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1982
I Encontro Nacional de Direitos Humanos do MNDH
1982, Petrópolis-RJ

 

Direitos dos Pobre Como Direitos Divinos

Palestra proferida pelo Frei Leonardo Boff, O.F.M. no 1 Encontro Nacional de Grupos de Defesa dos Direitos Humanos. 

INTRODUÇÃO 

Se contemplarmos a história moderna da conscientização e elaboração dos direitos humanos constatamos, perplexamente, uma dolorosa ausência da Igreja. O desenvolvimento dos direitos humanos se fez fora da Igreja e muitas vezes contra ela. Testemunho disto são as condenações do final do século passado, especialmente sob Pio IX, no Mirari vos ou no Syllabus. Praticamente o que hoje são considerados direitos fundamentais foram rechaçados pela oficialidade da Igreja. Assim a liberdade de consciência é chamada de errônea sentença e até um delírio (DS 2730); a liberdade de opinião e expressão é qualificada de erro pestilentissimo (DS 2731).

Montalembert cunhou a expressão deste tipo de catolicismo fechado: «Quando sou o mais fraco, apelo á liberdade, porque esse é o vosso principio; quando porém sou o mais forte, nego-vos a mesma liberdade, porque tal é o meu principio» (Lepargneur H. A Igreja e o reconhecimento dos DH, em REB 37 (1977) 1, 178).

Na própria discussão prévia e aprovação da Declaração universal dos direitos do Homem da ONU, a 10 de dezembro de 1948 (Paris) a participação da Igreja foi mínima. Havia desconfiança. Participaram duas organizações católicas, com pouco apoio oficial: A Organização Mundial das Mulheres Católicas e a Confederação Internacional dos Sindicatos Cristãos (Lepargneur II, 181 nota 51). Por que estas reticências que nos envergonham?

É porque a Igreja esteve ligada ao poder civil, o altar ao trono. E toda a luta moderna foi feita contra a prepotência dos poderosos, do Estado, das classes privilegiadas.

Se a presença da Igreja na definição dos direitos foi parca, deve-se, entretanto a ela, um papel decisivo na defesa e promoção destes direitos proclamados por outros. Na medida em que a Igreja foi entrando no mundo dos sem-poder, foi sentindo a violência e a agressão dos direitos humanos. Enquanto ficava longe do caminhar do povo, distante das lutas dos oprimidos em busca de sua libertação e dignidade, ela mostrou-se insensível à paixão do povo e dos que sofrem historicamente o pisoteamento de seus direitos.

Hoje podemos fazer a seguinte verificação: quanto mais uma Igreja se faz popular, entra no continente dos pobres, mais se empenha pelos direitos humanos; o contrário se mostra também verdadeiro: quanto menos uma Igreja se empenha pelos direitos, quanto menos declarações uni bispo faz em prol dos direitos violados, tanto mais distante e desencarnada é sua atitude e sua pastoral do povo e da realidade social vivida pelos pobres. A distância do povo é proporcional á proximidade deste bispo ou desta Igreja ás classes dominantes e ao Estado capitalista controlado por elas.

Entretanto, mais e mais a Igreja Universal entende que pertence ao seu ministério a defesa e promoção dos direitos humanos. Na reflexão e prática eclesiais se chegou a concretizar o que significa a dignidade humana e por onde deve começar a defesa e promoção dos direitos.

Hoje, entendemos que os direitos humanos são principalmente os direitos das grandes maiorias. E estas são pobres. Então lutar pelos direitos humanos é lutar pelos direitos dos pobres, pela dignidade dos oprimidos em primeiro lugar, e a partir deles de todos os homens.

Esta é a única postura teórica e prática verdadeira. Caso contrário cairemos no jogo dos poderosos que também falam de direitos humanos, na medida em que querem apresentar uma face humanistica ás suas práticas de barbárie, de exploração e violação.

Colocar a temática dos direitos humanos em termos de dignidade dos oprimidos é encontrar-se com o dado bíblico e situar-se no melhor da tradição humanistica que exatamente elaborou os direitos humanos.

1. Direitos humanos como direitos das maiorias pobres 

Os antecedentes históricos das várias declarações dos direitos humanos, seja da revolução americana (1776) seja daquela francesa (1789) seja das Nações Unidas (1948), se encontram na luta contra a prepotência do poder. Assim a Carta Magna (1215) considerada a primeira formulação dos direitos dos homens, significava a limitação do poder absoluto do rei. Entretanto é ainda elitista, porque cria os direitos como privilégios da classe nobre feudal e da casta clerical. O resto da população (o terceiro estado) não tem direito nenhum. Só em 1689 na Bill of Rights se reconhece o direito a todos os cidadãos.

A consciência dos direitos humanos despertou com vigor na Europa por ocasião dos debates sobre os direitos dos pobres, isto é, dos índios e negros por ocasião da conquista da América Latina no século XVI. Famosas ficaram as disputas entre Ginés de Sepúlveda e Bartolomé de Ias Casas sobre o estatuto da natureza do índio (disputa de Valladolid de 1550).

Por exemplo Gonzalo Fernãndez de Oviedo (1478-1557) escrevia em sua Historia General y Natural de las índias: «Estas gentes destas índias, embora racionais e da mesma estirpe daquela santa Arca de Noé, tornaram-se irracionais e bestiais por suas idolatrias, sacrifícios e cerimônias infernais» (cf. E. Dussel, A cristandade moderna diante do outro, em Concilium n.º 150 (1979) 58.

Sepúlveda dizia na mesma linha: “O fato de possuírem cidades e um modo racional de viver e algum tipo de comércio é coisa que a própria necessidade natural sugere e serve apenas para provar que não são puros ursos nem macacos e não se acham totalmente destituídos de razão” (Dussel, p. 58).

Como se depreende, vige aqui uma discriminação e posposição das pessoas pelo fato de serem outros, diferentes, pobres.

A questão que Bartolomé de las Casas colocou é esta: 05 índios têm ou não têm direitos iguais aos espanhóis e portugueses? A resposta dele, bem como a de Vieira e de outros defensores dos direitos humanos de então, era: eles têm direitos e direitos iguais porque são seres humanos. Logo são nossos próximos. São por isso chamados a participar da comunidade do povo de Deus e pertencem à mesma família de Deus.

As possíveis desigualdades e diferenças de religião, de moral e mesmo o fato de os aztecas oferecerem sacrifícios humanos não é motivo para serem subjugados e violados em seus direitos humanos. Por causa desta igualdade não é permitido tratá-los como animais ou procurar o bem deles por meios violentos, submetendo-os à escravidão.

Conhecemos as longas disquisições de Francisco de Vitória em Salamanca e Hugo de Grootius em defesa da existência da alma dos índios e de seu caráter inviolável por causa da sacralidade da natureza humana. Entretanto, tudo isto ficou no plano da discussão teórica. Na prática, os potentados e encomenderos seguiam a fome de conquista e a ganância pelo ouro e pelas terras, sem qualquer outra consideração. Não admira pois que entre 1532 e 1568 a população total do México de 16.874.409 habitantes tivesse caído para 2.649.673. A causa não reside apenas nas enfermidades trazidas pelos brancos, mas principalmente pela violência e a desestruturação trazidas pelos conquistadores bandidos (E. Dussel, EI episcopado latinoamericano y Ia Iiberación de los pobres — 1564-1620, México 1979, 19).

O importante reside nisto: uma vez colocada a questão no século XVI ela jamais deixou de ocupar e preocupar a consciência humana até os dias de hoje. O grito dos oprimidos não deixa as consciências dos Estados e das sociedades tranqüilas. 1~rata-se sempre da luta dos fracos contra a prepotência dos poderosos. Exemplo disto é a declaração dos direitos do homem e do cidadão no tempo da revolução francesa. Ela se fez contra a prepotência do Estado e em nome da emancipação do indivíduo. Os «direitos naturais, inalienáveis e sagrados» são proclamados sobre o fundamento da igualdade e universalidade do ser humano.

Não obstante esta universalidade de intenção, percebe-se facilmente o lugar social dos que proclamaram tais direitos: são aqueles que depois serão chamados de burgueses, sujeitos históricos do grande projeto liberal, sustentando o valor do indivíduo, da propriedade privada e da liberdade do cidadão. A liberdade, a propriedade privada bem como a igualdade e a segurança não são fundadas sobre a relação do homem com o outro homem e sobre a responsabilidade social; mas em seu caráter de indivíduo, portanto, separado e olhado em si mesmo. Não admira, pois, que somente uma elite se beneficiava do American Bill of Rights de 1789, somente os americanos que não se misturavam com os negros, católicos, judeus e ateus.

Aqui se verifica unia ruptura com a matriz cristã do século XVI, quando os direitos dos índios e dos negros eram definidos em termos de direitos de participação e de reconhecimento por parte da sociedade como membros pleno íure.

Por causa de sua raiz liberal e individualista, grande parte da luta pelos direitos humanos até os dias de hoje se concentra em alguns eixos que interessam mais às classes burguesas como são os direitos à liberdade de expressão liberdade religiosa, liberdade de imprensa, liberdade de propriedade. Inegavelmente são valores apreciáveis; entretanto, há que reconhecer, que são direitos exercidos preferentemente pelos poderosos e não por todos. As massas populares vivem grandemente reprimidas e somente pela força ganham novas garantias.

Os direitos humanos (especialmente aquele de propriedade) não são ilimitados a ponto de implicar opressão sobre os pobres e fracos. O indivíduo não pode ser considerado como separado do conjunto da sociedade; os direitos da pessoa não podem ser definidos contra os direitos da sociedade; os direitos individuais têm que estar em sintonia com os direitos sociais. ~ aqui que ganham relevância os direitos das grandes maiorias que na A. Latina reivindicam direitos sociais.

O discurso pelos direitos humanos, em grande parte, foi capturado hoje em dia por aqueles agentes que mais os violam: os sistemas discricionários de poder. Por isso na A. Latina, não sem influência das Igrejas, se está impondo uma linguagem alternativa capaz de evitar a instrumentalização ideológica da temática dos direitos humanos. Mais e mais se divulga a expressão: direitos das maiorias que são pobres.

O bem comum é principalmente o bem das maiorias; a opção preferencial e solidária pelos pobres quer, fundamentalmente, dizer: opção pelas grandes maiorias violadas e oprimidas. A democracia deve ser pensada e realizada a partir dos marginalizados. A partir dos pobres se faz clara e urgente uma priorização entre os direitos humanos: prioridade primeira detém o direito à vida e aos meios da vida, como a integridade física, a saúde, a casa, o trabalho, a segurança social, a educação. Os demais direitos que continuam sendo direitos fundamentais, deverão ser definidos a partir dos direitos básicos. Aí se evidencia realmente que os direitos humanos significam efetivamente uma limitação dos privilégios dos poderosos em favor dos direitos dos mais débeis para que todos possam criar e usufruir uma convivência justa e fraterna.

No término da III Assembléia Geral do Sínodo dos Bispos dedicada à Evangelização, os padres sinodais publicaram uma declaração sobre os direitos humanos e a reconciliação (REB 34 (1974) (334—936). Ai se fazia, oficialmente, uma priorização entre os direitos por serem os mais básicos e os mais ameaçados de todos: Direito à vida; direito ao alimento; direitos sócio-econômicos em nível internacional, pois ai ocorre uma violação da justiça entre os povos. Direitos políticos e culturais onde deve haver uma participação de todos na determinação do destino coletivo. Acrescentava-se por fim o direito à liberdade religiosa pela dual se expressa de modo particular a dignidade da pessoa humana, capaz de uma relação livre com o Transcendente.

 

2. Compromisso das Igrejas com os direitos humanos, especialmente dos pobres

Vejamos, rapidamente, como os pobres estão reivindicando e praticando seus direitos básicos. Em primeiro lugar se constata um enorme crescimento do nível de consciência coletiva a respeito da dignidade que os pobres vão descobrindo e as negações que sofrem. Isto se manifesta particularmente em todo tipo de organizações populares, nos bairros, nas comunidades onde se luta pelos direitos de uma forma humilde e eficaz. Nesta linha se devem ver os vários movimentos de cunho popular, contra a carestia e alta do custo de vida, o sindicalismo desvinculado do controle do ministério do trabalho que representa as políticas oficiais dos grupos hegemônicos.

Foi, entretanto, no seio das igrejas que tomou corpo uma sistemática educação para .os direitos básicos da vida e unia defesa valente da dignidade do povo. Desde os anos 60 imperam na AL regimes de Segurança Nacional, segundo a qual todas as reivindicações que vão contra os interesses dominantes do Estado são difamadas de subversivas e tratadas mediante a suspeição, a repressão, a tortura, a eliminação física. Mesmo em regime de distenção esta temática dos direitos humanos é sempre suspeita pelos Órgãos de Segurança e um assunto incômodo para o stablishment.

Fui em situações assim que as Igrejas assumiram uma autêntica função tribunícia em favor dos direitos violados do povo. Para conferir mais eficácia ao seu trabalho de denúncia e promoção se criaram organismos como no Chile: a Vicaria de Solidaridad e no Brasil a CPT, o dM1, e por todas as partes as comissões de Direitos Humanos, de Justiça e Paz, Secretariados de Justiça e não Violência e outros tipos de agrupamentos em prol dos sem-poder e de sua dignidade.

Observe-se que tais organizações não visam defender interesses corporativos da Igreja senão que querem ser um serviço prestado pela Igreja aos necessitados de seu povo, pouco importa sua definição contessional ou ideológica, seja os indígenas ameaçados de exterminação, aos camponeses expulsos de suas terras ou a pessoas desaparecidas ou a denúncia da deterioração das condições de vida e de trabalho sofridas pela população. Foi neste contexto que em quase todos os países latino-americanos, os vários episcopados ou grupos organizados lançaram documentos de grande ressonância como Eu ouvi os clamores do meu povo (1973) dos bispos do Nordeste, ou O Grito das Igrejas: a marginalização de um povo (1973) dos bispos do Centroeste, ou Não oprimas teu irmão (1974) dos bispos paulistas.

Houve um preço a pagar por tal empenho: difamações, perseguições, sequestros, assassinatos de leigos, religiosos, sacerdotes e até de bispos. Em tudo isto se notou por parte dos cristãos forte espirito das bem-aventuranças.

Nas bases da Igreja, particularmente na vasta rede de CEBs, está em vigor uma prática consequente de direitos humanos e uma verdadeira pastoral dos direitos dos pobres. Existe também unia vigorosa apropriação dos direitos dos batizados: participação comunitária da Palavra criatividade litúrgica, coordenação de comunidades, participação junto com o conselho presbiteral da definição da pastoral diocesana e paroquial.

 

3. Fundamentação teológica dos direitos das maiorias pobres

Não queremos insistir na argumentação clássica, de todos conhecida e ainda presente no prólogo da Declaração Americana dos Direitos humanos, a referência à igualdade humana baseada no mesmo e único gesto criador de Deus. Não queremos também enfatizar o pólo antropológico de cunho filosófico e o pólo cristológico de corte religioso. O antropológico: cada ser humano é transcendente por seu espirito capaz de um diálogo com o Absoluto, sua liberdade que o torna hábil a uma autodefinição definitiva de conferir ou frustrar sentido a sua própria vida, de forjar para si uma destinação eterna. O religioso: cada um é imagem e semelhança de Deus, irmão de Jesus cuja humanidade pertence a Deus e assim cada um foi de certa maneira tocado pela divindade. Tais determinações circunscrevem a inviolabilidade da pessoa humana, pondo limites a todos os poderes e condenando todo tipo de dominação de um sobre o outro.

Queremos nos deter na fundamentação do direito dos pobres, como é pensada em nossas Igrejas. Ademais este é o grande tema bíblico. A Bíblia não conhece a formulação «direitos humanos», mas conhece o direito do órfão, da viúva, do pobre, do emigrante e do forasteiro que está de passagem. Como vêem, conhece especialmente nos profetas, na literatura sapiencial e no NT o direito dos oprimidos.

A afirmação básica e impressionante é esta: o direito dos pobres é o direito de Deus. «Quem oprime o fraco, ultraja seu Criador. Mas quem se apieda do pobre, lhe dá glória» (Pr 14,31; 17,5). Todos têm alguém que os defenda: a mulher o seu marido, o homem o seu clã, os filhos os seus pais, somente os pobres não têm ninguém que cuide deles. Por isso Deus mesmo assumiu a sua causa: «Ele faz justiça ao órfão e á viúva, ama o estrangeiro e lhe dá pão e vestido» (Dt 10,18; Jr 22,16; Pr 22,22-23). O salmo 146 é explicito: «O Senhor faz justiça aos oprimidos, dá pão aos famintos, ele liberta os cativos, dá vista aos cegos, endireita os encurvados, o Senhor guarda os estrangeiros e sustenta o órfão e a viúva», O estrangeiro deve ter os mesmos direitos que um israelita e uma mesma sentença (Lv 19,33-34; Ex 12,48).

Deus não é apenas o supremo garante da ordem justa, como estamos habituados a crer, mas é principalmente o que protege o direito dos sem-poder, dos injustamente perseguidos e dos pobres. Deus, portanto não toma partido dos poderosos que dispõem do direito e o praticam em beneficio seu, mas toma partido pelos violados em sua dignidade e justiça. Pertence á primeira tarefa do Messias, o Salvador do mundo, realizar este direito divino em favor dos pobres. O Salmo 71, referindo-se ao Messias, diz: «Ele livrará o pobre que o invoca, e o miserável que não tem amparo. Ele se apiedará do fraco e do indigente. Ele salvará a vida dos necessitados». Efetivamente, Jesus na Sinagoga de Nazaré ao apresentar seu programa messiânico, se reporta a esta tradição conservada em Isaias 61,1-3 (cf. também Is 11,1-10; Lc 4,17-30). As bem-aventuranças confirmam esta consciência de Jesus de ser o libertador dos pobres, dos que choram, sofrem fome, injustiças e perseguição (Lc 6,20-23; Mt 5,31-12).

Portanto, Deus é o garante dos direitos básicos dos pobres (Ex 22,20-22). Este direito, porque é o direito á vida, é sagrado e inalienável, anterior a qualquer outro direito. É um direito infra-estrutural; sobre ele se construirão todos os demais.

O fundamento deste direito dos pobres foi elaborado por Israel ã base de sua experiência de explorado e estrangeiro no Egito. Foi meditando sobre sua situação de pobres e oprimidos que elaboraram sua memória coletiva expressa como um refrão em tantos textos do AT: ~<Amareis o estrangeiro, porque fostes estrangeiros no Egito» (Dt 10,19). «Não fareis como se fez em terra do Egito onde habitastes» (Lv 18,3). Porque o povo foi libertado por Deus de suas opressões, deverão também estar atentos ás opressões que sofrem os fracos e sem proteção.

Jó expressa bem esta consciência de solidariedade: «Se violei o direito de meu empregado ou de minha serva nas discussões comigo, que será de mim quando Deus se levantar? Que lhe responderei quando me interrogar? Porventura aquele que me criou no ventre de minha mãe não criou a eles também? Não foi ele que nos formou a ambos no seio de nossa mãe»? (Jó 31,13-15).

Mas o verdadeiro fundamento reside na concepção de Deus. Para a Escritura Deus é fundamentalmente um Deus vivo, Deus de vida. Ele escuta, fala, vê, conhece, tem sensibilidade pelos clamores do seu povo suplicando libertação. Ele se ri dos ídolos que têm boca e não falam, têm olhos e não vêem, têm mãos e não sentem.

(SI 115,4-8). Israel deposita sua confiança no Deus que intervém, que não está longe dos homens, que constrói o seu Reino, faz um pacto com OS homens, que é um pacto para a vida contra tudo o que a ameaça.

Porque Deus é Deus de vida, toma partido pelo pobre e oprimido, ameaçado em sua vida. O pobre não é tal simplesmente, porque é preguiçoso, O pobre, para a Bíblia, especialmente para os profetas, é pobre porque foi feito empobrecido, foi reduzido a uma situação de penúria. Sente a vida historicamente e não fatalmente ameaçada. Independente da situação moral do pobre (se é religioso, se está na graça de Deus etc). Deus toma partido por ele (cf. Puebla 1142, onde se afirma isto) porque toma partido pela vida. Deus entra sempre que a vida está ameaçada ou quando se nega a vida aos outros homens.

Portanto, «esta parcialidade de Deus em favor dos pobres não é pura arbitrariedade de sua vontade senão que é essencial á mesma realidade de Deus. Então afirmar a predileção de Deus pelos pobres é afirmar de forma concreta que “Deus é Deus da vida...” (J. Sobrino, Dios y los procesos revolucionarios, em Apuntes para una teologia nicaragúense, 1980 III). A realidade

de Deus como Deus da vida é gerar vida. E Deus socorre e defende aqueles cuja vida está ameaçada ou que menos vida têm. Portanto, Deus é Deus particularmente dos pobres, O direito dos pobres, que é um direito ligado ã vida, ao seu sustento e desenvolvimento é direito de Deus.

Crer em Deus é crer na vida de todos, especialmente, na vida dos pobres. Crer em Deus não permite compactuar com a morte dos pobres, nem em sublimar suas misérias em nome da cruz ou de uma vida futura. Onde se agride a vida se agride Deus. Por isso que a morte de Cristo, o pobre e crucificado, é um crime. Onde o cristianismo não expande a vida não anima a vida, onde as práticas dos cristãos e de seus hierarcas não criam espaço para a vida e aquilo que mostra a presença da vida que é a alegria, a liberdade e a criatividade, então deve se perguntar que Deus se anuncia e se adora. Para a Escritura a negação de Deus não é o ateísmo, mas a idolatria, o falso deus. E se anunciam como concorrentes de Deus, como falsos deuses fetiches e ídolos, especialmente a riqueza, o poder e a avareza (acumulação). O próprio destes deuses é que não falam, não escutam, não têm misericórdia, mas matam, mas assassinam mas querem o sangue dos outros. Ezequiel fustiga assim os idolátricos: «Seus chefes no meio da cidade são como lobos que agarram sua presa, que derramam seu sangue, matando pessoas para enriquecer-se. Os detentores das terras fizeram violência, cometeram pilhagens, oprimiram o pobre e o indigente, maltrataram o forasteiro sem nenhum direito» (22,27-29).

Como se depreende, o idólatra, adorador de ídolos e fetiches é inimigo da vida, quer a morte para os outros. Deus, ao contrário, quer a vida e o Reino da liberdade. Para se saber onde encontramos o Deus vivo e verdadeiro devemos ver onde a vida é defendida e os pobres são respeitados e feitos participantes da vida.

Para as Escrituras há tini critério infalível para se saber se um Estado possui o agrado de Deus: na forma como trata os pobres. Se os marginaliza e os considera como zeros desprezíveis em seu planejamento, estejamos seguros encontramo-nos face a um Estado iníquo organizado pelos mecanismos da morte, sem Deus.

A mais forte fundamentação do direito dos pobres como direito de Deus a encontramos no NT. Primeiramente, eles são feitos os primeiros destinatários do Reino de Deus (Lc 4,18 e 6,20). Somente entendemos o Evangelho como boa-notícia se o entendemos a partir da perspectiva dos pobres, dos diminuídos e ameaçados em sua vida.

O Reino de Deus se constrói contra o Anti-Reino; o Reino começa realizando-se na medida em que cegos vêem, coxos andam e pobres são reabilitados em sua justiça. Então há de fato boa-nova, Evangelho.

Por fim na solidariedade com os últimos se realiza o critério supremo da salvação ou da perdição. O Deus-encarnado se identifica com os pobres: «Todas as vezes que fizestes a um destes meus irmãos mais pequenos, foi a mim que o tendes feito» (Mt 25,40). Portanto o direito divino de Jesus se identifica com o direito dos pobres.

Enquanto existem tantos pobres a igualdade de todos os homens, a universalidade de sua dignidade e a unidade da sociedade permanecem irrisórias. Fazem-se necessárias profundas mutações históricas para que seja verdade tudo isto.

E estas transformações devem ser feitas atendendo primeiramente as demandas dos pobres de vida, participação e dignidade.

 

4. Evangelizar e servir a Deus é promover e defender os direitos dos homens especialmente dos pobres

O Sinodo dos Bispos de 1974 juntamente com o Papa Paulo VI expressaram claramente este ministério da Igreja em favor dos direitos humanos, especialmente dos humildes. «A Igreja crê firmemente que a promoção dos direitos humanos é uma exigência do Evangelho e deve ocupar um lugar central no seu ministério» (REB 1974, 935). Fala-se até de «seu ministério de promover no mundo os direitos humanos» (ibid).

Em Puebla os bispos compreenderam que a luta em prol dos direitos humanos significa «um imperativo original desta hora de Deus em nosso continente» (n. 320). A dignidade humana é para Puebla «um valor evangélico» (n. 1254) e «parte integrante» de toda evangelização (1254, 1283). A promoção e defesa dos direitos humanos implica principalmente a promoção e defesa dos direitos dos pobres (expressão que ocorre 5 vezes em Puebla: 1217, 320, 324, 711, 1119), que como vimos se concentram nos direitos básicos da existência humana com mínimo de dignidade.

Tal prática realiza o imperativo do AT e do NT sobre o sacrifício e o culto que agrada a Deus. Sabei qual o sacrifício que me agrada? «Procurar o que é justo, socorrer o oprimido, fazer justiça ao órfão e defender a viúva» (Is 1,17-18). O próprio Jesus se reporta a esta tradição (Mc 7,6-8). «O mais importante da lei», olvidado pelos fariseus e pelos piedosos, «é a justiça, a misericórdia e a fidelidade» (Mt 23,23). «i~ isso que importa fazer», arremata Jesus. Portanto evangelizar, vale dizer, criar boa-nova, só acontece quando a realidade de ruim fica boa, quando os direitos negados aos pobres lhes são devolvidos. Hoje só se realiza este tipo de evangelização na medida em que se criam condições de solidariedade para com os pobres, para juntos com eles entrar numa prática que restabeleça o direito e a justiça. A este processo estão inerentes conflitos e tensões, pois sempre o direito dos pobres ê conquistado contra a prepotência e o privilégio que se defendem e criam inumeráveis percalços no caminho da libertação. Mas esta situação deverá ser assumida no espírito das bem-aventuranças, como o preço a pagar pela libertação.

Como o profeta vivemos da força que «anuncia com toda a fidelidade a verdadeira justiça, não desanimará nem desfalecerá até que haja estabelecido sobre a terra a verdadeira ordem» (Is 42,3-4).

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