História
dos Direitos Humanos no Brasil
Encontros
Nacionais do MNDH
Movimento
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1982
I
Encontro Nacional de Direitos Humanos do
MNDH
1982, Petrópolis-RJ
Direitos
dos Pobre Como Direitos Divinos
Palestra proferida
pelo Frei Leonardo Boff, O.F.M. no 1 Encontro
Nacional de Grupos de Defesa dos Direitos
Humanos.
INTRODUÇÃO
Se contemplarmos
a história moderna da conscientização e
elaboração dos direitos humanos constatamos,
perplexamente, uma dolorosa ausência da
Igreja. O desenvolvimento dos direitos humanos
se fez fora da Igreja e muitas vezes contra
ela. Testemunho disto são as condenações
do final do século passado, especialmente
sob Pio IX, no Mirari vos ou no Syllabus.
Praticamente o que hoje são considerados
direitos fundamentais foram rechaçados pela
oficialidade da Igreja. Assim a liberdade
de consciência é chamada de errônea sentença
e até um delírio (DS 2730); a liberdade
de opinião e expressão é qualificada de
erro pestilentissimo (DS 2731).
Montalembert
cunhou a expressão deste tipo de catolicismo
fechado: «Quando sou o mais fraco, apelo
á liberdade, porque esse é o vosso principio;
quando porém sou o mais forte, nego-vos
a mesma liberdade, porque tal é o meu principio»
(Lepargneur H. A Igreja e o reconhecimento
dos DH, em REB 37 (1977) 1, 178).
Na própria
discussão prévia e aprovação da Declaração
universal dos direitos do Homem da ONU,
a 10 de dezembro de 1948 (Paris) a participação
da Igreja foi mínima. Havia desconfiança.
Participaram duas organizações católicas,
com pouco apoio oficial: A Organização Mundial
das Mulheres Católicas e a Confederação
Internacional dos Sindicatos Cristãos (Lepargneur
II, 181 nota 51). Por que estas reticências
que nos envergonham?
É porque a
Igreja esteve ligada ao poder civil, o altar
ao trono. E toda a luta moderna foi feita
contra a prepotência dos poderosos, do Estado,
das classes privilegiadas.
Se a presença
da Igreja na definição dos direitos foi
parca, deve-se, entretanto a ela, um papel
decisivo na defesa e promoção destes direitos
proclamados por outros. Na medida em que
a Igreja foi entrando no mundo dos sem-poder,
foi sentindo a violência e a agressão dos
direitos humanos. Enquanto ficava longe
do caminhar do povo, distante das lutas
dos oprimidos em busca de sua libertação
e dignidade, ela mostrou-se insensível à
paixão do povo e dos que sofrem historicamente
o pisoteamento de seus direitos.
Hoje podemos
fazer a seguinte verificação: quanto mais
uma Igreja se faz popular, entra no continente
dos pobres, mais se empenha pelos direitos
humanos; o contrário se mostra também verdadeiro:
quanto menos uma Igreja se empenha pelos
direitos, quanto menos declarações uni bispo
faz em prol dos direitos violados, tanto
mais distante e desencarnada é sua atitude
e sua pastoral do povo e da realidade social
vivida pelos pobres. A distância do povo
é proporcional á proximidade deste bispo
ou desta Igreja ás classes dominantes e
ao Estado capitalista controlado por elas.
Entretanto,
mais e mais a Igreja Universal entende que
pertence ao seu ministério a defesa e promoção
dos direitos humanos. Na reflexão e prática
eclesiais se chegou a concretizar o que
significa a dignidade humana e por onde
deve começar a defesa e promoção dos direitos.
Hoje,
entendemos que os direitos humanos são principalmente
os direitos das grandes maiorias. E estas
são pobres. Então lutar pelos direitos humanos
é lutar pelos direitos dos pobres, pela dignidade
dos oprimidos em primeiro lugar, e a partir
deles de todos os homens.
Esta
é a única postura teórica e prática verdadeira.
Caso contrário cairemos no jogo dos poderosos
que também falam de direitos humanos, na
medida em que querem apresentar uma face
humanistica ás suas práticas de barbárie,
de exploração e violação.
Colocar a temática
dos direitos humanos em termos de dignidade
dos oprimidos é encontrar-se com o dado
bíblico e situar-se no melhor da tradição
humanistica que exatamente elaborou os direitos
humanos.
1.
Direitos humanos como direitos das maiorias
pobres
Os
antecedentes históricos das várias declarações
dos direitos humanos, seja da revolução
americana (1776) seja daquela francesa
(1789) seja das Nações Unidas (1948), se
encontram na luta contra a prepotência
do poder. Assim a Carta Magna (1215) considerada
a primeira formulação dos direitos dos homens,
significava a limitação do poder absoluto
do rei. Entretanto é ainda elitista, porque
cria os direitos como privilégios da classe
nobre feudal e da casta clerical. O resto
da população (o terceiro estado) não tem
direito nenhum. Só em 1689 na Bill of Rights
se reconhece o direito a todos os cidadãos.
A
consciência dos direitos humanos despertou
com vigor na Europa por ocasião dos debates
sobre os direitos dos pobres, isto é, dos
índios e negros por ocasião da conquista
da América Latina no século XVI. Famosas
ficaram as disputas entre Ginés de Sepúlveda
e Bartolomé de Ias Casas sobre o estatuto
da natureza do índio (disputa de Valladolid
de 1550).
Por
exemplo Gonzalo Fernãndez de Oviedo (1478-1557)
escrevia em sua Historia General y Natural
de las índias: «Estas gentes destas índias,
embora racionais e da mesma estirpe daquela
santa Arca de Noé, tornaram-se irracionais
e bestiais por suas idolatrias, sacrifícios
e cerimônias infernais» (cf. E. Dussel,
A cristandade moderna diante do outro, em
Concilium n.º 150 (1979) 58.
Sepúlveda
dizia na mesma linha: “O fato de possuírem
cidades e um modo racional de viver e algum
tipo de comércio é coisa que a própria necessidade
natural sugere e serve apenas para provar
que não são puros ursos nem macacos e não
se acham totalmente destituídos de razão”
(Dussel, p. 58).
Como
se depreende, vige aqui uma discriminação
e posposição das pessoas pelo fato de serem
outros, diferentes, pobres.
A questão que
Bartolomé de las Casas colocou é esta: 05
índios têm ou não têm direitos iguais aos
espanhóis e portugueses? A resposta dele,
bem como a de Vieira e de outros defensores
dos direitos humanos de então, era: eles
têm direitos e direitos iguais porque são
seres humanos. Logo são nossos próximos.
São por isso chamados a participar da comunidade
do povo de Deus e pertencem à mesma família
de Deus.
As
possíveis desigualdades e diferenças de
religião, de moral e mesmo o fato de os
aztecas oferecerem sacrifícios humanos não
é motivo para serem subjugados e violados
em seus direitos humanos. Por causa desta
igualdade não é permitido tratá-los como
animais ou procurar o bem deles por meios
violentos, submetendo-os à escravidão.
Conhecemos
as longas disquisições de Francisco de Vitória
em Salamanca e Hugo de Grootius em defesa
da existência da alma dos índios e de seu
caráter inviolável por causa da sacralidade
da natureza humana. Entretanto, tudo isto
ficou no plano da discussão teórica. Na
prática, os potentados e encomenderos seguiam
a fome de conquista e a ganância pelo ouro
e pelas terras, sem qualquer outra consideração.
Não admira pois que entre 1532 e 1568 a
população total do México de 16.874.409
habitantes tivesse caído para 2.649.673.
A causa não reside apenas nas enfermidades
trazidas pelos brancos, mas principalmente
pela violência e a desestruturação trazidas
pelos conquistadores bandidos (E. Dussel,
EI episcopado latinoamericano y Ia Iiberación
de los pobres — 1564-1620, México 1979,
19).
O
importante reside nisto: uma vez colocada
a questão no século XVI ela jamais deixou
de ocupar e preocupar a consciência humana
até os dias de hoje. O grito dos oprimidos
não deixa as consciências dos Estados e
das sociedades tranqüilas. 1~rata-se sempre
da luta dos fracos contra a prepotência
dos poderosos. Exemplo disto é a declaração
dos direitos do homem e do cidadão no tempo
da revolução francesa. Ela se fez contra
a prepotência do Estado e em nome da emancipação
do indivíduo. Os «direitos naturais, inalienáveis
e sagrados» são proclamados sobre o fundamento
da igualdade e universalidade do ser humano.
Não
obstante esta universalidade de intenção,
percebe-se facilmente o lugar social dos
que proclamaram tais direitos: são aqueles
que depois serão chamados de burgueses,
sujeitos históricos do grande projeto liberal,
sustentando o valor do indivíduo, da propriedade
privada e da liberdade do cidadão. A liberdade,
a propriedade privada bem como a igualdade
e a segurança não são fundadas sobre a relação
do homem com o outro homem e sobre a responsabilidade
social; mas em seu caráter de indivíduo,
portanto, separado e olhado em si mesmo.
Não admira, pois, que somente uma elite
se beneficiava do American Bill of Rights
de 1789, somente os americanos que não se
misturavam com os negros, católicos, judeus
e ateus.
Aqui
se verifica unia ruptura com a matriz cristã
do século XVI, quando os direitos dos índios
e dos negros eram definidos em termos de
direitos de participação e de reconhecimento
por parte da sociedade como membros pleno
íure.
Por
causa de sua raiz liberal e individualista,
grande parte da luta pelos direitos humanos
até os dias de hoje se concentra em alguns
eixos que interessam mais às classes burguesas
como são os direitos à liberdade de expressão
liberdade religiosa, liberdade de imprensa,
liberdade de propriedade. Inegavelmente
são valores apreciáveis; entretanto, há
que reconhecer, que são direitos exercidos
preferentemente pelos poderosos e não por
todos. As massas populares vivem grandemente
reprimidas e somente pela força ganham
novas garantias.
Os
direitos humanos (especialmente aquele de
propriedade) não são ilimitados a ponto
de implicar opressão sobre os pobres e
fracos. O indivíduo não pode ser considerado
como separado do conjunto da sociedade;
os direitos da pessoa não podem ser definidos
contra os direitos da sociedade; os direitos
individuais têm que estar em sintonia com
os direitos sociais. ~ aqui que ganham relevância
os direitos das grandes maiorias que na
A. Latina reivindicam direitos sociais.
O discurso
pelos direitos humanos, em grande parte,
foi capturado hoje em dia por aqueles agentes
que mais os violam: os sistemas discricionários
de poder. Por isso na A. Latina, não sem
influência das Igrejas, se está impondo
uma linguagem alternativa capaz de evitar
a instrumentalização ideológica da temática
dos direitos humanos. Mais e mais se divulga
a expressão: direitos das maiorias que são
pobres.
O
bem comum é principalmente o bem das maiorias;
a opção preferencial e solidária pelos pobres
quer, fundamentalmente, dizer: opção pelas
grandes maiorias violadas e oprimidas. A
democracia deve ser pensada e realizada
a partir dos marginalizados. A partir dos
pobres se faz clara e urgente uma priorização
entre os direitos humanos: prioridade primeira
detém o direito à vida e aos meios da vida,
como a integridade física, a saúde, a casa,
o trabalho, a segurança social, a educação.
Os demais direitos que continuam sendo
direitos fundamentais, deverão ser definidos
a partir dos direitos básicos. Aí se evidencia
realmente que os direitos humanos significam
efetivamente uma limitação dos privilégios
dos poderosos em favor dos direitos dos
mais débeis para que todos possam criar
e usufruir uma convivência justa e fraterna.
No
término da III Assembléia Geral do Sínodo
dos Bispos dedicada à Evangelização, os
padres sinodais publicaram uma declaração
sobre os direitos humanos e a reconciliação
(REB 34 (1974) (334—936). Ai se fazia, oficialmente,
uma priorização entre os direitos por serem
os mais básicos e os mais ameaçados de todos:
Direito à vida; direito ao alimento; direitos
sócio-econômicos em nível internacional,
pois ai ocorre uma violação da justiça entre
os povos. Direitos políticos e culturais
onde deve haver uma participação de todos
na determinação do destino coletivo. Acrescentava-se
por fim o direito à liberdade religiosa
pela dual se expressa de modo particular
a dignidade da pessoa humana, capaz de uma
relação livre com o Transcendente.
2. Compromisso
das Igrejas com os direitos humanos, especialmente
dos pobres
Vejamos,
rapidamente, como os pobres estão reivindicando
e praticando seus direitos básicos. Em primeiro
lugar se constata um enorme crescimento
do nível de consciência coletiva a respeito
da dignidade que os pobres vão descobrindo
e as negações que sofrem. Isto se manifesta
particularmente em todo tipo de organizações
populares, nos bairros, nas comunidades
onde se luta pelos direitos de uma forma
humilde e eficaz. Nesta linha se devem ver
os vários movimentos de cunho popular,
contra a carestia e alta do custo de vida,
o sindicalismo desvinculado do controle
do ministério do trabalho que representa
as políticas oficiais dos grupos hegemônicos.
Foi,
entretanto, no seio das igrejas que tomou
corpo uma sistemática educação para .os
direitos básicos da vida e unia defesa valente
da dignidade do povo. Desde os anos 60
imperam na AL regimes de Segurança Nacional,
segundo a qual todas as reivindicações que
vão contra os interesses dominantes do
Estado são difamadas de subversivas e tratadas
mediante a suspeição, a repressão, a tortura,
a eliminação física. Mesmo em regime de
distenção esta temática dos direitos humanos
é sempre suspeita pelos Órgãos de Segurança
e um assunto incômodo para o stablishment.
Fui
em situações assim que as Igrejas assumiram
uma autêntica função tribunícia em favor
dos direitos violados do povo. Para conferir
mais eficácia ao seu trabalho de denúncia
e promoção se criaram organismos como no
Chile: a Vicaria de Solidaridad e no Brasil
a CPT, o dM1, e por todas as partes as comissões
de Direitos Humanos, de Justiça e Paz, Secretariados
de Justiça e não Violência e outros tipos
de agrupamentos em prol dos sem-poder e
de sua dignidade.
Observe-se
que tais organizações não visam defender
interesses corporativos da Igreja senão
que querem ser um serviço prestado pela
Igreja aos necessitados de seu povo, pouco
importa sua definição contessional ou ideológica,
seja os indígenas ameaçados de exterminação,
aos camponeses expulsos de suas terras
ou a pessoas desaparecidas ou a denúncia
da deterioração das condições de vida e
de trabalho sofridas pela população. Foi
neste contexto que em quase todos os países
latino-americanos, os vários episcopados
ou grupos organizados lançaram documentos
de grande ressonância como Eu ouvi os clamores
do meu povo (1973) dos bispos do Nordeste,
ou O Grito das Igrejas: a marginalização
de um povo (1973) dos bispos do Centroeste,
ou Não oprimas teu irmão (1974) dos bispos
paulistas.
Houve
um preço a pagar por tal empenho: difamações,
perseguições, sequestros, assassinatos de
leigos, religiosos, sacerdotes e até de
bispos. Em tudo isto se notou por parte
dos cristãos forte espirito das bem-aventuranças.
Nas
bases da Igreja, particularmente na vasta
rede de CEBs, está em vigor uma prática
consequente de direitos humanos e uma verdadeira
pastoral dos direitos dos pobres. Existe
também unia vigorosa apropriação dos direitos
dos batizados: participação comunitária
da Palavra criatividade litúrgica, coordenação
de comunidades, participação junto com o
conselho presbiteral da definição da pastoral
diocesana e paroquial.
3. Fundamentação
teológica dos direitos das maiorias pobres
Não
queremos insistir na argumentação clássica,
de todos conhecida e ainda presente no prólogo
da Declaração Americana dos Direitos humanos,
a referência à igualdade humana baseada
no mesmo e único gesto criador de Deus.
Não queremos também enfatizar o pólo antropológico
de cunho filosófico e o pólo cristológico
de corte religioso. O antropológico: cada
ser humano é transcendente por seu espirito
capaz de um diálogo com o Absoluto, sua
liberdade que o torna hábil a uma autodefinição
definitiva de conferir ou frustrar sentido
a sua própria vida, de forjar para si uma
destinação eterna. O religioso: cada um
é imagem e semelhança de Deus, irmão de
Jesus cuja humanidade pertence a Deus e
assim cada um foi de certa maneira tocado
pela divindade. Tais determinações circunscrevem
a inviolabilidade da pessoa humana, pondo
limites a todos os poderes e condenando
todo tipo de dominação de um sobre o outro.
Queremos
nos deter na fundamentação do direito dos
pobres, como é pensada em nossas Igrejas.
Ademais este é o grande tema bíblico. A
Bíblia não conhece a formulação «direitos
humanos», mas conhece o direito do órfão,
da viúva, do pobre, do emigrante e do forasteiro
que está de passagem. Como vêem, conhece
especialmente nos profetas, na literatura
sapiencial e no NT o direito dos oprimidos.
A
afirmação básica e impressionante é esta:
o direito dos pobres é o direito de Deus.
«Quem oprime o fraco, ultraja seu Criador.
Mas quem se apieda do pobre, lhe dá glória»
(Pr 14,31; 17,5). Todos têm alguém que os
defenda: a mulher o seu marido, o homem
o seu clã, os filhos os seus pais, somente
os pobres não têm ninguém que cuide deles.
Por isso Deus mesmo assumiu a sua causa:
«Ele faz justiça ao órfão e á viúva, ama
o estrangeiro e lhe dá pão e vestido» (Dt
10,18; Jr 22,16; Pr 22,22-23). O salmo 146
é explicito: «O Senhor faz justiça aos oprimidos,
dá pão aos famintos, ele liberta os cativos,
dá vista aos cegos, endireita os encurvados,
o Senhor guarda os estrangeiros e sustenta
o órfão e a viúva», O estrangeiro deve ter
os mesmos direitos que um israelita e uma
mesma sentença (Lv 19,33-34; Ex 12,48).
Deus
não é apenas o supremo garante da ordem
justa, como estamos habituados a crer, mas
é principalmente o que protege o direito
dos sem-poder, dos injustamente perseguidos
e dos pobres. Deus, portanto não toma partido
dos poderosos que dispõem do direito e
o praticam em beneficio seu, mas toma partido
pelos violados em sua dignidade e justiça.
Pertence á primeira tarefa do Messias, o
Salvador do mundo, realizar este direito
divino em favor dos pobres. O Salmo 71,
referindo-se ao Messias, diz: «Ele livrará
o pobre que o invoca, e o miserável que
não tem amparo. Ele se apiedará do fraco
e do indigente. Ele salvará a vida dos necessitados».
Efetivamente, Jesus na Sinagoga de Nazaré
ao apresentar seu programa messiânico, se
reporta a esta tradição conservada em Isaias
61,1-3 (cf. também Is 11,1-10; Lc 4,17-30).
As bem-aventuranças confirmam esta consciência
de Jesus de ser o libertador dos pobres,
dos que choram, sofrem fome, injustiças
e perseguição (Lc 6,20-23; Mt 5,31-12).
Portanto,
Deus é o garante dos direitos básicos dos
pobres (Ex 22,20-22). Este direito, porque
é o direito á vida, é sagrado e inalienável,
anterior a qualquer outro direito. É um
direito infra-estrutural; sobre ele se construirão
todos os demais.
O
fundamento deste direito dos pobres foi
elaborado por Israel ã base de sua experiência
de explorado e estrangeiro no Egito. Foi
meditando sobre sua situação de pobres
e oprimidos que elaboraram sua memória coletiva
expressa como um refrão em tantos textos
do AT: ~<Amareis o estrangeiro, porque
fostes estrangeiros no Egito» (Dt 10,19).
«Não fareis como se fez em terra do Egito
onde habitastes» (Lv 18,3). Porque o povo
foi libertado por Deus de suas opressões,
deverão também estar atentos ás opressões
que sofrem os fracos e sem proteção.
Jó
expressa bem esta consciência de solidariedade:
«Se violei o direito de meu empregado ou
de minha serva nas discussões comigo, que
será de mim quando Deus se levantar? Que
lhe responderei quando me interrogar? Porventura
aquele que me criou no ventre de minha mãe
não criou a eles também? Não foi ele que
nos formou a ambos no seio de nossa mãe»?
(Jó 31,13-15).
Mas
o verdadeiro fundamento reside na concepção
de Deus. Para a Escritura Deus é fundamentalmente
um Deus vivo, Deus de vida. Ele escuta,
fala, vê, conhece, tem sensibilidade pelos
clamores do seu povo suplicando libertação.
Ele se ri dos ídolos que têm boca e não
falam, têm olhos e não vêem, têm mãos e
não sentem.
(SI
115,4-8). Israel deposita sua confiança
no Deus que intervém, que não está longe
dos homens, que constrói o seu Reino, faz
um pacto com OS homens, que é um pacto para
a vida contra tudo o que a ameaça.
Porque
Deus é Deus de vida, toma partido pelo pobre
e oprimido, ameaçado em sua vida. O pobre
não é tal simplesmente, porque é preguiçoso,
O pobre, para a Bíblia, especialmente para
os profetas, é pobre porque foi feito empobrecido,
foi reduzido a uma situação de penúria.
Sente a vida historicamente e não fatalmente
ameaçada. Independente da situação moral
do pobre (se é religioso, se está na graça
de Deus etc). Deus toma partido por ele
(cf. Puebla 1142, onde se afirma isto) porque
toma partido pela vida. Deus entra sempre
que a vida está ameaçada ou quando se nega
a vida aos outros homens.
Portanto,
«esta parcialidade de Deus em favor dos
pobres não é pura arbitrariedade de sua
vontade senão que é essencial á mesma realidade
de Deus. Então afirmar a predileção de Deus
pelos pobres é afirmar de forma concreta
que “Deus é Deus da vida...” (J. Sobrino,
Dios y los procesos revolucionarios, em
Apuntes para una teologia nicaragúense,
1980 III). A realidade
de
Deus como Deus da vida é gerar vida. E Deus
socorre e defende aqueles cuja vida está
ameaçada ou que menos vida têm. Portanto,
Deus é Deus particularmente dos pobres,
O direito dos pobres, que é um direito
ligado ã vida, ao seu sustento e desenvolvimento
é direito de Deus.
Crer
em Deus é crer na vida de todos, especialmente,
na vida dos pobres. Crer em Deus não permite
compactuar com a morte dos pobres, nem em
sublimar suas misérias em nome da cruz ou
de uma vida futura. Onde se agride a vida
se agride Deus. Por isso que a morte de
Cristo, o pobre e crucificado, é um crime.
Onde o cristianismo não expande a vida não
anima a vida, onde as práticas dos cristãos
e de seus hierarcas não criam espaço para
a vida e aquilo que mostra a presença da
vida que é a alegria, a liberdade e a criatividade,
então deve se perguntar que Deus se anuncia
e se adora. Para a Escritura a negação de
Deus não é o ateísmo, mas a idolatria, o
falso deus. E se anunciam como concorrentes
de Deus, como falsos deuses fetiches e ídolos,
especialmente a riqueza, o poder e a avareza
(acumulação). O próprio destes deuses é
que não falam, não escutam, não têm misericórdia,
mas matam, mas assassinam mas querem o sangue
dos outros. Ezequiel fustiga assim os idolátricos:
«Seus chefes no meio da cidade são como
lobos que agarram sua presa, que derramam
seu sangue, matando pessoas para enriquecer-se.
Os detentores das terras fizeram violência,
cometeram pilhagens, oprimiram o pobre
e o indigente, maltrataram o forasteiro
sem nenhum direito» (22,27-29).
Como
se depreende, o idólatra, adorador de ídolos
e fetiches é inimigo da vida, quer a morte
para os outros. Deus, ao contrário, quer
a vida e o Reino da liberdade. Para se saber
onde encontramos o Deus vivo e verdadeiro
devemos ver onde a vida é defendida e os
pobres são respeitados e feitos participantes
da vida.
Para
as Escrituras há tini critério infalível
para se saber se um Estado possui o agrado
de Deus: na forma como trata os pobres.
Se os marginaliza e os considera como zeros
desprezíveis em seu planejamento, estejamos
seguros encontramo-nos face a um Estado
iníquo organizado pelos mecanismos da morte,
sem Deus.
A
mais forte fundamentação do direito dos
pobres como direito de Deus a encontramos
no NT. Primeiramente, eles são feitos os
primeiros destinatários do Reino de Deus
(Lc 4,18 e 6,20). Somente entendemos o Evangelho
como boa-notícia se o entendemos a partir
da perspectiva dos pobres, dos diminuídos
e ameaçados em sua vida.
O
Reino de Deus se constrói contra o Anti-Reino;
o Reino começa realizando-se na medida em
que cegos vêem, coxos andam e pobres são
reabilitados em sua justiça. Então há de
fato boa-nova, Evangelho.
Por
fim na solidariedade com os últimos se realiza
o critério supremo da salvação ou da perdição.
O Deus-encarnado se identifica com os pobres:
«Todas as vezes que fizestes a um destes
meus irmãos mais pequenos, foi a mim que
o tendes feito» (Mt 25,40). Portanto o direito
divino de Jesus se identifica com o direito
dos pobres.
Enquanto
existem tantos pobres a igualdade de todos
os homens, a universalidade de sua dignidade
e a unidade da sociedade permanecem irrisórias.
Fazem-se necessárias profundas mutações
históricas para que seja verdade tudo isto.
E estas transformações
devem ser feitas atendendo primeiramente
as demandas dos pobres de vida, participação
e dignidade.
4.
Evangelizar e servir a Deus é promover e
defender os direitos dos homens especialmente
dos pobres
O
Sinodo dos Bispos de 1974 juntamente com
o Papa Paulo VI expressaram claramente este
ministério da Igreja em favor dos direitos
humanos, especialmente dos humildes. «A
Igreja crê firmemente que a promoção dos
direitos humanos é uma exigência do Evangelho
e deve ocupar um lugar central no seu ministério»
(REB 1974, 935). Fala-se até de «seu ministério
de promover no mundo os direitos humanos»
(ibid).
Em
Puebla os bispos compreenderam que a luta
em prol dos direitos humanos significa «um
imperativo original desta hora de Deus em
nosso continente» (n. 320). A dignidade
humana é para Puebla «um valor evangélico»
(n. 1254) e «parte integrante» de toda evangelização
(1254, 1283). A promoção e defesa dos direitos
humanos implica principalmente a promoção
e defesa dos direitos dos pobres (expressão
que ocorre 5 vezes em Puebla: 1217, 320,
324, 711, 1119), que como vimos se concentram
nos direitos básicos da existência humana
com mínimo de dignidade.
Tal prática
realiza o imperativo do AT e do NT sobre
o sacrifício e o culto que agrada a Deus.
Sabei qual o sacrifício que me agrada? «Procurar
o que é justo, socorrer o oprimido, fazer
justiça ao órfão e defender a viúva» (Is
1,17-18). O próprio Jesus se reporta a esta
tradição (Mc 7,6-8). «O mais importante
da lei», olvidado pelos fariseus e pelos
piedosos, «é a justiça, a misericórdia e
a fidelidade» (Mt 23,23). «i~ isso que importa
fazer», arremata Jesus. Portanto evangelizar,
vale dizer, criar boa-nova, só acontece
quando a realidade de ruim fica boa, quando
os direitos negados aos pobres lhes são
devolvidos. Hoje só se realiza este tipo
de evangelização na medida em que se criam
condições de solidariedade para com os pobres,
para juntos com eles entrar numa prática
que restabeleça o direito e a justiça. A
este processo estão inerentes conflitos
e tensões, pois sempre o direito dos pobres
ê conquistado contra a prepotência e o privilégio
que se defendem e criam inumeráveis percalços
no caminho da libertação. Mas esta situação
deverá ser assumida no espírito das bem-aventuranças,
como o preço a pagar pela libertação.
Como o profeta
vivemos da força que «anuncia com toda a
fidelidade a verdadeira justiça, não desanimará
nem desfalecerá até que haja estabelecido
sobre a terra a verdadeira ordem» (Is 42,3-4).
^
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