico, nesta perdida
província na esquina do continente, se tudo isso não tivesse
acontecido, se estivesse morando ainda em Madri?
Passava
quase todo dia por Atocha. É uma estação de confluência de trens
que conectam a capital com as cidades satélite da área metropolitana
e por ali passa uma linha do Metrô que une a zona sul à zona
norte da cidade, que é o transporte que muitas pessoas usam
para ir trabalhar. É mais, é um símbolo de Madri. Não é à toa
que uns versos de Joaquín Sabina, o mais madrilenho dos cantores
universais, rezam: A mitad de camino entre el infierno y
el cielo, yo me bajo en Atocha, yo me quedo en Madrid.
E não é à toa que quem cometeu os atentados tenha escolhido
justamente aquele lugar: foi como afundar uma faca no coração
da cidade.
No
entanto, a angústia, o transtorno, a comoção, a indignação não
me tiram o juízo, a capacidade de pensar, que é justamente o
que tanto os terroristas que colocaram as bombas quanto os profetas
da moderna cruzada contra aqueles que não se inserem no modelo
existente, imposto de goela abaixo, de globalização querem.
Embora convenha muito ao governo de José María Aznar
- nas vésperas das eleições gerais que deste domingo e que quase
certamente levarão ao poder seu sucessor, Mariano Rajoy, entregando
à Espanha mais quatro anos de Partido Popular (PP) e políticas
neoliberais – afirmar que não é descartada nenhuma linha de
investigação, está claríssimo que a autoria destes atentados
não pertence à ETA, o grupo separatista basco que desde décadas
ensanguenta a Espanha com atos terroristas.
Pela
primeira vez na história, o braço político da ETA, o partido
Batasuna (declarado ilegal há cerca de um
ano e meio), condenou publicamente um atentado terrorista e
acrecentou que a organização basca não tem nada a ver com ele.
Em se tratando de um grupo que usa o terrorismo como instrumento
de luta política e tem a prática de reivindicar cada crime que
comete, dá para acreditar nesta declaração. Além disso, a ETA
sempre avisa antes de realizar qualquer atentado e desta vez
não houve nenhum aviso prévio, e o explosivo encontrado nos
lugares da tragédia não é o típico das ações do grupo basco.
Considerando
que em uma das mochilas com os explosivos foi encontrado um
pedaço de papel com versos do Alcorão, que em um furgão roubado
em Alcalá de Henares (cidade de onde partiram os trens atingidos,
carregados de explosivo) e encontrado próximo à estação foi
achada uma fita-cassete em árabe e que uma organização ligada
à rede terrorista islámica Al-Qaeda reivindicou a ação em um
jornal em árabe editado em Londres, tudo indica que o maior
atentado terrorista da história da Espanha, que jogou sua capital
em cenas de morte, pânico e horror que não se conheciam desde
a guerra civil, tenha sido de autoria do fundamentalismo islâmico
internacional.
A Aznar convém que o massacre seja atribuido à ETA. Se
assim fosse, a posição instransigente do Partido Popular de
luta ao terrorismo e criminalização do nacionalismo em seu conjunto
(incluindo o democrático e moderado que agrega a maioria do
povo basco) poderia aglutinar, graças à comoção, a maioria dos
espanhóis ao redor do seu projeto político. Pelo contrário,
se fosse confirmada a mão de Al-Qaeda atrás dos atentados, os
eleitores poderiam cobrar a Aznar sua responsabilidade nesta
tragédia pela participação da Espanha na guerra do Iraque.
Por
isso, com um cinismo sem igual, o Ministro do Interior, Miguel
Acebes, mesmo quando todos os indícios apontavam para o fundamentalismo
islâmico a autoria dos atentados, declarou à imprensa que se
trataria de uma “manobra de desinformação” da ETA para semear
confusão. Chegamos ao ponto de manipular a morte de centenas
de pessoas por fins eleitoreiros... Às vezes dá mesmo para se
perguntar até onde estamos indo.
Seja
como for, após esta atrocidade não podemos deixar de perguntar-nos:
porque? “Se é legítimo para vocês matar nossas crianças, mulheres,
anciãos e jovens no Afeganistão, Iraque, Palestina e Cachemira,
porque seria vedado a nós matar os seus?”. Uma frase como esta,
contida na carta de reivindicação dos atentados, pode revoltar-nos
o estômago, deixar-nos arrepiados, dar-nos vontade de vomitar,
mas não pode não fazer-nos refletir.
Os atentados de Madri foram uma barbárie que não tem
nenhuma justificativa. Mas agora que a Espanha tem tantos mártires
para chorar - e para vingar, porque os mais baixos instintos
do ser humano, quando acontece algo assim, não instigam a exigir
justiça, mas vingança - quem vai pagar? Por acaso, os terroristas
que colocaram as bombas, que nem moram na Espanha, que são um
punhado de assassinos delirantes para os quais a vida humana
(a dos outros e a deles próprios) não tem nenhum valor, que
resolveram dedicar sua existência à Jihad (a “guerra
santa” muçulmana contra o Ocidente) e rodam o mundo treinando
para matar e sabendo que a qualquer momento vão morrer? São
eles que vão pagar?
Não.
Quem vai pagar a conta são os milhares de imigrantes de origem
árabe ou religião muçulmana, a maioria “ilegais” (se é que um
ser humano pode ser ilegal), que foram à Espanha e aos outros
países da União Européia procurar sustento para eles e suas
famílias, que são explorados todo dia trabalhando mais de 12
horas por salários de fome sem direito nenhum porque não têm
papéis e os Estados fazem de tudo para impedir que os tenham,
que dormem em sete-oito amontoados em cubículos de poucos metros
quadrados pagos com mais da metade do que ganham todo mês, que
são discriminados nas ruas e nos comércios dos bairros (pobres)
onde moram, que quando são pegos pela polícia são jogados em
campos que se assemelham aos de concentração pelas condições
subumanas e deportados drogados e algemados como se fossem animais
perigosos, isso quando não caem vítimas de skinheads
que organizam “expedições” para espancá-los, torturá-los e muitas
vezes assassiná-los.
A comunidade de imigrantes mais forte na Espanha é a
dos marroquinos. No sul do país, na província de Almería (na
região da Andaluzia), trabalham na colheita de tomates e são
indispensáveis para a economia local, pois a mão-de-obra espanhola
se recusa a fazer aquele trabalho. Nos grandes centros urbanos,
trabalham na construção civil e outras funções que nenhum espanhol,
hoje em dia, aceita mais cumprir. Apesar disso, que os torna
imprescindíveis para a economia do país, tanto nas áreas rurais
como nas urbanas seu trabalho é sempre sem direitos e remunerado
com salários ridículos, pois as leis de imigração que o Partido
Popular fez durante o último mandato impede que se regularizem
e os empregadores (quase sempre pequenos empresários e comerciantes)
aproveitam da sua situação chantageando-os e expremendo-os até
a última gota.
Mas o governo de Aznar foi além: em sua obra sistemática
e planejada de desmantelamento dos serviços públicos e as políticas
sociais em nome de uma “modernidade” identificada com os interesses
do grande capital e promovida através da privatização selvagem
que não poupou nem direitos básicos como a saúde e a educação,
colocou os desempregados e os trabalhadores com contratos precários
espanhóis contra os imigrantes, em uma guerra de pobres que
tem como único vencedor o ódio.
De
fato, o Partido Popular tirou direitos aos próprios cidadãos
espanhóis. Por exemplo, fez uma lei que obriga quem recebe o
subsídio de desemprego a aceitar QUALQUER oferta de trabalho,
mesmo se o salário for inferior ao próprio subsídio (que já
é baixíssimo e não permite viver com dignidade), sob pena de
perder este último. Mais de um milhão de trabalhadores, de todos
os sindicados do país unidos, desceram à rua em Madri contra
esta infamia, mas o PP – exatamente como a força política da
qual descende diretamente: o franquismo – nunca se importou
com as demandas do povo.
Enquanto tirava seus direitos, o PP ganhou o consenso
da população mais desfavorecida através de uma massiva campanha
de nacionalismo exacerbado – “espanholismo”, como é chamado
lá – que criminalizou qualquer forma de independentismo, associando
os nacionalistas bascos democráticos e moderados aos terroristas
fanáticos, e acompanhou os duros golpes militares que conseguiu
infligir à organização da ETA (quando se cortam todos os gastos
sociais, é possível investir massivamente em repressão) com
uma retórica ultra-espanholista fundada nos conceitos de “pátria”
e “bandeira” (repetidos infinitas vezes por Aznar em seus discursos).
Esta retórica nacionalista, por sua vez, foi temperada
por fortes doses de anti-islamismo e “ocidentalismo” exasperado,
que prepararam o terreno para a participação incondicional do
país à invasão norte-americana do Iraque. Este discurso, que
em certos momentos assumiu um tom de moderna cruzada, encontrou
uma forte aceitação nas classes populares, que viram a imigração
crescer cada vez mais nos últimos anos. O preconceito contra
os moros (como são chamados, pejorativamente, os árabes
e muçulmanos) e os sudacas (apelido pejorativo dado às
pessoas que vêm do Terceiro Mundo, principalmente os latinoamericanos,
equivalente ao concepto de ralé, escória) creceu vertiginosamente
na Espanha, estimulado pelo próprio governo do país.
Em
2001, em pleno centro de Madri, fui agredido por uma pessoa
visivelmente desequilibrada, provavelmente drogada. Podia ser
de qualquer nacionalidade, isso não tem importância, era apenas
um marginalizado entre tantos milhares, milhões. A maior parte
dos crimes, na Espanha como em qualquer outro país da União
Europeia, são cometidos por pessoas nativas do lugar, não por
imigrantes. Mas o acaso quis que quem me agredisse fosse um
marroquino. Durante a agressão, à qual presenciaram muitas pessoas
e que aconteceu na principal praça de Madri, a Puerta del Sol,
ninguém mexeu um dedo para me ajudar. Quando o desequilibrado
foi embora e eu estava ainda transtornado pelo acontecido e
ligeiramente machucado, todos os que se aproximaram para me
dar – supostamente – “apoio psicológico” só fizeram arremeter
contra os moros de mierda, como se um espanhol não pudesse
ter feito aquilo perfeitamente.
Em
outra ocasião, escutei na boca de um policial de Madri que el
mejor moro es el moro muerto. Nos últimos anos, os casos
de torturas, maus tratos e mortes de árabes e outros imigrantes
em delegacias, campos de permanência ou presídios espanhóis
aumentaram espantosamente.
A culminação disso tudo foi a adesão incondicional à
guerra do Iraque. Se Blair foi o “cachorrinho poodle” de Bush,
Aznar foi seu Yorkshire. Mas, enquanto Bush e Blair se dignaram
pelo menos de responder perante os próprios Parlamentos nacionais
sobre porque tinham feito a guerra depois de que nenhuma arma
de destruição de massa foi encontrada e apareceu claríssimo
que a invasão estava finalizada ao controle dos recursos petrolíferos
do Iraque, Aznar declarou publicamente que não tem que responder
sobre nada perante ninguém. Ou seja, o povo espanhol e seus
representantes não valem nada, o governo nacional não precisa
dar conta a eles dos seus atos... As analogias com o “pai político”
de Aznar são cada vez mais inquietantes.
Se
for confirmada a autoria dos atentados por parte de um grupo
ligado à Al-Qaeda, os que cumpriram aquele massacre provavelmente
não surgiram do seio da imigração árabe na Espanha e talvez
nem na Europa, mas – embora não seja justificável – é humanamente
compreensível o sentimento de rancor que habita os muçulmanos
e, em geral, os milhões de imigrantes “ilegais” disseminados
pela União Europeia. Quando se é humilhado e explorado todo
dia, quando nossos direitos são sistematicamente negados, é
muito fácil cair nas garras de quem semea ódio, ou pelo menos
simpatizar com quem combate quem nos humilha.
Os imigrantes muçulmanos vêm de países com tradições
culturais fortemente machistas e geralmente reproduzem nas suas
relações familiares a opressão à mulher que caracteriza suas
culturas de origem. Isso contribui em reforçar o preconceito
contra os moros, concebidos como selvagens e machistas
(sendo que a violência doméstica é uma emergência nacional na
Espanha, e acontece todo dias nos lares de milhões de espanhóis).
Mas como se combate a opressão à mulher? Excluíndo, negando
direitos, explorando, humilhando? Ou incluíndo, dando dignidade,
educação, saúde, possibilidade de trabalhar dignamente, em poucas
palavras, dando cidadania? Esta é o melhor anticorpo contra
o vírus da opressão, seja ela de gênero, religião, opção sexual
ou qualquer outro tipo.
Infelizmente, tudo indica que
– se o PP ganhar as eleições, mas provavelmente também se ganhassem
seus adversários, os socialistas – o rumo será outro. Será o
caminho da discriminação, do fechamento ainda mais drástico
das fronteiras (sendo que nunca vão parar a imigração, podem
erguer mil muros, mas os pobres da terra continuam passando
fome e desejando uma vida melhor), do recrudescimento do racismo
contra os árabes e os muçulmanos, da eliminação cada vez mais
sistemática de direitos... Tudo indica que vai haver mais prisões
arbitrárias de imigrantes muçulmanos, mais espancamentos, mais
torturas, mais exploração no trabalho, mais humilhação... Tudo
indica que quem vai pagar pela atrocidade cometida o 11 de março
em Madri não vão ser os fanáticos assassinos que a cometeram,
mas – como sempre – vão ser os pobres, os que não têm direitos
nem voz.
Do mesmo jeito que quem “pagou” pelos massacres de inocentes
no Iraque foram outros inocentes, trabalhadores que iam ganhar
seu pão de cada dia. Enquanto os verdadeiros responsáveis disso
tudo, os senhores da guerra que mandam soldados morrerem por
sujos interesses e assassinarem inocentes, os donos do grande
e pequeno capital que exploram a imigração clandestina sem lhe
dar direitos, continuam engrossando seus bolsos e suas barrigas.
E os terroristas continuam matando.
O
que aconteceu em Madri é um puro e simples ato de barbárie,
uma infamia sem nenhuma justificativa, que – temo – vai originar
novas barbáries. Em muitos outros países – incluíndo, muitas
vezes, o Brasil – acontecem quase todo dia infâmias iguais ou
piores que muitas vezes não chegam nem a ocupar umas linhas
nos jornais. Sempre estive contra esta disparidade na informação,
reflexo da dominação cultural dos chamados “países do Primeiro
Mundo” que se manifesta também nos critérios de escolha do material
noticiável pela mídia. Desta vez, porém, não pude evitar acrecentar
minha voz aos rios de informações sobre este massacre, pois
esta tragédia me atingiu bem de perto.
Felizmente,
todas minhas amigas e todos meus amigos que moram em Madri estão
bem. Mas isso não tira minha indignação, pois centenas de famílias
hoje estão incompletas. Ontem, meu coração estava em meio aos
mais de dois milhões de madrilenhos, aos mais de oito milhões
de espanhóis que saíram à rua para dizer não à violência. Como
antes esteve com os millhares de civis iraquianos barbaramente
assassinados durante a guerra, como todo dia está ao lado dos
oprimidos, os humilhados, os excluídos do Rio Grande do Norte,
do Brasil, da América Latina, do mundo.
Durante
a guerra civil espanhola, a população de Madri resistiu heroicamente
à avançada do fascismo sob o slógan: ¡No Pasarán! Foram
derrotados, mas até o último não deixaram de lutar. Hoje, nosso
grito é o mesmo. Guerra, terror, disciminação, racismo, intolerância,
exploração, exclusão: são forças poderosas, que dominam o planeta.
Mas nós continuaremos resistindo: ¡No pasarán!
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