1
— DEPOIMENTO DO PASTOR MOZART NORONHA
(Na
abertura do IV Encontro Nacional de DHs)
“Meus caros irmãos
e amigos, D. Hélder Câmara, companheiros de mesa,
companheiras, irmãs, companheiros irmãos, sinto-me, neste
momento contente em participar com vocês deste ato. Vim falar em
nome dos evangélicos comprometidos. Digo dos evangélicos
comprometidos porque, vocês sabem, especialmente os membros de
igrejas evangélicas, como muitas vezes as igrejas evangélicas têm
sido omissas durante todo o processo de lutas pelos direitos
humanos. E eu queria começar citando um texto bíblico, que está
na Segunda Carta de São Paulo dirigida a Timóteo. Ele diz
assim: “vem ter comigo depressa, traze a capa (...), traze os
livros e os pergaminhos”. Eu queria que nós pensássemos um
pouquinho nestas palavras “vem ter comigo depressa”, na
materialização que esta frase traz. O ser humano não é simplesmente
espírito. As igrejas cristãs e particularmente as igrejas evangélicas
vêm durante muito tempo, espiritualizando demais a sagrada
escritura. A gente trata de assuntos bíblicos, sempre numa
tentativa de interpretação literal que está na cabeça de
cada protestante. Quando a gente diz que talvez o mundo não
tivesse sido criado em sete dias, mas em sete períodos distantes,
os mais fundamentalistas dizem: “não, são sete dias verdadeiramente,
porque a Bíblia tem que ser interpretada literalmente”. Quando
se discute que a questão de lonas e a baleia talvez fosse uma parábola
e, certamente, a mensagem central do texto estava falando do
amor universal de Deus por todos, eles dizem: “não, foi
realmente um peixe”. Mas quando a Bíblia diz: “vá, vende
tudo o que tem, dá aos pobres”, eles dizem: “não, isto é
espiritual”.
“Eles começam
a espiritualizar a Bíblia e começam a espiritualizar o homem,
como se existisse homem sem corpo e como se existisse corpo sem
alma. Corpo sem alma é cadáver e alma sem corpo é fantasma. O
homem é um conjunto de alma e corpo. “Vem ter comigo
depressa” fala da necessidade da presença física do outro, do
carinho especial pelo corpo do outro. (...) Um discípulo de
Gandhi, visitando o mundo ocidental, ao voltar a sua terra lhe
perguntaram: o que você achou do Ocidente? Ele respondeu: “se
os cristãos tivessem amado mais meu corpo que a minha alma talvez
hoje eu fosse cristão.
“Vem ter comigo
depressa”. Nós nos habituamos inclusive a repelir o corpo do
outro. Paulo Freire nos conta uma experiência muito familiar.
Quando estava no Chile, um dia foi convidado por um companheiro
chileno, um dos ministros, para passear pela cidade de Santiago, e
enquanto caminhavam, colocou a mão no seu ombro e foram
passeando pelas ruas. De repente, ele sentiu que seu amigo estava
se sentindo um pouco incomodado pelo gesto de ele colocar a mão
em cima de seu ombro. E um pouco mais o amigo não resistiu e
disse assim: Paulo, eu queria que você soubesse que aqui no
Chile, não é muito comum um homem sair com o braço no ombro
do outro homem. E o Paulo tirou a mão, um pouco sem graça, e
depois lhe perguntou: “mas que país é este, onde um gesto de
carinho é repelido desta maneira? E passados alguns anos, Paulo
foi parar na África (...) e na África foi convidado por um
ministro a passear numa daquelas cidades africanas de Angola.
Aquele seu amigo deu a mão ao Paulo, o que é muito comum na
África, os africanos são muito afetuosos. Então ele logo
entrelaçou sua mão com a mão do Paulo e foram passeando pelas
ruas. E agora foi o Paulo que começou a ficar sem jeito. Olhava
para um lado, olhava para outro, para ver se tinha algum
pernambucano olhando: o Paulo de mãos dadas com o africano. Na
primeira oportunidade ele largou a mão do africano e meteu a mão
no bolso. Depois ele se perguntou: “que mundo é este, que
cultura é esta a minha; quando um gesto de carinho é repelido
desta maneira? Nós aprendemos a negar o corpo, a negar a
presença do outro. O texto diz “vem ter comigo depressa”, da
necessidade da presença física do outro. (...) Por isto nós não
podemos falar em direitos humanos em termos abstratos, mas em
termos bem concretos. Não existem direitos em termos abstratos.
E aqui nós não acostumamos a pensar em coisas muito etéreas.
(...). E agora eu me pergunto se quando falamos muitas vezes em
direitos humanos, nas lutas humanas em geral, muitas vezes nós
não estamos com a capacidade de amar o concreto, o outro que
está ao nosso lado. (...). “Vem ter comigo depressa, traze a
capa, depois traze os livros”. Como é importante isto. Quando
eu digo “traze os livros” eu estou pensando nos companheiros
que durante este período todo em que nós ficamos no
obscurantismo, e quantos livros foram tirados das bibliotecas e
livrarias e queimados. A gente, pensando em direitos humanos, não
pode deixar de pensar em direito à cultura, na liberdade de
pensamento, no direito a pensar, a criar sempre. Como dizia o
poeta Augustinho Neto “criar, criar sempre, na ponta dos dedos,
criar na poesia, criar em todos os níveis”. Mas não para cair
em cientificismo, depois de nós vermos os livros conforme o
modelo da sociedade ocidental. (...).
Eu queria lembrar
para vocês um poema conhecido no Nordeste, (...) falando do dia
das eleições (...) que denuncia a forma do homem ser manipulado,
especialmente na época do hipartidarismo, (...) entre a questão
da Arena e do MDB, o partido do “sim” e o partido do “sim
senhor”, ele dizia assim:
“Amigos das
nossas bandas, quando é tempo de eleição os candidatos se
mandam, dá comida e condução, e nós que vamos votar, come até
arrepiar de boi e pirão. Só existe os dois partidos, o governo e
a oposição. O resto (...), que o cabra queira ou que não, tem
que escolher um dos dois, que é pra mó de votar depois no dia
das eleição. E eu não vou arreclamar, nem quero matar o homem,
que era o Geisel. O que mesmo nós quer é tirar a barriga da
fome, quantos voto que a gente dá não se aproveita o que come.
Foi por isto que o Vicente, nesta angústia de eleição, comeu
e ficou doente, carne de porco e pirão, sarapatel e chouriço e
adispois, com sacrifício, foi votar na oposição. Mas quando
chegou a hora do Vicente votar, deu vontade de ir lá fora um
pouquinho se aliviar, mas estava o presidente, começou a chamar
Vicente e mandou Vicente entrar. Ele disse: “entra aí, assina o
nome como souber, não convém afobamento, não se demore lá dentro,
que os outros também quer”. Então Vicente assinou o que
tinha de assinar e se acabando de dor, sem poder mais falar,
mostra o título, se previne, entrou dentro da cabine e começou a
(. . .) assustar. E o povo ali fora começou a reclamar. O fiscal,
como é que é? Esse homem vota ou não vota? (...).
E o presidente da
mesa se resolveu da revolta e começou a bater na porta da
cabine do Vicente e adispois de umas três batidas, uma voz baixa,
esprimindo, respondeu: “tem gente”.
“Esta é uma
situação nova, companheiros, em que o homem vai votar, não pela
manipulação, mas pensando realmente. Os livros, que foram
feitos pela experiência do homem analfabeto (...). Estou
escrevendo livros com minhas próprias mãos.
“E finalmente,
diz Paulo, “traga os pergaminhos e os pergaminhos se ferem,
sem dúvida, à palavra sagrada. Agora, gente, nós protestantes
temos formas diversas de ler a palavra de Deus. Alguns usam a Bíblia
observando até as vagas denominações nossas de foi-mas específicas
e características de carregar a Bíblia.
O batista, por
exemplo, carrega a Bíblia no peito. Os presbiterianos já a
carregam debaixo da mão, a mão presa, voltada para dentro.
Outros a carregam debaixo do braço, como desodorante. Outros
carregam a Bíblia como código de direito, como direito penal, e
começam a enquadrar as pessoas em seus versículos e capítulos.
Você pecou e está condenado, de acordo com o capítulo tal,
versículo tal, e assim por diante, como um código de ética,
como um livro moral. A Bíblia não é isto. Por isto requer este
movimento todo, uma nova leitura da Bíblia.
“Eu quero
terminar aqui, para não ser muito longo, falando da escola
dominical de minha igreja. Eu falava de duas versões pelo menos,
que aparecem na criação, do Gênesis, a teoria da criação da
mulher, por exemplo. Uma versão começa no capítulo, primeiro
do Gênesis, dizendo que Deus fez o homem a sua imagem e
semelhança e depois fez o homem entrar em sono profundo e arrancou
uma costela sua e depois que o camarada acordou e viu a mulher,
disse: “tu és osso dos meus ossos e carne da minha carne”. E
daí Santo Agostinho muito bem intencionado e muitos pastores
protestantes dizem hoje nos sermões que a mulher deve ser
submissa ao marido, ele diz assim: “Deus não tirou a mulher da
cabeça do homem para não ser superior ao homem, não tirou dos pés
para não ser pisada por ele, mas tirou do lado para ser amada e
compreendida por ele. A segunda versão da Bíblia (sobre a criação
da mulher), que começa no capítulo dois, diz o seguinte: “e
Deus criou o homem, homem e mulher”, não fala de costela coisa
nenhuma. Homem aparece como ser andrógeno criado a imagem e semelhança
de Deus, sem superioridade coisa nenhuma, por isto, na questão
dos direitos humanos na nova leitura da Bíblia, nós temos que
reler a questão da mulher, conforme colocado na Bíblia. E uma
mulher na escola dominical perguntou: “mas pastor, por que é
que sempre dão ênfase a esta primeira versão? Eu respondi:
porque a Bíblia, em geral, foi escrita por homens. Nós pastores
somos sempre homens. Agora é que algumas igrejas estão pensando
em ter mulheres também lá, felizmente assumindo lugar nos púlpitos
também, porque para Deus, não há diferença neste sentido
entre homem e mulher. Rever a questão da mulher. ... .) Aparece
também a questão do pobre, mas não o coitadinho do pobre, mas
do oprimido, aquele que segundo a própria ideologia da Bíblia
vai refazer esta questão (...) e vai fazer com que os próprios
ricos se convertam, numa sociedade onde não haverá nem ricos e
nem pobres.
“Eu concluo aqui,
agradecendo esta oportunidade de falar a vocês, lembrando
a questão dos direitos humanos que são necessários. Para
garantir o nosso espaço democrático, alguns estão acreditando
nos conchavos mais diversos, nas conciliações mais variáveis,
inclusive nos pactos sociais, onde se procura conciliar
a questão do capital e do trabalho. (...). Alguns acreditam
nos políticos que vêm por aí, através de projetos mais
variados, tentando dizer que subirão ao poder nos braços
do povo. Mas a verdadeira democracia só será garantida
com a força e com o poder popular, a sociedade organizada
em todos os sentidos, homens e mulheres, lado a lado,
jovens e crianças, e assim nós teremos uma nova sociedade,
um novo mundo, conforme a vontade de Deus, sem explorados
e exploradores. Eu termino aqui citando uma frase de D.
Hélder Câmara, que não sei se ele lembra, em que ele dizia:
“talvez nós estejamos ainda no primeiro dia da criação”.
Talvez nós estejamos, companheiros e companheiras, no
primeiro dia ‘da criação de um novo mundo, de uma nova
sociedade. Eu sei que é difícil, mas, como dizia Charles
Chaplin, “devagar nós chegaremos lá”.
|