Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Documentos
Rubens Lemos
Memórias do Exílio, por Rubens Lemos
Diário de Natal, Abril de 2004
Dos
sertões de Pixoré para o Chile de Allende
Parte 1 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Fugindo ao cerco até o encontro com Djalma Maranhão
Parte 2 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Jango
me disse: “Os militares não entregam o poder tão
cedo”
Parte 3 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Três
dias e três noites de perigo na Cordilheira Sem Texto
Parte 4 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Na
Polícia Federal:ali começa a “Operação-Terror”
Parte 5 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Ele
vai ver que aqui não adianta ser macho?
Parte 6 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
“Minha
morte havia sido decretada, mas fui salvo pelo gongo”
Parte 7 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos (Final)
Memórias
do Exílio, por Rubens Lemos
Diário de Natal, Abril de 2004
“Acima
do tempo e do medo” é um livro que venho escrevendo
desde 1974. Um livro-reportagem sobre o duro período ditatorial,
a partir dos anos 60. mais precisamente: entre 68 e 1973. Acontece
que livro é livro: pode sair ou não. Depende do tema.
E quando se trata de falar das barbaridades praticadas contra um
sem número de brasileiros,em decorrência de um regime
insano e brutal, as coisas se complicam. Eu fui personagem desse
período de obscurantismo.
Vivi a realidade das sombras, da clandestinidade, do exílio
e da prisão. Sou um daqueles que viveram e sofreram as atrocidades
cometidas contra o ser humano pelos esbirros e torturadores do regime
que se implementara em 1964, no país.
Mas não pretendo – como nunca pretendi – ser
herói ou mártir.Nem alimento sentimentos revanchistas
estúpidos. Alimento, sim, o sonho de justiça.Uma justiça
que resgate a verdade.Não a verdade transformada em auto-referencialismos
ou automitificações,tão ao gosto de alguns
guerrilheiros urbanos ou falsos líderes daquele tempo de
resistência. As prateleiras das livrarias – eu já
disse – estão cheias de literatura desse tipo. Na maioria
das vezes,vamos encontrar meias verdades, através da folclorização
debochada de ações, atitudes e gestos de pessoas que
não tiveram a felicidade de continuar vivas. Que foram mutiladas
moral e fisicamente.
Quando nasci, há 48 anos, em Pixoré, hoje município
de Santana do Matos, não imaginava o que viria depois das
veredas da minha vida.Não poderia pensar que, um dia, estaria
frente-a-frente com Djalma Maranhão, numa cidade chamada
Montevidéu, recebendo a solidariedade de um homem que fora
prefeito de Natal. De um ser humano digno que morreu de saudade
- de Natal e da Redinha.
E quem diria? Fosse, no futuro,aquele menino de Pixoré ir
dar com os costados nas terras de Salvador Allende – o Chile.
O mesmo Chile de Pablo Neruda, de Violeta Parra, de Gabriela Mistral,
onde fui encontrar milhares de brasileiros perseguidos pela Ditadura
brasileira, entre os quais alguns notáveis da política
de hoje: Almino Afonso, Fernando Henrique Cardoso, Miguel Arraes
(de passagem), José Serra, Fernando Gabeira e até
o traidor maior da esquerda brasileira, conhecido como Cabo Anselmo.
Voltando aos meus pagos,já não encontrei Luiz Maranhão,
os jovens Emmanuel Bezerra e José Silton,assassinados barbaramente
pela Ditadura.Encontrei a delação que me levou à
Colônia Penal “João Chaves” Encontrei seqüestradores
que, na calada da noite, me puseram óculos de borracha,algemas
e me levaram para o circo de horrores do DOI-CODI, em Recife,onde
gritos de torturados sucumbiam ante o som alto,alegre e estridente
dos rádios executando “Eu te amo,meu Brasil ,eu te
amo”.
CAÇADO
POR TODA PARTE
1970.
Odilon Ribeiro Coutinho era candidato a senador pelo MDB, único
agrupamento político legal de resistência contra a
Ditadura, consentido pelo regime militar. Eu estava no interior.
Saía de Acari, onde Odilon tinha comício marcado.
Na chamada “boca da noite”, no meio da estrada poeirenta,
a Kombi que me levava era interceptada por um fusca branco, que
piscava as luzes. Parei e reconheci o amigo comum:
-
Rubens a situação tá ruim pro seu lado. Sua
casa foi invadida em Natal, a casa de sua sogra também. Estão
lhe caçando por toda parte. Há muita gente presa e
você não pode voltar lá.
Ajudado por Odilon e Roberto Furtado, consegui, assim mesmo, entrar
em Natal, altas horas da noite do dia seguinte. Fiquei escondido
num a praia durante quatro dias. E, na verdade, consegui romper
o cerco que se estabelecera contra mim. Houve tempo de ver minha
mulher (Isolda) e meu filho (Rubinho) recém- nascido.
Quer eu quisesse,quer não, bateu dentro de mim uma coragem
que nunca tive. O menino de Pixoré aplicava a primeira derrota
contra a ditadura. Rompia o cerco,caía no “oco do mundo”.
Nos ouvidos a canção de Vandré: ” Vem,
vamos embora que esperar não é saber. quem sabe faz
a hora não espera acontecer...”
Primeiro,fui pras brenhas paraibanas e ,de lá, um dia parti
para o Rio de Janeiro, onde cheguei pensando:
“Vai,
jornalista, aprender a dar bofetada no vento.”
Os dias passando, dinheiro acabando.Dinheiro que Odilon Ribeiro
Coutinho me dera,mas que hospedaria humilde em que me instalara
levava tudo.Já “nas últimas” , tomei um
ônibus na Praça 15.Destino:Cordovil, bairro distante,
onde morava o meu querido tio Chico, irmão do meu pai.Tão
querido e solidário que, depois de lhe contar tudo e pedir
abrigo “por uns poucos dias”,ele respondeu:
- Lamento muito,meu filho,mas eu não quero me envolver com
essas coisas de subversão.Vá embora e Deus lhe abençoe.
Com
fome,com raiva quase sem dinheiro qualquer,mandei meu tio enfiar
sua benção em lugar impróprio e subi a rua
Aragão Gesteira com gosto de morte e horror na boca.
E sem destino, fui chegar na esquina da rua Ferreira Viana,entre
o Flamengo e a rua do Catete. Era um bar-restaurante, tipo prato-feito.
Pedi um copo de leite pingado e um pão com manteiga. Nem
peguei no copo:uma voz me chegou ao ouvido,fazendo explodir um medo
quase estranho:
-
Você não é Rubens Lemos?
Voltei-me
quase de mãos estendidas esperando as algemas. O sangue me
chegou de novo, quando vi diante de mim Ney Leandro de Castro. O
poeta Ney, o romancista Neil de Castro, potiguar, como eu. E solidário.
Fugindo
ao cerco até o encontro com Djalma Maranhão
Parte 2 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Ney
Leandro de Castro diante de mim: E contei tudo: da minha situação
clandestina, da minha fome e dos meus sonhos. O poeta não
vacilou. Mesmo sabendo dos riscos que corria, me prestou toda a
solidariedade que lhe era possível.
Os
dias correndo e as notícias chegando, nada esperançosas.
Eu, agulha no palheiro da cidade grande, rumo incerto, “olhando
de lado” e sabendo: voltar agora, não seria jamais
“uma forma de renascer”. Lembrando Gide: “Ensinem-me
os caminhos de ir”. Amigos presos, amigos mortos – nos
enfrentamentos de rua ou das masmorras da Ditadura. Cartazes em
toda parte: “Procura-se”. Muitos rostos conhecidos e
eu me sentindo um deles.
O Rio de Janeiro fervilhava de tensões: os revolucionários,
a quem a Ditadura chamava de terroristas, haviam seqüestrado
o embaixador suíço. Pediam em troca setenta presos
políticos. O regime militar não cedia. Angústia
por toda parte e, principalmente, dentro do meu peito. Eu andava
sobre o “fio da navalha”, mas determinado: “Não
me entrego vivo. Melhor morrer matando do que como boi indo pro
matadouro”.
Era noite no Largo do Machado. De repente, à porta do Cine
Paissandu, pronto para ver um filme de Bergman e prolongar um pouco
mais a agonia, escuto um grito inconfundível:
- Rubens Lemos!
Virei-me
e dei de cara com Olinto Galvão. Não temi e não
tremi. Depois de um abraço escandaloso, fomos para um bar.
A cerveja que há tempo se afastara de mim, pois dinheiro
não tinha, apareceu franca e amiga. Como o amigo Olinto Galvão,
companheiro firme de todas as horas em Natal. Mas eu precisava dar
notícias a duas pessoas, as únicas que sabiam onde
eu me encontrava. Tudo, porém, era muito perigoso. Com o
seqüestro do embaixador, que já rolava há quase
vinte dias, os olhos da repressão estavam em toda parte.
O cerco apertava. Dias antes, andando pela rua México, via
estampada na primeira página do Jornal do Brasil, a fotografia
de G, ex-líder estudantil natalense e transformado em guerrilheiro.G,para
minha surpresa, aparecia risonho, tomando cafezinho ao lado de alguns
policiais.Dele, o jornal publicava, também uma terrível
carta: G, (cuja covardia não lhe honra a menção
do verdadeiro nome), pedia perdão ao ditador de plantão
e se declarava pateticamente arrependido.Simultaneamente, novas
prisões ocorriam em Natal. O torniquete apertava ainda mais.
Entendi que era hora de sair do país.
Coloquei a questão para Olinto e pedi que comunicasse isso
somente a duas pessoas: Isolda e Roberto Furtado. Apesar dos perigos,
Olinto cumpriu literalmente a missão.
Erivan me dá o alerta: perigo!
Os planos estavam traçados para deixar o Rio, mas faltava
dinheiro. Erivan França, mais uma vez não faltou.
Marcamos encontro na rua das Marrecas,onde Aluízio Alves,
cassado, sobrevivia com uma editora.As duras penas,Erivan me informava:”
Sua situação não é boa. Seu nome está
incluído entre os perigosos”.
E me arranjou dinheiro, que não era muito, mas era o que
podia dar.
Cheguei, finalmente, a São Paulo. Da rodoviária fui
direto à Estação da Luz e tomei um trem para
Mauá, onde morava um primo. A lembrança do que me
fizera Tio Chico, no Rio, me deixava inquieto. Mas resolvi tentar.
O trem vomitando de passageiros aqui e ali. Tia Neném, mãe
de Gilvan, irmã de minha mãe estava atrás do
balcão de sua pequena quitanda na Vila Brasil. Tia Neném
e “Seu” João, o marido, haviam sido operários
de uma grande indústria em São Paulo. Fui chegando
e fui contando tudo de novo. A velha operária não
titubeou:
- Pode ficar o tempo que quiser.
E me fez a espantosa revelação: Gilvan, meu primo,
estava também sendo procurado. Dezenove operários
haviam sido presos. Um deles, Raimundo, assassinado brutalmente
sob torturas. Raimundo morreu com 23 anos de idade. Era nordestino.
Fiquei na casa da minha tia o tempo suficiente para localizar alguns
companheiros jornalistas. Não poderia abusar da bela manifestação
de destemor e solidariedade proletária de D. Neném.
Um amigo jornalista – a quem chamarei aqui de Fabiano -, com
quem trabalhei no “Diário de Natal”, conseguiu
me colocar em lugar seguro: uma pequena pensão na Alameda
Santos, onde fiquei por quase duas semanas.Fabiano, ajudado por
outros, armou todo o esquema de minha saída:destino, Uruguai.
Para onde fui fantasiado de torcedor do Palmeiras, que decidiria
a Taça Libertadores da América com Nacional de Montevidéu.
Logo eu, corintiano...
E assim atravessei a fronteira. O Brasil ficava para trás.
Natal era um mundo de saudade.
O frio cortava quando o ônibus parou em frente ao hotel. Já
era noite. No meu bolso, a passagem de volta que não poderia
mais usar. Nos ombros, nenhum cansaço. No peito, toda a esperança.
Um copo, dois, três de vinho. Outro, mais outro. E fui deitar
fugitivo e bêbado. Afinal de contas, a realidade era dura.
Dia seguinte, eu tinha que deixar o hotel pra não voltar.
Dia seguinte. Expectativa. O jornalista potiguar precisava localizar
alguém. Esse alguém era Djalma Maranhão a quem
eu era recomendado por ninguém. Minha única senha
era ser do Rio Grande do Norte. Mas eu sabia onde achar o ex-prefeito
de Natal.
ME
DÊ NOTÍCIAS DA REDINHA...
Era amplo o “café”,
com mesas na calçada. Ficava numa praça central de
Montevidéu. Lá estava ele: Djalma Maranhão,
de quem me aproximei e fui dizendo:
- Prefeito Djalma Maranhão,meu
nome é Rubens Lemos, sou jornalista e rio-grandense do norte.
Sou amigo de Roberto Furtado e estou procurando asilo. O senhor
pode me ajudar?
Djalma Maranhão
foi traído pelo brilho dos olhos. Uma centelha de alegria,
um clarão de tristeza, foi o que vi. Mas ouvi daquele homem
– quem nem documentos que provassem a minha identidade pedira
-, uma pergunta surpreendente:
-
Me dê notícias da Redinha, de Natal, de todo mundo.
Fiz
o que pude, pois eu também queria notícias de Natal,
de todo mundo. A diferença é que minha saudade era
mais recente. A de Djalma era como se fora um século. Contei
minha história. Logo depois, chegava Amauri Silva, ex-ministro
do Trabalho de João Goulart. Já nos conhecíamos
de Londrina, onde ele fora vereador. O ex-deputado Neiva Moreira
também apareceu. E como ele outros exilados.
Na verdade, Djalma Maranhão queria ficar a sós comigo.
Era um conterrâneo que chegava, era um pedaço de Natal,
um naco de carne de sol, uma mochila de feijão verde, um
litro de água do mar da Redinha. E disso é que Djalma
precisava naquela cidade fria e cinzenta de Montevidéu. O
ex-prefeito me levou com ele até uma pequena casa de câmbio,
onde defendia alguns trocados “para ajudar no aluguel”.
Também fazia distribuição de jornais, como
forma de auxiliar nas despesas. Ou seja: eram grandes as dificuldades
econômicas por que passava o implantador do revolucionário
método “De pé no chão também se
aprende a ler”.
Durante o almoço, a conversa foi longa. Djalma Maranhão
falava e falava. Dizia das memórias que estava escrevendo,
mas não perdia a fé:
-
Eu vou voltar. Não agüento mais de saudade daquele povo
bom da minha cidade e do meu estado. Um dia – e será
– logo, essa Ditadura acaba. Aí eu vou voltar, tirar
o atraso... E vou voltar à política com toda força
possível. Eu sei que o povo de Natal não esqueceu.
Falando, ouvindo,falando, eu senti que estava diante de um ser humano
corroído pela nostalgia. Um ser humano de estatura moral
inigualável. Sofrido, mas valente. Machucado, mas combatente.
Triste, mas esperançoso. Sem tostão, mas rico de solidariedade.
E foi assim que agiu comigo.
Outras conversas ocorreram e outras revelações foram
feitas, até que Djalma Maranhão me levasse até
o cais, de onde segui para Santiago do Chile, levando comigo o respeito
por aquele homem e outras revelações feitas por ele.
E que ainda vou contar.
Jango
me disse: “Os militares não entregam o poder tão
cedo”
Parte 3 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Antes
de subir a escada do pequeno navio que me levaria a Buenos Aires,
recebi um longo e afetuoso abraço de Djalma Maranhão.
Ex-prefeito de Natal cuidara de tudo. Até das questões
de segurança, buscando alertar-me:
-
Cuidado. Esse é um navio de turistas classe média
baixa. Evite fotografias, pois deve ter muito policial brasileiro
“fantasiado” de fotógrafo.
Dentro da pequena maleta de viagem, um Jornal do Brasil.Perdido
entre as páginas, um endereço, um nome e uma apresentação
que Djalma, de próprio punho, me fazia a um seu amigo comum,
ex-deputado federal e exilado no Chile. Nunca mais vi Djalma Maranhão,
contudo guardei todos os gestos solidários que ele me ofertou.
Como guardei o aceno de mão daquele homem nostálgico,
mas determinado em voltar ao seu povo, à sua terra, à
sua gente. E nunca mais esqueci aquele 16 de março de 1971.
Durante a viagem não conseguia tirar Djalma Maranhão
da cabeça. O homem que me fez conhecer João Goulart,
o presidente deposto. Foi numa noite muito friorenta. O local era
uma espécie de restaurante, muito mais uma churrascaria,
dirigido por exilados brasileiros: ex-deputados, ex-senadores,ex-ministros.
Uma espécie de sociedade pouco anônima, patrocinada
pelo ex- presidente, como forma de ajudar brasileiros perseguidos
pela ditadura. O presidente Goulart me pareceu uma pessoa simples.Nele
não havia qualquer traço de arrogância. Não
vendia a imagem de líder ou coisa do estilo.Era o que era
no momento:um exilado. Um homem que fora deposto por um violento
golpe militar. Djalma lhe contou rapidamente a minha história
e João Goulart me deu 3 mil escudos, moeda chilena e da qual
iria necessitar. Antes de sair, João Belchior Marques Goulart
fez uma previsão:
-
Maranhão (Djalma) tem pressa em voltar, mas eu acho que os
militares não entregam o poder tão cedo. Não
é o que eu quero, mas é o que eu penso.
João
Goulart tinha razão: a ditadura durou mais de vinte anos.Nem
ele, nem Djalma Maranhão puderam ver de novo o Brasil. Os
dois morreram no exílio. Em julho de 1971, eu estava em Santiago
do Chile, quando vim a saber da morte do ex-prefeito de Natal. Morreu
triste e estava só. Seu corpo foi encontrado no pequeno apartamento
em que morava, pelo advogado e também exilado Carlos Frederico
Marés, a quem conheci no Chile.
O
navio apitou. Estava chegando a Buenos Aires, onde ninguém
me esperava, a não a ser a incerteza e o ônibus que
me poderia fazer chegar até Mendoza, na fronteira com o Chile.
“SEU FILHO DIFICILMENTE ESCAPA”
Dia
20 de março de 1971. Desci do trem, trazendo no bolso a “visa
de turista”, e nos olhos a imagem grandiosa da Cordilheira
dos Andes, branca e dominadora. Santiago acabava de receber mais
um brasileiro que, ao lado de milhares, buscava abrigo em terras
chilenas, onde as ruas eram avenidas inteiras de liberdade. Nunca
uma mera palavra escrita a carvão como nos muros do meu país,segundo
o poema de Thiago de Melo. Na manhã seguinte, uma manhã
de muito frio, chegava ao apartamento do amigo de Djalma Maranhão.
Ele morava bem pertinho do Estádio Nacional, que, tempos
depois seria transformado me matadouro humano por ordens do General
Pinochet. Foi ali que morreu, mãos decepadas e um tiro de
misericórdia na cabeça, o jovem Victor Jara, aquele
que cantava as alegrias e as lutas do povo chileno.
Através do MAPU (Movimento de Acción Popular Unitária),
fui contratado como professor (instructor) de jornalismo da Consejeria
Del Desarrollo Social, um organismo nacional diretamente ligado
ao presidente Salvador Allende. Uma experiência importante,
através da qual técnicos, especialistas em áreas
básicas da cultura, saúde e educação
populares cobriam todo o Chile,procurando tornar realidade, sem
verticalismos, a participação popular cobriam todo
o Chile, procurando, a participação popular no programa
socialista do Governo Allende. Um verdadeiro laboratório
experimental, onde aprendi mais do que ensinei. A coisa, porém,
durou pouco.Pressões externas terminaram fazendo Allende
capitular , botando para fora do projeto, que se chamava “Operação
Salvamontes”, todos os estrangeiros. E lá fiquei desempregado.
Minha mulher já estava com data marcada (5 de setembro de
1971) para chegar a Santiago, trazendo no colo nosso filho (Rubinho).
Não dava mais tempo avisar que,além de exilado, eu
era o mais novo desempregado do Chile. Isolda chegou e fomos morar
numa casinha simples, numa vila distante da capital. Ficava no Paradero
36, perto de San Bernardo. O nome da vila: “El esfuerzo”.
E as coisas foram se complicando. Sem dinheiro, sem trabalho e uma
gravidez inesperada: a hoje moça bonita Yasmine chegava sem
pedir licença. Grávida de seis meses , Isolda enfrentava
o exílio com ocragem,mas dominada por uma tristeza que saltava
aos olhos. Até que Rubinho adoeceu gravemente.Postos de saúde,
hospitais, nenhuma solução. Meu filho definhava e
nem mais podia falar seu portunhol : “Yo quiero café
caliente quente”. Otto, médico pediatra, exilado também.,sem
recursos quaisquer, deu assistência total. Tarde da noite,
ele me chama de lado e diz:
-
Infelizmente, companheiro, seu filho dificilmente escapa. Ele já
está em estado de inconsciência. Mas vamos lutar até
o fim.
Não
tive coragem de dizer nada a Isolda.Pude apenas ir até o
muro da pequena casa proletária, onde me debrucei e chorei.
Chorei muito.
ALLENDE
ACREDITAVA NO “GRANDE” GENERAL AUGUSTO PINOCHET
Allende
ganhava, de maneira expressiva, as eleições parlamentares.
A esquerda, organizada em partidos como o Socialista(de Altamirando),
o PC, MAPU,Izquierda Criztiana e outros que formavam a Unidad Popular,
passava a ter maioria no Congresso. A direita, representada no poder
Judiciário e nas Forças Armadas, além de partidos
conservadores como PN, tendo como linha auxiliar o cinismo e o oportunismo
do Partido Democrata Cristão, de Eduardo Frey, passaram a
tramar, através da desestabilização do regime,o
golpe militar que eclodiria no dia 11 de setembro de 1973. Frey
era o “homem financiado pela CIA”, liderando movimentos
de boicote econômico, de isolamento quase total do Governo
Allende. O povo: estudantes, operários, camponeses, mineiros,
profissionais liberais, estavam nas ruas, combatendo duramente as
vacilações da Unidad Popular, sob hegemonia do Partido
Comunista Chileno que fazia, às escondidas, acordos com a
DC. A direita, com seu braço armado fanático –
Pátria y Libertad – provocava enfrentamentos diários
que eram respondidos valentemente pelo MIR (Movimento de Izquerda
Revolucionária) e pelos setores mais avançados do
Partido Socialista, MAPU e Izquerda Cristiana. Uma tarde-noite,mais
de 600 mil pessoas se dirigiram ao Palácio de La Moneda e
pedira, exigiram “mano dura’ ao presidente Allende.
Ele pediu calma, pois garantia que “as Forças Armadas”
, sob comando do “grande General”, não fugiram
às suas “tradições democráticas”.Allende
afirmava: “ Os fascistas não passarão”.
Mas eles passaram e transformaram o Chile num rio de sangue. Era
um filme que eu já havia assistido no Brasil,em 1964. Aí,
voltei a me lembrar de Djalma Maranhão e do ex-presidente
João Goulart.
O golpe estava nas ruas. A minha mulher Isolda, meu filho e a filha
que ela trazia no ventre, não poderiam mais ficar.Ajudado
por companheiros exilados, consegui o dinheiro suficiente para a
passagem de volta. Eu ficaria, pois voltar era impossível.
Sozinho eu saberia enfrentar todos os desafios,até o da morte.
Brasileiros eram praticamente caçados pela direita no Chile.
Um deles, Milton da Silva, um jovem de 21 anos de idade, foi assassinado
friamente pelos franco-atiradores do “Pátria y Liberdad”:
dois tiros na cabeça.
Foi dura, terrível mesmo a despedida. Policiais brasileiros
infestavam o aeroporto de Santiago. Isolda e Rubinho subiram na
escada do avião. Longa espera e a notícia dolorosa:minha
mulher, grávida e com um filho no colo, chegando ao Rio,
fora arrancada de dentro do avião. Presa pelo único
crime de ser mulher de Rubens Lemos.
Mais uma vez Erivan França.Cassado,injuriado, conseguiu localizar
minha mulher e meu filho. Foram postos em liberdade, depois de muito
sacrifício. Lá de longe , ao pé da fria e gigantesca
Cordilheira, eu gritava a minha revolta. Sem nenhuma resposta. Foi
uma noite de pesado e amargo silêncio.
Três
dias e três noites de perigo na Cordilheira Sem Texto
Parte 4 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Na
Polícia Federal:ali começa a “Operação-Terror”
Parte 5 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Depois
de me conseguir um colchão velho e nenhum lençol,
o diretor da Colônia Penal me garantiu que Isolda(minha mulher)estava
bem.Ela fora trancafiada numa cela, que era também enfermaria.
O coronel Juvenal Andrelino, diga-se, não me dirigiu uma
palavra agressiva,não me fez qualquer tipo de ameaça.
No silêncio da noite, a realidade ia se tornando muito clara
(e dura) para mim: aquilo tudo era o início, apenas o início.
O começo de uma longa e penosa caminhada. Em nenhum momento
acreditei naquele tratamento tão calmo que a Colônia
Penal me dispensava. Eu sabia que o pior estava a caminho. E precisamente
fazer chegar, imediatamente, para fora dos muros, a notícia
da nossa prisão. Principalmente a de Isolda.O pensamento
vagueava, pesado,tenso, quando vi duas mãos surgirem por
entre as grades da janela. Um rosto apareceu e uma voz quase sussurrada
me falou:” Rubens Lemos, conte a gente. Aguarde que, ainda
hoje, vai aparecer alguém de confiança para levar
recado à sua família. “ A voz era de Rinaldo,
também preso político. Não demorou muito, um
soldado surgiu na penumbra do corredor: “Gostaria de ajudar.
Conheço você da Rádio Poty”. Era, mais
uma vez, a solidariedade chegando. Em plena noite, na dura solidão
de uma penitenciária. E reafirmei minha confiança
no ser humano. Apesar da delação de que fora vítima.
Mas
o sono não veio.Pensava em Isolda, pensava em Yasmine, a
filha que me fizera atravessar a Cordilheira dos Andes para conhecê-la.
Pensava no delator que não pensou em nada disso na hora de
entregar à repressão dois seres humanos, que nada
de mal lhe fizeram. Que cometeram, apenas o pecado da confiança.
O dia amanheceu, outra noite chegou, outro dia amanheceu.Era o 7
de setembro. As tropas desfilavam nas ruas engalanadas e as criancinhas
de minha cidade agitavam bandeirolas verde-amarelas. Pelo rádio
de uma cela próxima ouvia emocionados e patrióticos
discursos, falando de paz,amor, segurança da família
e, principalmente , Democracia. Pesou no meu peito uma certa sensação
de desencanto e me lembrava da minha mãe evangélica,
lendo trechos bíblicos para o seu filho caçula.Entre
eles,um,que fala de hipócritas e fariseus.
Numa
manhã, depois de oito dias em completo isolamento tiraram-me
da cela. Fui levado até o Corpo da Guarda. E avistei Isolda:
abatida,magra,olhos de desespero e dor.Foi um abraço longo
e um beijo trágico. Agentes da Polícia Federal nos
esperavam com algemas.Eu só pude dizer à minha mulher:
“Não perca a calma. Você vai sair dessa”.
Pouco depois entrávamos na Nilo Peçanha, onde permanecemos
toda uma manhã algemados presos à uma cadeira. “
A Operação –Terror estava começando.
“RUBENS, PELO AMOR DE DEUS ASSINE!”
Os
agentes se revezavam, fazendo perguntas capciosas. Um deles,moreno,
meia-idade, alto ,magro,elegante, de nome Almeida, comandava.Fala
mansa, elegante, fez a proposta:
-
Você assina uma declaração, renegando tudo e
tudo fica resolvido.Você e sua mulher saem daqui,agora mesmo,
para casa. Vão poder abraçar seus filhos.
Eu
lembro muito bem o que respondi.
-
Eu não assino nada. Os senhores já me prenderam e
é a vocês que cabe provar se sou culpado de alguma
coisa.
Eles
queriam me transformar em mais um arrependido. Em um novo G; o protótipo
do dedo-duro. Eles queriam me transformar em rebotalho.Isolda me
olhava com olhos de dor e angústia. O comissário Almeida
insistia, voltando-se, agora, mais para minha mulher.
-
Está vendo? A senhora está aqui por causa dele. A
senhora está entregando pérola aos porcos. Ele quer
nos obrigar ao que nos não queremos, ou seja, trazer aqui
o seu filho Bimbo (Rubinho). A senhora quer isso?
Isolda
entrou em pânico e, num apelo, que era muito mais que um apelo
desesperado, chorando muito, me disse quase implorando:
-
Rubens, pelo amor de Deus assine!
Foi
um momento duro. Terrível. Eu que amava a todos, eu que cortara
os pés, enfrentando perigos, apesar de todos os meus medos,para
chegar a ela e aos meus filhos, surgia diante dela como um ser despido
de qualquer sentimento.Os policiais conseguiam fazer, com perfeição,
o jogo sujo. Com o coração pesado,mas com a certeza
mais firme, virei-me para Isolda.
-
Eles estão lhe jogando contra mim. Eles querem me degradar,mas
eu não me degradarei. Não assino nenhum “arrependimento”.
Eu quero um dia poder continuar olhando dentro dos olhos dos meus
filhos.
Levaram
Isolda para um sala no andar superior. Fiquei lá embaixo.
Sem ter o direito de chorar. Não podia, não devia,
revelar fraqueza. Isso é o que eles queriam. À tarde,
chegou minha vez. Entrei numa sala, onde estavam rostos conhecidos,
uns, desconhecidos outros. O major Alcântara comandava interrogatório.
Capitão Galvão, da DOPS, o delegado da PF, Franklin,
participavam. O major abriu uma pasta: ali estava “minha vida”,
foi o que pensei. O interrogatório durou muito tempo. Até
cartas que , do Chile, eu mandara para Isolda, estavam ali, fotocopiadas.
Mostraram –me uma fotografia minha ampliada: eu, barbudo,
cabelos grandes, usando uma pesada roupa de frio. A foto fora tirada
em Santiago , na Plaza Bequedano. Não havia dúvida.
A Ditadura brasileira tinha seus tentáculos, seus esbirros
espalhados por toda parte.
“PREPARE-SE
PARA APANHAR MUITO”
Nessa
mesma noite, minha mulher foi posta em liberdade. Guardado por agentes
fortemente armados, fui levado de volta para a Colônia Penal.
Os dias e as noites passavam lentamente. Nenhuma visita, notícias
raras trazidas através de pessoas lá mesmo do presídio.
Nem ameaças havia. Era como uma canção de Bethânia,
a sensação de “um grito solto no ar”.
Até que um dia, o sol começando a nascer, o carcereiro
me acordou:
-
Apanhe suas coisas, você vai embora.
Ao
atravessar a longa galeria, um velho avisou: “Prepare-se para
o pior”. Eu sabia disso. Desde o primeiro dia. De novo, os
agentes da Polícia Federal, algemas. Deixaram-me várias
vezes algemado, em posição bastante incômoda.
Novamente caras conhecidas passavam por mim. Uns, faziam que não
me viam. Outros, ainda arriscavam uma tímida saudação.
E vi, ali , caras que ninguém desconfiava fossem agentes.
Que se infiltravam nos bares,nas assembléias estudantis,nos
debates culturais. Até que botaram óculos de borracha.
Deitaram-me numa “Veraneio”. Antes, porém, pude
vê-los. Entre eles, estava o “Doutor Aníbal”,
com seu sotaque carioca e que viria a se transformar num dos mais
frios e sádicos torturadores dos tantos que enfrentei. O
carro rodava e rodava. Uma parada. Alguém mais era colocado
no veículo. E fomos os dois para aquilo que se chamava de
“Circo de Horrores” da Ditadura. Ao longo do percurso,
aproveitando o barulho do carro, me identifiquei para o outro preso.
Ele também. Era um ex-companheiro de rádio aqui, em
Natal.E que sofreu muito também.
Viajamos durante cerca de quatro horas. O óculos de borracha
queimava meus olhos. As algemas apertavam, cortando meus pulsos.
E a Veraneio parou. Fomos tirados. Meu corpo era um dor só.
Aos empurrões e pancadas fui levado para uma cela estreita
e imunda. Não tinha a menor noção de onde estava.
O carcereiro, de nome (ou codinome?) Valdeck, chegou.
-
Tire a roupa. Prepare-se para apanhar muito. Um grito lancinante
penetrou cela à dentro. Meu corpo cansado sobressaltou-se.
Os músculos ficaram tensos, retesados. Mais gritos. Depois,
puro silêncio. Aí, comecei a compreender o que era
o ruído do silêncio. Comecei a perceber a necessidade
de estar com a cabeça no lugar, de nunca perder a lucidez.
Isto seria a minha única condição de resistir
aos horrores que não tardariam a chegar.
Três homens abriram a cela. Puseram-me um capuz e amarraram
meus pulsos com cordas de náilon. E uma voz falou: “Vamos,
filho da puta, sua hora chegou!”.
Ele
vai ver que aqui não adianta ser macho?
Parte 6 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos
Fui
levado através do que me parecia um longo estreito corredor.
Uma porta se abre. Empurrara-me com toda violência possível.
As mãos atadas, capuz sobre o rosto. Escuridão total,
um breu só. A porta se fechou. E ali fiquei. O silêncio
era total e, acreditem, doía. Os minutos passavam lentos.
Nada acontecia. Eu, em pé. O coração batendo
forte, como um tamborim em carnaval de fim trágico. Descompasso.
Minha cabeça era caleidoscópio. Tudo e todos passavam.
Vi-me menino nas ruas de Currais Novos. Avistei caras de velhos
companheiros de correrias e brincadeiras nas ruas ensolaradas de
Mossoró. Até o burro "Chá Preto",
lá de Pixoré, aparecia calmo e pachorrento. Nenhum
ruído. Uma vontade de gritar, um desejo naturalmente tolo.
Vejo-me, de novo, em Nova Dimensão. O violão de Roberto
Maranhão, a voz:
Esta
saudade,
tão cruel que alucina(...)
Quero que voltes
como a primavera(...)
Roberto
Maranhão, Magnólia, Renato, Andréa, amigos
que nunca fugiram ao difícil e grande gesto de solidariedade.
A música me arrancava, por instantes, do terror em que me
encontrava. Até que um grito estourou na escuridão:
-
Seu nome, corno!
O coração bateu mais forte. E a resposta veio mecanicamente:
-
Rubens, Rubens Manoel Lemos
-
Está querendo brincar, subversivo de araque! Eu quero o sue
nome de guerra, o nome da Organização, tudo, tudinho,
entendeu?
-
Não tenho nome de guerra.
Uma
pancada violenta em atingiu a cabeça. Caí. De repente
, chutes. Alguém pulou sobre minha barriga. Vomitei. Puseram-me
novamente em pé. A voz sádica do doutor Aníbal:
-
Vamos fazer uma ligação direta nesse sacana. Aí,
ele vai ver que não adianta ser macho.
Amarraram-me
a uma cadeira. Um fio foi amarrado no dedão do pé.
E uma maquininha começou a funcionar. O choque elétrico.
Era como formigas raivosas me penetrando. Depois, como labaredas
queimando a alma. Gritei muito. A máquina parou. Os doutores
da lei riam. Sem esperar, duas mãos explodiram contra os
meus ouvidos.Um golpe terrível que me fez perder a noção
das coisas. Em seguida, um soco fulminante no estômago. Desmaiei.
Acordei pendurado tal qual um porco. Os pés sustentados em
duas latas de óleo, que cortavam. As latas não suportavam
o peso, caíam, e eu ficava apenas com a ponta dos dedos roçando
o chão. Senti o cheiro da morte. Foi toda uma noite de tortura.
Companheiro eu vou me suicidar
Nove
dias sem receber qualquer comida. Os três primeiros, sem tomar
um copo de água. Única alimentação:
torturas de toda espécie. Choques, pancadas, afogamento,
roleta russa eram a diversão dos torturadores. E eu sem saber
onde estava. O que estaria acontecendo lá fora? Só
uma coisa me sustentava: eu não podia ser indigno. Não
poderia revelar nomes e fatos. Era isso o que eles queriam. Passaram
a me chamar de Chileno, eles os torturadores.
Trinta e três dias depois, corpo massacrado, jogam dentro
da cela um outro preso político. Carlúcio, um operário,
trazia as costas banhadas de sangue. Apanhara muito.Eu,havia chegado
de mais uma sessão de tortura. Ele contou sua história
e ,quase em desespero, falou:
-
Companheiro, eu vou me suicidar.
Gritos,
gemidos, choro de torturados enchiam todos os espaços daquele
Circo de Horrores. Sem muitas forças, voz cansada, falei:
-
Não faça isso. É isso o que eles querem. Será
sua derrota e a vitória deles.
Um
relógio bateu ao longe. As badaladas eram nítidas
e pungentes. Foi Carlúcio quem me disse:
-
Você está em Recife. Isto aqui é o DOI-CODI.
Esta é casa que servia aos generais comandantes do IV Exército.
O relógio que você está ouvindo é o da
Faculdade de Direito do Recife.
As
pernas doíam muito. Estavam inchadas. Trinta e três
dias sem ver a luz do sol, sem tomar banho. As necessidades eram
feitas numa garrafa plástica partida ao meio. O carcereiro
Teles, com o seu sadismo de sempre chegou:
-
Chileno, vamos ali. Você, hoje, vai conversar com uma pessoa
muito importante.É a maior autoridade em subversão
da América Latina.
Outra
vez o capuz, algemas e pancadas. A voz com sotaque paulistano. O
tom direto e cruel. Eu estava diante do Delegado Fleury, que veio
de São Paulo para me interrogar. E, antes de qualquer pergunta,me
deferiu um violento soco no estômago. Caí, como um
saco vazio.
Fleury queria saber dos exilados. Quem era quem. Onde está
Bruno Maranhão? E o Sargento Prestes? Eu sei que você
morou na casa de Geraldo Vandré.
- Ou você conta tudo ou não sai vivo daqui.
A
minha resposta foi a mesma:
-
Desconheço tudo isso.
Uma
voz conhecida apareceu na escuridão do meu capuz. Era a voz
do Major Alcântara ,aquele que comandava os interrogatórios
em Natal. Outra voz falou:
-
Esse imbecil tá pedindo pra morrer!
VOCÊ NÃO VAI MORRER
Fui tirado da cela. Diante de mim, o doutor Fernando?, com uma bíblia
na mão. Perguntou se eu acreditava em Deus. Respondi que
minha formação religiosa era evangélica. Ele
falou:
-
Então você compreende que a própria bíblia
justifica a violência. Cristo expulsou os vendilhões
do templo à chibatadas. Pedro cortou a orelha de um centurião.
Você está aqui para purgar seus pecados. O martírio
é necessário para resgatar e purificar almas.
Eu
arrisquei a perguntar:
-
O senhor considera, então, a tortura como um ato de fé
religiosa e cristã?
O
doutor Fernando chamou o carcereiro Leite e ordenou:
-
Leve esse canalha. Eu mesmo quero mostrar a ele o que é a
bíblia.
Fui
torturado por horas seguidas. E a pior tortura ocorreu quando puseram
diante de mim um velho chamado Holanda, de Recife. Ele tinha o peito
queimado por isqueiro. Um olho estava quase fora de órbita.
Como se tivesse acontecido uma briga mortal entre dos galos. O velho
Holanda me olhou, altaneiro:
-
Irmão, eu sei que vou morrer, mas a ele não digo nada!
Diante
dos torturadores eu disse:
-
Não velho. Você não vai morrer. Mesmo que eles
lhe matem.
Explodiu
dentro de mim uma revolta enorme e, buscando coragem, não
sei aonde, comecei a cantar:
Angústia,
solidão, um triste adeus em cada mão, lá vai
meu bloco, vai só desse jeito é que ele sai(...)
Por isso, quando eu passar,
Batam palmas pra mim
Gritos e gemidos calaram. E das imundícies das celas, uma
voz tímida começou a cantar também. Outra voz
de juntou. Outras vozes se juntaram. E os torturados fizeram um
coro maravilhoso:
Merece
uma homenagem quem tem forças pra cantar,
Tão grande é minha dor,
Pede passagem quando sai.
Por isso só, lá vai meu bloco, vai...
E
todos os prisioneiros políticos do DOI-CODI assumiram a música
como uma das formas de resistência. Apesar das ameaças
do doutor Fernando, coronel à época, cujo verdadeiro
nome é Cúrcio Neto. Que torturava presos, lia a bíblia
e, depois ia, possivelmente, fazer amor com as mulheres.
“Minha
morte havia sido decretada, mas fui salvo pelo gongo”
Parte 7 - Memórias do Exílio, por Rubens
Lemos (Final)
Foram
exatamente 60 dias no DOI-CODI, Recife.Quarenta e quatro dos quais
de quase ininterruptas torturas. Dias de terror e solidão.
Corpo dilacerado. Misturando medo e coragem,lágrimas escondidas
por trás do capuz. Vendo seres humanos sofrendo iguais e
piores horrores. Assistindo o desfile diuturno de pessoas em desespero
e o orgasmo sádico de homens que representavam “a defesa
da Lei e da Ordem”. Homens que permitiam que seus rostos fossem
vistos. Os centuriões da Ditadura.
Esses
“doutores”, sob o comando do então coronel Cúrcio
Neto, espancaram jovens e velhos, violentaram mulheres, mataram
brasileiros.Assassinaram ali mesmo, no DOI-CODI, na mesma casa que
antes era usada pelos generais que comandaram o IV Exército,
jovens como Emmanuel Bezerra,norte-rio-grandense e ex-presidente
da casa do estudante.Emmanuel foi morto com um tiro de misericórdia,
depois de cortado a tesoura por esses ensandecidos guardiães
da “Democracia”.Mas, à época, os jornais
publicavam de forma diferente. Diziam que Emmanuel morrera em São
Paulo, depois de resistir e trocar tiros com as forças repressoras
do Regime Militar.
Da
mesma forma, o líder estudantil Mata Machado,a quem vi massacrando
ensanguentado e digno.Vestindo cueca vermelha, já quase sem
poder falar, olhou para mim e falou:
- Companheiro.Sou Mata Machado, dirigente da AP(Ação
Popular). Eles vão me matar.Se você puder, avise aos
outros que fiquem firmes, pois eu não falei, não abri
nada.
E MATARAM MATA MACHADO
Sessenta dias, depois trouxeram minha roupa, as sandálias
e o relógio. Novamente o capuz e as algemas.Fui levado ao
que parecia uma garagem, pois era grande o barulho de carros.Depois
de muito tempo, uma voz falou rápido e baixinho:
- Fique tranqüilo.
Você vai ser levado de volta para Natal.
Nunca mais ouvi aquela voz, a única - no meio de tanto desprezo
pelo ser humano – que me trouxe de volta um fio de esperança,
pois eu estava, também, marcado para morrer. Vim saber disso
tempos depois: alguém, até hoje não identificado,
fizera chegar a Roberto Furtado um bilhete dizendo: “Seu amigo
foi salvo pelo gongo.” Na verdade, o CENIMAR já determinara
minha execução.
E
voltei para Colônia Penal “João Chaves”,
onde cheguei por volta da meia-noite.Os pés, a muito custo,
sustentavam meu corpo estropiado.
JAILSON, “O BANDIDO”, ME SALVOU A VIDA
Para surpresa minha, quem me recebeu à porta da penitenciária
foi o Tenente Adel, aquele mesmo que conhecera, nos anos 60, como
ator do Teatro de Amadores de Natal e, depois, incorporado ao Grupo
Jesiel Figueiredo. Adel me entregou ao Corpo da Guarda, de onde
fui levado para uma cela de isolamento, chamada ironicamente de
“lua”. Um velho e sujo colchão, um espaço
estreito e um corpo quebrado.As calças não sustentavam
no corpo esquálido. Dia seguinte a visita do médico.
De forma profissional e correta me examinava.Era Berilo de Castro
, irmão de Ney Leandro de Castro. O Berilo de grandes jogadas
como centro-médio do América e do Alecrim.E sobre
quem tantos comentários eu fizera quando nos microfones da
Rádio Poty.
Os
dias iam passando pesados. Nenhuma visita.Tudo era proibido. Até
que semanas depois,fui levado à sala do diretor.À
minha frente, Ivan Tavares, meu cunhado, escolhido para comprovar
que eu estava vivo.Ele não conseguiu dizer uma palavra. Percebi
que o choro estava entalado em sua garganta.”Tudo bem,tudo
bem” eu disse.Logo depois,apareceu Isolda, minha mulher, num
vestido amarelo bonito, como ela própria, ou como girassóis
viçosos.
Levaram-me
de volta à “lua”. Visitas só vieram a
ocorrer muito depois .E dessa “lua” vi coisas dolorosas,
senti a violência do cárcere.Presos comuns torturados,
mortes ocorriam no presídio.E,uma noite, noite alta, acordei
com uma gritaria enorme.A porta da minha estreita cela era aberta.não
havia luz Mais ou menos onze presos comuns, considerados de alta
periculosidade, aparentemente embriagados, foram postos (ou espremidos)
dentro da cela Pressenti o perigo.Gritavam e brigavam.Entre eles,
estavam “Mudinho”,”Penerá o Pé”
e “Negro Anchieta”.Alguém falou :
- Vamos logo fazer o serviço nesse barão...
Levantei e só pude dizer coisas pouco convincentes. Mas,
minha voz valeu porque outra voz surgiu perguntando:
- É Rubens Lemos quem está falando?
A voz era de Jailson Fortunato de Lima, que conheci criança,filho
de gente querida dos tempos de Rádio Poty. E, das sombras
da lua, Jailson disse:
- Nesse aí, pessoal, ninguém vai tocar.Rubens Lemos
é gente de fé. Quem tocar nele, vai se entender comigo.
O silêncio foi completo.Minutos depois, a porta da cela foi
aberta e eles foram embora. Antes, porém, Jailson Fortunato
de Lima me abraçou e garantiu: “O serviço foi
encomendado. Mas, daqui pra frente durma tranqüilo”.
E nunca mais esqueci aquele gesto de alguém que era considerado
bandido, mas, que, na verdade, me salvara a vida.
Outras
coisas aconteceram na prisão.A prisão que conheci
“Joca de Cininha”, Edmar Nunes Leitão, o “Antônio
Letreiro”, matadores profissionais, como conheci marginais
de todos os tipos.Homens que foram transformados em feras, em animais,
por uma sociedade injusta, desumana, embora “cristã
e temente a Deus”.
Fiquei
mais de seis meses em “liberdade”. Uma liberdade que
me impedia de trabalhar, de sair de Natal, de rever os filhos de
uma anterior união, quando ainda tinha 19 anos. Lúcia
que me fez avô aos 37 anos de idade.Marcos Wilson, que entrou
num seminário do interior de São Paulo.Fábio
César, que hoje, aos 21 anos, é universitário
e líder sindical em Londrina.Esses, os meus filhos de uma
relação fracassada e que, só muito tempo depois,
consegui resgatá-los: como filhos e como pai.
Enquanto
não saía o julgamento na Auditoria Militar, em Recife,
sofri toda a sorte de constrangimentos em Natal.Fui levado, seguidas
vezes, às salas de interrogatório da Polícia
Federal e do Dops. Vi pessoas, que não imaginava, entre os
interrogadores e que, hoje, são figuras respeitáveis
e notáveis no Estado. Como vim descobrir, recentemente em
Cuiabá, escondido sob o nome de um respeitabilíssimo
advogado,a figura de “Cabo Henrique”, um dos mais frios
torturadores do Brasil e que pertencia (?) aos quadros de oficiais
das Forças Armadas Brasileiras.
APESAR DAS AMEAÇAS
Termino esta série de depoimentos.Que, é lógico
não estão completos,mas representam a essência
de todo um período em que fui participante. Corajoso ou não.
Busco com isso deixar o meu testemunho.Algumas omissões de
nomes e fatos foram necessárias. Por questão de segurança(não
minha), mas de terceiros Apesar das ameaças recebidas por
telefone, prossegui. Como quero prosseguir encarando a vida, como
encaro meus filhos. Principalmente como encaro meu caçula
Camilo, que escapou “aos perigos daquela vida”, vida
minha, de Isolda Rubinho e Yasmine.e é a Camilo, como a todos
os que lutaram (mortos ou vivos) e que continuam lutando pela verdadeira
liberdade deste país, que dedico esse trabalho.
* O jornalista Rubens Lemos faleceu dia 04 de junho
de 1999 aos 57 anos em Natal, vítima de hemorragia, decorrente
de uma cirrose hepática.
|

|