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Gestão
Participativa no Brasil: Rubens Pinto Lyra (*) Introdução
As mudanças, do ponto de vista democrático, relacionadas com as políticas públicas de segurança, são produtos de uma nova sociabilidade política, gerada, nos anos setenta, nas lutas dos movimentos sociais contra a ditadura militar de então. Há mais de vinte anos elas vem transformando a sociedade brasileira, e, pari passu, colocando o cidadão comum como protagonista central da práxis política. Com efeito, a Constituição de 1988, ao consagrar, junto com os mecanismos de representação, o princípio de participação direta na gestão pública produziu – ou inspirou – o surgimento de diversos institutos de gestão ou fiscalização de políticas públicas, que corporificam essa práxis participativa: as consultas populares, os conselhos gestores de políticas públicas, o orçamento participativo e as ouvidorias. Tais mudanças repercutiram também, nas áreas de segurança e de justiça. Graças à iniciativa de militantes de direitos humanos, foram criados Conselhos Estaduais encarregados da defesa e da promoção desses direitos, com a presença majoritária de órgãos independentes do Governo; Conselhos de Segurança e de Justiça, dotados de expressiva participação da sociedade civil e Ouvidorias autônomas, com seus titulares recrutados fora da corporação policial. A atuação desses órgãos ligados à sociedade tem-se revelado eficaz na prevenção e mediação de conflitos, conforme procuramos demonstrar neste trabalho. E contribuido, concomitantemente, para a geração de um campo ético-político inovador, onde velhos antagonismos se convertem em uma cooperação que objetiva a construção de uma polícia protetora dos direitos do cidadão. Este trabalho, dividido em quatro seções, analisa os Conselhos e Ouvidorias que atuam na área da segurança e de justiça. Na primeira seção, teceremos algumas considerações gerais sobre a importância da democracia participativa e as perspectivas de seu incremento no governo petista. Na segunda, faremos a análise do formato e o papel dos conselhos gestores ou fiscalizadores de políticas públicas, com atribuições nas áreas da segurança e da justiça. Na terceira, examinaremos o formato e o papel das Ouvidorias de Polícia (ou de “defesa social”) e da Ouvidoria Agrária Nacional. Em ambos os casos, o foco da análise será a atuação dos Conselhos e Ouvidorias como órgãos educativos, normativos, propositivos, e de fiscalização, e como mediadores na solução de conflitos. Finalmente, na quarta, identificaremos a emergência de um novo campo ético-político na práxis desenvolvida pelos conselhos supramencionados. Para a elaboração do presente trabalho, utilizamos, predominantemente, a pesquisa bibliográfica e nela, sobretudo, as fontes primárias: toda a legislação sobre Conselhos de Defesa Social, de Direitos Humanos e das Ouvidorias de Policia foi consultada. Valemo-nos, também, de depoimentos orais dados por atuais e ex-dirigentes dos órgãos estudados. Como fontes secundárias, utilizamos obras especializadas para embasar nossas análises acerca do espaço ético-político gerado pelo relacionamento entre integrantes do aparelho de segurança do Estado e representantes da sociedade, de órgãos de promoção de cidadania e de intelectuais engajados na defesa dos direitos humanos. Estudamos os dois Conselhos de Defesa Social (Pará e Alagoas) e os três de Direitos Humanos mais atuantes e nos quais a participação da sociedade é expressiva. As Ouvidorias de Polícia escolhidas para estudo de caso foram a de São Paulo – de longe, a de atuação mais conhecida – e a do Pará, que vem adquirindo notoriedade nos últimos anos. A Ouvidoria Agrária Nacional também foi objeto de nossa análise. O período coberto pela pesquisa corresponde ao da existência dos Conselhos de Direitos Humanos (desde 1992), dos Conselhos de Defesa Social (desde 1996) e das Ouvidorias Estaduais de Polícia (desde 1995), até a presente data. I – A Democracia Participativa O Brasil se constitui, atualmente, no palco de uma experiência que o coloca na vanguarda mundial da participação cidadã na gestão pública, pelo número de pessoas que envolve, em um país de dimensões continentais, e pela diversidade dos instrumentos que a conforma. Assim, milhares de pessoas participam de conselhos gestores de políticas públicas em todo o território nacional. Centenas de milhares de pessoas debatem, em aproximadamente duzentas cidades – e em alguns Estados - nas reuniões do orçamento participativo. Já as ouvidorias públicas se distribuem de forma bastante desigual no país, chegando a aproximadamente um milhar, mas dessas apenas um número pouco expressivo goza de autonomia efetiva (Lyra, 2002, p.8). Assinale-se que tal experiência oferece um campo fértil e amplo para a pesquisa acadêmica, já que são pouquíssimos os estudos, do ponto de vista sociológico ou político, de alguns dos institutos acima mencionados, a começar pelas ouvidorias públicas. Já sobre o orçamento participativo, existe um certo número de trabalhos - mas ainda muito escassos. E, mesmo assim, quase somente estudos de caso. Em relação aos conselhos, abundam estudos do mesmo tipo sobre os que gerem políticas públicas, nas áreas de saúde e em outras onde prevalece a disputa pelo fundo público. Já sobre os conselhos de direitos na área da segurança e da justiça quase não existe pesquisas a respeito. Porém, além das lacunas citadas, a maior delas é a de existirem poucos trabalhos que abordem, do ponto de vista conceitual, a democracia participativa no Brasil, o significado político desta experiência, a natureza e o caráter de seus diversos institutos. Em síntese, a democracia participativa como espaço de contra-hegemonia. Na campanha eleitoral, o tema da participação da cidadania na gestão pública foi raramente abordado. Como os partidos de esquerda – notadamente o PT – têm compromissos históricos com a “radicalização da democracia”, é possível que o pragmatismo e as considerações da realpolitik, já presentes na campanha, tenha condicionado o pouco espaço conferido a esse tema. Em artigo publicado na revista Teoria e Debate, do Partido dos Trabalhadores, Avritzer lembra que “as políticas participativas são a marca das administrações do PT. Agora que o partido assume a Presidência da República, a discussão sobre a implantação dessas políticas se faz necessária”. (Avritzer, 2003). Ocorre, porém, que as opções econômicas e a orientação política do governo petista tornam difícil um engajamento efetivo na matéria. Não obstante, no campo da segurança pública, as iniciativas governamentais apresentam avanços na gestão do controle social, aprofundando diretrizes e iniciativas tomadas pelo Governo anterior nessa área. Tais iniciativas vem procedendo, com efeito, “a essencial valorização da Ouvidoria, a qualificação de dados e rotinas de planejamento, além da implantação de processos de avaliação e monitoramento, com transparência e participação social”. (Soares, 2003). A proposta de “Ouvidorias autônomas e independentes”que consta do Projeto Segurança Pública para o Brasil, contendo as diretrizes do Governo na área, confirma a opção deste por Ouvidorias dotadas de legitimidade para exercer, em nome da sociedade, a sua função de órgão de defesa dos direitos do cidadão. Todavia, seria de esperar que, em relação aos Conselhos Estaduais de Segurança Pública, o projeto em análise estimulasse a criação de colegiados deliberativos, com expressiva participação da sociedade, a exemplo dos que analisaremos adiante. Estes demonstram terem o formato e as atribuições adequadas à consecução de uma política democrática de segurança pública. Mas o que o projeto propõe é a criação de Conselhos Consultivos de Segurança, e não Deliberativos (Brasil, 2002) II – Conselhos nas Áreas da Segurança e da Justiça Os Conselhos de Direitos Humanos são órgãos de caráter propositivo, educativo, de fiscalização e de mediação, e não de Governo. Com algumas variações, já que cada Estado legisla livremente sobre a matéria, compete-lhes propor as diretrizes para o Poder Público Estadual atuar nas questões relativas aos direitos do homem e do cidadão e sugerir mecanismos legais para a institucionalização desses direitos. Sua função educativa se baseia no dispositivo legal que lhe atribui competência para estimular e promover programas educativos, e eventos que incentivem o debate sobre os direitos do homem e do cidadão. Os Conselhos exercem a sua função fiscalizadora denunciando e investigando as violações de direitos humanos nos Estados, podendo ter acesso a qualquer unidade pública estadual para o acompanhamento de diligências, exames ou inspeções. De seu poder de fiscalização deriva a sua ação mediadora, voltada sobretudo para a solução de conflitos que envolvem entre outros, rebeliões de apenados e manifestações de movimentos sociais que sejam consideradas atentatórias à ordem jurídica vigente. Vê-se que os Conselhos de Direitos Humanos não integram o Poder Executivo, nem, aliás, nenhum dos poderes do Estado. Portanto, não deliberam sobre políticas públicas, mas opinam a respeito e fiscalizam a sua implementação. Deles participam representantes do Poder Executivo Estadual, o Ministério Público, Organizações Não-Governamentais (ONGs), Universidades, Centros de Direitos Humanos, conselhos profissionais e associações, com atividades relacionadas à defesa e promoção dos direitos do homem e da cidadania. Existem conselhos em quinze Estados da federação, dos quais oito – e, não por acaso, os que gozam de maior autonomia – em pleno funcionamento. Quase sempre, os serviços prestados pelos seus membros não são remunerados. São considerados relevantes para os Estados e têm prioridade sobre as demais atividades dos conselheiros no serviço público. (Lyra, 1996, p. 145-188) Estão em curso propostas para a criação de Conselhos de Direitos Humanos em Pernambuco, Rio Grande do Sul e Maranhão e para a reestruturação desses Conselhos, com a maior participação da sociedade, nos Estados de Sergipe, Pará e Paraná. Já os Conselhos de “defesa social”, de “segurança” ou de “segurança e de justiça” – são órgãos do Governo, investidos - pelo menos os atualmente existentes – de poder decisório. A eles estão afetos as políticas de segurança e de justiça dos Estados, competindo-lhe formular, deliberar e supervisionar a implementação dessas políticas. Devem, também, realizar estudos técnicos sobre as questões de sua competência e promover a integração dos órgãos que compõem o sistema de justiça e de segurança, estimulando a participação da sociedade na formulação das políticas do setor. São muito poucos os Conselhos de Defesa Social existentes, sendo que apenas dois deles têm representação significativa e autônoma da sociedade. Mas a tendência é a sua proliferação, face às diretrizes do Projeto Nacional de Segurança Pública do Governo Federal, que condiciona a concessão de verbas à área à criação desses Conselhos. A natureza dos órgãos e entidades que compõem os Conselhos de Defesa Social não difere da dos integrantes dos Conselhos de Direitos Humanos, salvo na proporção de organizações independentes do Governo Estadual – regra geral, maior, nos Conselhos de Direitos Humanos. Os integrantes dos Conselhos de Defesa Social, regra geral, não percebem jeton para comparecimento às suas reuniões, sendo, também, suas atividades consideradas relevantes para o serviço público de seus respectivos Estados. Critérios de qualificação de seus integrantes Antes de abordar a matéria relativa aos requisitos referentes à composição desses Conselhos, importa examinar uma questão que a precede, quase nunca analisada, que diz respeito ao critério atualmente adotado para qualificar as organizações que devem integrar os Conselhos. Esse critério remete a uma paridade nem sempre adequada, e a uma esdrúxula dicotomia, que divide as entidades e órgãos em “governamentais” e “não-governamentais”.Ora, nem todos os órgãos e entidades representativas da sociedade se enquadram nessa classificação. Por exemplo, a OAB. Ela é uma das mais destacadas representantes da sociedade civil no Conselho Estadual de Direitos do Homem e do Cidadão da Paraíba, (CEDDHC) - e em muitos outros Conselhos. Ao mesmo tempo, exerce funções de fiscalização do exercício da profissão de advogado, que é uma prerrogativa de Estado. Da mesma forma, os conselhos profissionais representados no CEDDHC, como os de Medicina e de Economia. Por seu turno, a Associação Paraibana de Imprensa não configura o perfil clássico de uma ONG. Já a Comissão de Direitos Humanos, apesar de pertencer a Universidade Federal da Paraíba, (UFPB), se não pode ser considerada “privada”, tampouco pode ser encarada como “governamental” propriamente dita, pois seus membros, eleitos pelo Conselho Universitário, escolhem livremente sua Diretoria e esta dirige, de forma autônoma, a Comissão, sem qualquer ingerência da administração universitária. (Lyra, 2002, p.180). O próprio CEDDHC é um ente estatal híbrido, ou paraestatal, visto que congrega representação do Governo, mas também de órgãos públicos que não são Governo, e de entidades da sociedade de diversa natureza, entre elas algumas ONGs. Não é portanto, nem “governamental”, nem tampouco “não-governamental”. Aliás, a impropriedade da classificação “governamental” e “não-governamental” se assemelha e, em parte, se associa, mutatis mutandis, à falsa dicotomia “estatal- privado”. Com efeito, nessa conceituação, o público, locus da práxis democrática, cujo fundamento é o exercício da cidadania, fica engessado na camisa-de-força do estatal (“governamental”) enquanto o privado, esfera predominantemente ocupada por interesses mercantis, corresponderia ao “não-governamental”, sempre positivamente conotado, sinônimo de entidades independentes, lídimas representantes da sociedade civil. Melhor seria adotar os critérios contidos no documento conhecido como “Princípios de Paris”, consubstanciados na resolução 1.992/ 54, de 3/3/1992, da Comissão de Direitos Humanos da Organização das Nações Unidas (ONU, 1992). Esta resolução consagra procedimentos que garantem a representação pluralista de todos os setores da sociedade ligados à promoção dos Direitos Humanos. Assim, devem ter assento nos Conselhos de fiscalização e de gestão das políticas publicas, não só ONGs e órgãos do Governo, mas também sindicatos, organizações sociais e profissionais, além de universidades e representantes do Parlamento. Avaliaremos, primeiramente, os requisitos de legitimidade para a constituição dos Conselhos de “Defesa Social”. Em primeiro lugar, é bom lembrar que tais Conselhos integram o Poder Executivo dos Estados. Em assim sendo, os requisitos para a sua legitimidade são distintos dos referentes aos Conselhos de Direitos Humanos. Para que os Conselhos de Segurança sejam idôneos, a primeira condição é a participação expressiva da sociedade civil. Isto porque, o Poder Executivo, no qual se inserem esses Conselhos, têm como chefe um Governador eleito por sufrágio universal – a quem cabe, portanto, um papel decisivo na formulação das políticas públicas. Desta forma, a presença da sociedade tem, sobretudo, a finalidade de sensibilizar o poder público, pressionando-o para que tenha em conta as suas reais necessidades. Portanto, em tais Conselhos, é legítimo que metade ou mais dos seus integrantes seja governamental; que o seu Presidente seja o Governador, ou o Secretário Estadual de Segurança Pública e que estes homologuem as suas decisões. A segunda condição reside na autonomia das entidades que participam dos conselhos. Atenção: não é autonomia do Conselho perante a administração, da qual é parte integrante, mas das entidades que representam a sociedade no Conselho. Já em termos formais, para que a autonomia exista, é importante que os representantes da sociedade que compõem os Conselhos sejam escolhidos pelas suas próprias entidades, o que infelizmente só ocorre em dois conselhos de defesa social do país – os de Alagoas e do Pará. Até mesmo no Rio Grande do Sul, que conta com expressiva participação da sociedade civil, os representantes desta são de livre nomeação do Governador (Rio Grande do Sul, 1996). Talvez esteja aí a explicação da fragilidade do conselho de segurança desse Estado. Segundo denúncia de um de seus membros, há sete meses ele não era convocado para reuniões desse órgão (Tavares, 2002). Examinaremos, na seqüência, as questões relativas aos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos, analisando os de atuação mais destacada, como o Conselho Estadual de Direitos do Homem e do Cidadão, o CEDDHC. Criado pela lei estadual 5.551, de quatorze de janeiro de 1992, esse Conselho foi o primeiro do gênero instalado no Brasil, em março do mesmo ano (Paraíba, 1992). O Conselho de São Paulo fora criado antes, mas o da Paraíba foi instalado primeiro, em virtude da polêmica dos idealizadores do Conselho paulista com o governo Luiz Antônio Fleury, relativa ao direito dos integrantes dos Conselhos de Direitos Humanos de ingressarem livremente nos estabelecimentos ligados ao sistema penitenciário do Estado para a realização de vistorias ou perícias no sistema penitenciário, finalmente assegurado com a modificação da lei que criou o Conselho paulista (São Paulo, 1991 e 1992). Com efeito, sem a garantia desse direito, a autonomia do Conselho fica em grande parte esvaziada, mesmo quando os demais requisitos para sua efetiva existência estejam presentes. Esses outros requisitos são: que as suas diretorias sejam dotadas de mandato certo e livremente eleitas, e que a maioria dos seus integrantes seja constituída de entidades ou órgãos - públicos ou privados – independentes do Governo. Estes pressupostos são a conditio sine qua non para sua legitimidade, pois são colegiados que fiscalizam a política de direitos humanos do Executivo. Vimos, pois, que os Conselhos de Defesa Social e os de Direitos Humanos possuem natureza diferente, sendo o primeiro gestor das políticas públicas na área de segurança e da justiça e o segundo órgão de fiscalização, de monitoramento e de avaliação dessas políticas. É fundamental que os Conselhos de Defesa Social e de Direitos Humanos atendam os requisitos que os legitimam para que a sociedade, presente, sob distintas condições, nesses órgãos, possa exercer, no seu âmbito, a sua relevante tarefa de controle social. Com efeito, na medida em que isso ocorra, as responsabilidades de governo são melhor compartilhadas pelos cidadãos. A presença destes implica, geralmente, em uma maior transparência na administração e, por tabela, na diminuição do desperdício e de casos de corrupção. Ela também implica na maior aceitação, por parte da sociedade, das decisões emanadas do Estado. A participação societal contribui, ainda, para uma maior eficácia nas estratégias de luta contra a criminalidade e na conscientização da necessidade de uma cidadania ativa, como o melhor ingrediente para garantia da segurança de todos. Finalmente, é a participação da sociedade que torna relevante o papel desses conselhos na ação de prevenção e mediação dos conflitos. Prevenção e mediação de conflitos O exemplo do CEDDHC é particularmente ilustrativo a esse respeito. Artigo da pesquisadora Vera Candau, publicado nos cadernos Novamérica, em setembro de 2001, referente às experiências de educação em direitos humanos na América Latina, destaca a importância da realizações do Conselho nessa área. Vou referir-me apenas às iniciativas, citadas por Candau, que interessam, diretamente, à prevenção de conflitos. Ela lembra que tais iniciativas foram levadas a cabo em parceria com a Secretaria de Direitos Humanos, a Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos, o Movimento Nacional de Direitos Humanos, entre outros importantes órgãos de promoção da cidadania. Nas suas palavras:
Aponta algumas realizações: “o ‘Curso de Formação de Educadores em Direitos Humanos’; o Seminário ‘Aprendendo e Ensinando Direitos Humanos’; a ‘Oficina Pedagógica’ realizada em maio de 1999, dirigida a militantes de ONGs, educadores e estudantes universitários; sobretudo, uma série de publicações e atividades ligadas à luta contra a violência.” Prossegue Candau:
Vera Candau lembra iniciativas em curso e as atividades desenvolvidas com vistas à formação de policiais militares, servidores de delegacias de mulheres, integrantes de assentamentos rurais e de comunidades urbanas. A ação educativa promovida pelos Conselhos Estaduais de Direitos Humanos, graças à presença inovadora de entidades oriundas da sociedade, contribuiu enormemente para o processo de profunda modificação nas relações da polícia com a sociedade. Em 1994, o Vice-Presidente do CEDDHC era um major, hoje coronel. que, nessa condição, e também, na de subcomandante da Polícia Militar da Paraíba, ocupou, na quarta gestão deste Conselho, o cargo de Tesoureiro. Atualmente, no Rio Grande do Norte, o Vice-Presidente do Conselho Estadual de Direitos Humanos é também coronel. Na Paraíba, a Polícia Militar está fortemente presente nas suas promoções. Nas fotografias de eventos promovidos pelo Conselho, desde os seus primórdios, em varias ocasiões, no apagar das luzes destes, somente víamos quepe e farda. Os policiais militares são mais disciplinados, ficam até o fim. Em muitos eventos são os mais numerosos. A presença de altas patentes das Polícias Militares nas diretorias dos Conselhos de Direitos Humanos está diretamente relacionada com a contribuição desses ógãos na formação de policiais em Direitos Humanos. A ação mediadora do Conselho, no sentido de evitar a violência e de estabelecer a negociação entre movimentos sociais e autoridades, envolveu – especialmente na gestão de Nazaré Zenaide - mais de uma vez, a ocupação de prédio público. Relatou-nos a professora Nazaré que, na ocasião em que os camponeses ocuparam a sede do INCRA, no ano de 2001, foi dada uma orientação nacional para que os responsáveis estaduais do órgão solicitassem, judicialmente, a sua imediata desocupação. Nessa oportunidade, o CEDDHC e o Ministério Público Federal, através da Procuradoria do Cidadão, foram os únicos órgãos a mediar o conflito com os trabalhadores rurais. Várias autoridades a que a questão estava, direta ou indiretamente afeta, tais como a OAB e a Polícia Federal, mostraram-se reticentes em participar. Por outro lado, aos olhos do sem-terra, o Conselho era, sem dúvida, a instituição que tinha mais legitimidade para negociar. Tanto nessa quanto em outras ocasiões, esse diálogo evitou que o conflito degenerasse em ações violentas contra os sem–terra. (Zenaide, 2003). Também merece referência o Conselho Estadual de Direitos Humanos e Cidadania (COEDHCI) do Estado do Rio Grande do Norte. Criado em 1995, é atualmente regido pela lei estadual 8.304, de 29/01/2003 (Rio Grande do Norte, 2003). Tal como o CEDDHC, é um órgão independente do governo, sendo sua direção eleita pelas entidades e órgãos integrantes do Conselho, a maioria destes autônomos em relação à administração estadual. O COEDHCI é o pioneiro, no nordeste, na formulação de propostas e na mobilização da sociedade com vistas à implementação do Programa Nacional de Direitos Humanos. Foi o COEDHCI o primeiro Conselho do gênero na região a promover uma Conferência Estadual de Direitos Humanos. Esta foi realizada em 2002 a partir de cinco conferências micro-regionais, envolvendo um total de 311 participantes, que representaram 207 entidades. Entre suas cinco comissões permanentes, tem tido destaque o trabalho da Comissão de Acompanhamento do Programa Estadual de Direitos Humanos, que envolve, através de relatores temáticos, todos os órgãos do Conselho. O COEDHCI vem dando, desde o ano de 2002, atenção prioritária à coordenação, no Rio Grande do Norte, da Campanha Nacional Contra a Tortura. O Conselho de Direitos Humanos desse Estado foi, também, pioneiro, no nordeste, na criação da primeira Ouvidoria de Polícia (de “Defesa Social”), autônoma, cujo titular, estranho à corporação, é escolhido para a função pelos órgãos e entidades integrantes do COEDHCI. Este Conselho foi escolhido na VIII Conferência Nacional de Direitos Humanos, realizada em junho de 2003, para integrar o Grupo de Trabalho que discute a proposta de criação, no plano jurídico-institucional, de um Sistema Nacional de Proteção aos Direitos Humanos. (Monte, 2003). Outro Conselho cujas atividades merecem registro é o de Direitos Humanos de Alagoas (CEDH-AL) sobretudo no que diz respeito à formação de policiais em Direitos Humanos, e aos resultados práticos obtidos. Criado pela lei estadual 5.974, de nove de dezembro de 1997, as iniciativas do CEDH-AL concorreram, de forma direta, para a mudança nos padrões de funcionamento da corporação policial (Alagoas, 1997). Destacamos, entre elas, proposta encaminhada, no ano de 1999, à Corregedoria do Tribunal de Justiça de Alagoas, por ela aprovada, sob a forma de um provimento que disciplina a execução de mandatos judiciais para desocupação de temas naquele Estado. Desde então, no cumprimento de mais de trezentos desses mandatos, não houve registro de uma só ação violenta contra os sem-terra. Aliás, o comportamento da Polícia Militar de Alagoas fez com que fosse distinguida, no ano de 2001, pelo Movimento Nacional de Direitos Humanos (MNDH), com “menção honrosa” pela sua atuação destacada nessa área. (Fonseca, 2003). Tal distinção tem forte carga simbólica. Com efeito, a homenagem prestada pelo MNDH, a mais representativa organização de direitos humanos do país, a uma corporação policial-militar, significa, doravante, a cessação de hostilidades e a substituição destas pelo diálogo, no relacionamento entre a “tribo de direitos humanos” e a da polícia. Alguns Conselhos de Defesa Social dotados de expressiva participação da sociedade, como os do Pará e de Alagoas (criados, respectivamente, pelas leis estaduais 5.944, de dois de fevereiro de 1996 e 6.145. de 13/01/2000), têm desenvolvido uma ação mediadora que, no essencial, se assemelha à levada a cabo pelo CEDDHC (Pará, 1996 e Alagoas, 2000). O Conselho Estadual de Segurança e de Justiça do Pará é constituído por sete dirigentes de órgãos desse Estado e de oito representações independentes do Governo, entre as quais quatro de entidades ligadas à promoção e à defesa dos direitos humanos, duas de associações de policiais, além de dois representantes da Assembléia Legislativa, totalizando quinze membros. Já o Conselho Estadual de Justiça e de Segurança Pública de Alagoas é composto de sete representantes do Poder Executivo Estadual, de quatro integrantes de órgãos públicos relacionados com a Defesa de Direitos do Cidadão, e de quinze representantes da sociedade civil. Relato dos dirigentes desses Conselhos mostram que, em várias ocorrências relacionadas com a invasão de prédios públicos, ocupações de terra, rebeliões de detentos e outras situações de risco, a ação mediadora desses conselhos evitou a explosão de violência com derramamento de sangue (Patriota, 2003). Em relação ao Conselho de Segurança e de Justiça de Alagoas, é interessante sublinhar a ênfase dada ao princípio da participação popular. A sua importância é tal que uma das atribuições desse Conselho é garantir a vigência desse princípio “através da integração dos órgãos de segurança com a sociedade civil”. (Art. 3º, inciso II do Dec. 38.589, de 12/9/2000). Cabe ainda, destacar a ação do Conselho de Segurança do Estado do Pará (CONSEP) na implementação de uma normatividade inovadora no que diz respeito ao combate à violência policial, especialmente à prática de tortura. Segundo a Ouvidora do Sistema de Segurança Pública, Rosa Marga Rothe, o não funcionamento do Conselho Estadual dos Direitos Humanos explica que as questões relacionadas a esses direitos sejam, freqüentemente, objeto de apreciação do CONSEP. O Conselho de Segurança Pública do Pará vem assumindo uma linha de atuação que o identifica com a defesa dos direitos fundamentais, conforme demonstram as normas que editou, inéditas no Brasil, para enfrentamento da prática da tortura. Assim, a resolução 023/ 2001, do referido Conselho, determina ao Centro de Perícias Científicas a “apresentação de uma proposta de quesitos específicos sobre a tortura, a serem adicionados ao rol de quesitos padronizados nas requisições de exame médico-legal”. A mesma resolução autoriza a Ouvidoria de Segurança Pública a proceder à lavratura do boletim de ocorrência das denúncias de tortura que apontem como autores agentes da segurança pública. Estabelece, ademais, que as corregedorias deverão dar absoluta prioridade a denúncias de tortura e a proceder administrativamente contra os responsáveis por eventuais omissões. E, finalmente, determina “a inclusão de disciplina voltada para a interpretação da lei de tortura no currículo de todos os cursos de formação, aperfeiçoamento, especialização e requalificação profissional dos agentes de segurança pública”. Da mesma forma, é da lavra do CONSEP a edição de normas avançadas, que objetivam inibir o emprego da força letal no combate à criminalidade. Com este escopo, a resolução 038/ 2001 determina o afastamento de policiais responsáveis por homicídios, em serviço ou fora dele, recolhendo identidade e armas funcionais, independentemente de apuração administrativa ou penal. A mesma resolução determina a utilização da silhueta de corpo inteiro para os treinos de tiro policial, objetivando a preservação dos órgãos vitais (Relatório da Ouvidoria, 2003). III – Ouvidorias de Polícia e Agrária Nacional Para que as Ouvidorias sejam legítimas, necessitam serem autônomas, quer dizer, terem seu titular escolhido por órgão independente do poder fiscalizado. Parece óbvio: o titular da Ouvidoria, o interlocutor qualificado que representa a sociedade – na universidade, na Prefeitura, no Governo, etc – deveria ser independente do órgão fiscalizado, portanto, nunca escolhido pelo dirigente deste. Contudo, a realidade é outra. No mínimo noventa por cento das ouvidorias brasileiras são biônicas. Entretanto, há muitos elementos promissores que vêm ganhando espaço ultimamente e fortalecem os que lutam pela sua autonomia. A criação da Ouvidoria de Polícia do Estado de São Paulo constitui um salto qualitativo nesse processo. Foi gerada pela mobilização democrática e popular dos militantes dos direitos humanos, sob o manto protetor e com o apoio ostensivo de D. Paulo Evaristo Arns, então Cardeal-Arcebispo de São Paulo. Este esteve presente na posse do primeiro Ouvidor do Estado, Benedito. Domingos Mariano. Em dois anos, Mariano conseguiu que fosse votada a lei, até hoje vigente, que atribui a escolha do Ouvidor ao Conselho Estadual da Pessoa Humana de São Paulo, composto quase totalmente de entidades independentes do governo, representadas por personalidades de reconhecida atuação na área (São Paulo,1997). Trata-se, pois, de uma Ouvidoria nascida da mobilização social, autônoma e dotada de controle extra-orgânico, estando voltada principalmente para a defesa da justiça, da ética e dos direitos de cidadania. Aliás, Mariano impôs como conditio sine qua non para aceitar o cargo de Ouvidor que “suas ações fossem definidas não apenas pelo titular do cargo mas por representantes da sociedade civil”. (Toneto, 2000, p.208) Prevenção e mediação de conflitos Ouvidoria de Polícia de São Paulo Benedito Domingos Mariano, pioneiro na matéria, desenvolveu, junto com o que há de melhor da sociedade civil de São Paulo em direitos humanos, ação propositiva de tal envergadura que contribuiu e vem contribuindo de forma decisiva para mudar as estruturas das polícias estaduais. Se essa ação propositiva não tivesse existido, teríamos generais dispostos a, no prazo de dez anos, promover a unificação entre a Polícia Civil e a Militar? Pois o Secretário de Segurança do Ceará, General Cândido Vargas de Freire, no seminário sobre violência e políticas públicas, realizado em Brasília, em agosto de 2002, pelo Instituto Brasileiro de Ação Popular (IBRAP), deixou claro a viabilidade e a simpatia por essa proposta (Freire, 2002). Por outro lado, as investigações da Ouvidoria sobre os milhares de casos de tortura, maus-tratos e outras ilegalidades e denunciadas à sociedade, com ampla cobertura da mídia local e nacional, concorreram fortemente para inibir as ações violentas e arbitrariedades cometidas pelo aparato repressivo paulista. Segundo Toneto, 2.500 policiais civis e militares foram punidos por sua corporação com base em denuncias apresentadas à Ouvidoria. Para ela, a maioria das pessoas não os teria denunciado se a Ouvidoria não existisse, pois que os denunciantes raramente fariam as denúncias às Corregedorias de Polícia, por temer represálias ( Toneto, 2000, p.211) Mariano
(2001) aponta para um dado surpreendente. Das 20.000 denúncias
apresentadas, “25% foram encaminhadas por policiais, principalmente
sobre abuso de autoridade cometida por superiores hierárquicos”.
Diga-se, en passant, que tal fato está a demonstrar que um órgão
promotor de Direitos Humanos, como a Ouvidoria de Polícia de
São Paulo, atua, efetivamente, em prol dos Direitos do Cidadão,
e, especialmente, dos direitos dos próprios policiais. E não,
como se propaga preconceituosamente, em favor dos “direitos humanos
dos bandidos”. Nas suas palavras: “Quando não concordam com os relatórios de conclusão de apuração das Corregedorias, o máximo que podem fazer é encaminhar a denúncia ao Ministério Público. Para que as Ouvidorias de Polícia possam efetivamente intervir com maior eficiência na violência policial é necessário que também possam ter a atribuição de investigação, elaborando relatórios de investigação diretamente ao Ministério Público, quando entenderem que a apuração dos órgãos corregedores é insatisfatória” (Mariano, 2002, p. 55). Deve, também, ser destacada a atuação da Ouvidoria de Polícia do Estado do Pará (mais exatamente, Ouvidoria do Sistema de Justiça e de Segurança Pública), que tem como titular Rosa Marga Rothe, atual Coordenadora do Fórum Nacional dos Ouvidores de Polícia. As medidas tomadas pelo CONSEP, anteriormente analisadas, resultaram, em grande parte, de sua ação propositiva e de seu ativo engajamento no sentido da adoção de medidas objetivando coibir a prática da tortura e o emprego de força letal por parte da polícia. Tais resultados foram alcançados graças a um trabalho persistente, à coragem e a competência da Ouvidora no enfrentamento das resistências às suas iniciativas, oriundas da corporação policial. Assim, as hipóteses aventadas pela Ouvidoria – e depois comprovadas -, de que os policiais matam tanto ou mais quando estão fora do serviço e a de que nem todas os homicídios envolvendo policiais são comunicados e os que o são nem sempre são investigados, suscitou várias tentativas de desqualificação da Ouvidoria. Alegava-se, entre outras coisas, que o jornal não é “fonte séria” e que “as entidades de direitos humanos são contra a polícia, mas protegem bandido”. Na sequência, as medidas adotadas para aperfeiçoar os procedimentos de comunicação de homicídios ao CONSEP mostram que estas aumentaram 100%, logo após a sua adoção. O declínio progressivo de tais comunicações, nos meses subseqüentes, parecem indicar que, desde então, a polícia tenha adotado um comportamento de maior cautela no uso da força. A aceitação progressiva da ação da Ouvidoria, especialmente pelo CONSEP – mas também por significativos setores da corporação policial - intensificou a colaboração entre os dois órgãos. Dessarte, a resolução 057/ 2002, do colegiado em questão, autoriza à Ouvidoria requisitar exame ou solicitar cópia de laudos periciais necessários à confirmação de fato ou situação objeto de denúncia, antes de repassá-las às Corregedorias ou ao Ministério Público para os procedimentos apuratórios. Recomenda, ainda, às autoridades policiais ou administrativas, vinculadas ao CONSEP “que facilitem, atendam e priorizem as solicitações da Ouvidoria, facilitando seu mister de defender o cidadão contra eventuais abusos praticados por agentes do Estado...” (Rothe, 2003). Portanto, a ação prática das Ouvidorias e dos conselhos, o debate por elas fomentado sobre democracia e cidadania, vem contribuindo para a mudança da consciência e para a paulatina transformação das instituições no campo da segurança pública do Estado brasileiro. Examinaremos, agora, o papel das Ouvidorias enquanto instrumento de mediação. Merece destaque a esse respeito, a Ouvidoria Agrária Nacional, criada em 1999 pelo Ministro Raul Jungmann, e dirigida pelo Desembargador aposentado Gercino José Maria Filho. Depoimento de Humberto Pedrosa Espínola, Ex-Secretário-Executivo do Conselho Nacional da Pessoa Humana, ressalta quão importante foi a ação do Ouvidor Agrário em numerosos conflitos de terra e outras ações litigiosas, evitando que uns e outros evoluíssem para o confronto armado. (Espínola, 2003). A Ouvidoria Agrária Nacional enfatiza a importância que teve, nesse processo, o acatamento, em muitos Estados da Federação, do Plano de Execução de Mandados Judiciais de Reintegração de Posse (Plano de Execução, 2000). Ao mesmo tempo, a ação dessa Ouvidoria denota os limites da chamada Ouvidoria biônica. Dependendo do seu titular, pode concorrer positivamente para a democracia, para a negociação e para a prevenção de conflitos. Mas não se pode desconhecer os seus limites: o Ouvidor Agrário Nacional foi desconsiderado pelo Presidente da República, à época Fernando Henrique Cardoso, quando os sem-terra ocuparam sua fazenda. Apesar de o Ouvidor haver negociado uma saída honrosa com os invasores, garantindo-lhes que não seriam presos, o Governo não acatou o acertado, permitindo que a Polícia Federal prendesse e processasse os ocupantes. O fato é que a Ouvidoria biônica tem sempre os seus limites. O Ouvidor não poderá dizer “não”, nem comportar-se de maneira independente, sequer discordar do órgão que, em tese, fiscaliza. Pois, se o fizer, pode ser destituído por quem o escolheu para a função. IV – Um Novo Campo Ético-Político Os conselhos que atuam nas áreas de segurança e justiça vêm produzindo, quando a cidadania neles tem voz ativa, um novo campo ético-político. Ainda em 1997, análise do sociólogo Rubem César Fernandes denota a sua percepção das mudanças que se delineavam nas relações entre a polícia e os ativistas de direitos humanos: “Há uma transformação histórica se você pensar que há alguns poucos anos existia a tribo dos direitos humanos, de um lado e a tribo de segurança, do outro, e elas guerreavam”. Mas agora “está acontecendo uma integração, em que, de um lado, a idéia de segurança passa a ser vista como parte dos direitos humanos, e, de outro, a noção de segurança não é só assunto de polícia, de exército, do Estado”. (ONG..., 1997). Ora, os conselhos anteriormente referidos resultaram precisamente de iniciativas da “tribo de direitos humanos”, que tomou a decisão de ir além da simples denúncia das ações ilegais da policia, aproximando-se desta, tendo em vista “transformá-la por dentro”. Vislumbram “a possibilidade de criação de ‘controles internos’ mediante a participação da sociedade civil na elaboração de políticas de segurança e na formação de policiais. Exemplos disso são a participação de pesquisadores e militantes dos direitos humanos em órgãos governamentais encarregados da segurança pública, as diversas experiências de cursos para oficiais da Polícia Militar e delegados, sob a responsabilidade de universidades e de institutos de pesquisas e a freqüência em cursos de Direitos Humanos nas polícias, dados por atores externos.”(Costa Neves, 2002, p.14). Este nóvel espaço público se forja em laços de colaboração inéditos, consubstanciados em uma conjunção de forças que contém elevada representatividade social. Com efeito, nos conselhos estão presentes às entidades mais representativas da sociedade e os mais importantes órgãos públicos com responsabilidade no campo da justiça, da segurança e da cidadania Portanto, a construção desse espaço público sui generis representa um salto de qualidade, por permitir a produção de sínteses dialéticas capazes superar concepções meramente corporativas. Na verdade, a práxis política nesses conselhos permitiu o crescimento do entendimento e da compreensão recíprocas, e de negociações, ainda que muitas vezes laboriosas e difíceis, entre calejados e reputados militantes de direitos humanos e representantes qualificados do aparato de segurança e de justiça. Disso tem resultado uma cooperação crescente entre os diversos setores envolvidos na questão e uma visão mais abrangente dos direitos humanos e da segurança pública. De um lado, afastou-se o antigo preconceito contra os direitos humanos; do outro, deixou-se de promover uma espécie de responsabilização a priori das polícias pela violação de direitos, quando ocorrem conflitos. Os conselhos em foco compõem, pelo seu caráter permanente e pela força de suas atribuições, o principal locus de construção desse novo campo ético, inclusive porque eles têm sido, como no caso do CEDDHC e do CEDH-AL, a matriz geradora de experiências inovadoras de Educação em Direitos Humanos, permitindo que novas relações possam estabelecer-se entre a polícia e a sociedade. Com efeito, essa reflexão autocrítica constitui o fundamento de um novo conceito: o de segurança pública democrática. Ao invés da culpabilização individual, pressupõe a responsabilidade coletiva. Coloca os atores sociais com relações horizontalizadas do ponto de vista do valor das pessoas, de suas crenças e de seus desejos. (Mendonça Filho, 2001, p. 13). Todavia, tais transformações somente ocorrerão se “a sociedade civil {passar} a reivindicar maior controle social sobre as instituições policiais, algo que ainda está embrionário na sociedade brasileira”. (Mendonça Filho et alli, 2002, p.107) Concluindo, fazemos nossas as palavras de Reginato: “A chave para pensar políticas públicas de segurança, bem como para o sistema penal, não está na discussão acerca da criminalidade, mas nos processos de consolidação da democracia, sem os quais não se poderá inverter as práticas que se afirmaram a partir de relações sociais marcadas pela desigualdade e pelo autoritarismo”. (Reginato, 2002, p.270). ALAGOAS. Lei Estadual 5.974, de 09/12/1997. ALAGOAS. Lei Estadual 6.145, de 13/01/2000. AVRITZER, Leonardo. O Governo Lula e o desafio da participação. Teoria e debate. São Paulo, Perseu Abramo, ano 16, n. 54, p. 10-15, jun./jul./ago. 2003, BRASIL. MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO AGRÁRIO. Ouvidoria Agrária Nacional. 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Doutor em Direito, na área de política, pela Universidade
de Nancy (França). Professor dos cursos de graduação
e pós-graduação em Sociologia (mestrado e doutorado)
e em Direito (mestrado) da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Foi Ouvidor Geral da dessa instituição (mar. 1999 - mar.
2003). Fundou e dirigiu a Comissão de Direitos Humanos da UFPB,
o Conselho Estadual de Direitos do Homem e do Cidadão, o Fórum
Nacional dos Ouvidores Universitários e a Associação
Brasileira de Ouvidores. |