
A Declaração dos Direitos
Humanos sob a
Perspectiva de Gênero
Shelma Lombardi
Marco histórico e
instrumento jurídico por excelência de proteção aos
Direitos Humanos (DDHH), a Declaração Universal de 1948
proclama o reconhecimento da dignidade intrínseca e da
igualdade de todos os membros da família humana:
mulheres, homens e crianças.
O princípio da igualdade
é, por assim dizer, a espinha dorsal do sistema de
garantias dos direitos fundamentais que os Estados-partes
e a comunidade internacional devem assegurar a todos os
indivíduos e povos, independentemente de sua raça, cor,
etnia, crença ou descrença, bem como de outras tantas
diferenças, v.g., de gênero, condição social
etc.
O preceito da “ Equal
Protection Under The Law”, “igual proteção com
amparo na Lei” vem consagrado na Constituição
Americana, nas Convenções Internacionais e nas
Cartas Políticas dos Estados democráticos. A igualdade,
contudo, pressupõe a pluralidade, sem a qual não faria
qualquer sentido, não passando de postulado inútil,
inadmissível no plano dos direitos. Se todos fossem idênticos,
é óbvio, não haveria razão para editarem-se normas jurídicas
de proteção a desiguais.
Os DDHH, conceituados como
direitos inerentes à pessoa humana, antecedem à criação
do Estado e dele prescindem. Todavia, seu conteúdo é
histórico com forte componente cultural e, como tal, sua
evolução deve acompanhar a transformação da realidade
que visa regular. Essa realidade torna-se cada dia mais
universal. Daí porque os direitos humanos ou fundamentais
não se constituem em “numerus clausus” porque surgem
das necessidades e vicissitudes históricas.
Nesse sentido, a Constituição
da República Federativa do Brasil contém norma de
encerramento ( §2° do art. 51 da C.F), visando
incorporar ao direito interno outros direitos porventura
nela não contemplados e os decorrentes de Tratados e
Convenções de que o Brasil é signatário. Esses
acordos, uma vez ratificados, passam a ter plena vigência
no país, revogando a legislação ordinária que se
mostre com eles incompatível, por força da prevalência
e primazia do preceito constitucional (§ 1° do mesmo
artigo).
O documento do CLADEM
(Comitê Latino Americano e do Caribe para a Defesa dos
Direitos da Mulher) sob o título “ Direitos Humanos
para o Século XXI”. Contribuições ao 50° aniversário
da Declaração Universal dos Direitos Humanos, desde uma
perspectiva de gênero, 1995, salienta que o conceito de
Direitos Humanos, nas suas origens, esteve limitado à
relação indivíduo-Estado, e às violações ocorridas
no âmbito público. Tal circunstância determinou que,
durante anos, a violência familiar e sexual contra as
mulheres não fosse considerada como uma violação aos
Direitos Humanos. As normas internacionais, por
demanda de grupos organizados de mulheres, têm
incorporado a proteção dos direitos das mulheres, cuja
satisfação deve ser exigida tanto do Estado quanto dos
particulares. Outro aspecto que o documento enfatiza é o
de que embora a declaração considerasse como Direitos
Humanos os direitos civis e políticos, bem como os
direitos econômicos, sociais e culturais, os Estados
enfatizaram o reconhecimento dos primeiros, cujo
cumprimento materializava-se facilmente através da não
interferência estatal nas ações dos indivíduos. A
reflexão crítica sobre a experiência histórica
demonstra, desde logo, que a idéia do indivíduo titular
dos direitos de primeira geração o identifica como
o ser humano ocidental, varão, adulto, heterossexual e
possuidor de patrimônio.
Dessa perspectiva histórica
resultou a exclusão, a restrição e a ineficácia dos
Direitos Humanos com relação às mulheres,
meninas, meninos, povos indígenas, homossexuais, grupos
humanos de outras raças e etnias, pessoas de extrema
pobreza.
Ademais, sendo notória a insuficiência do
reconhecimento dos direitos civis e políticos, sem o
atendimento às necessidades básicas da saúde, educação,
alimentação e moradia, era imperativa a inclusão desses
direitos nos textos legais que lhes deram existência no
plano formal. Emergiam, dessarte, os direitos de segunda
geração. Não obstante, para assegurar aos beneficiários
referidos direitos, não basta o comportamento omissivo do
Estado, cumprindo-lhe a realização de ações positivas.
E, sob a ótica dos Direitos Humanos das mulheres, o
Estado, nessa segunda etapa, deixou muito a desejar quanto
às políticas públicas por ele implementadas no âmbito
da federação. Se considerarmos, quer no país, quer no
exterior, o direito de acesso ao trabalho, se poderá
facilmente constatar que essa garantia esbarra nas
desigualdades raciais, de classe, de gênero e até de
nacionalidade. As oportunidades de emprego longe estão de
ser iguais para todos, homens e mulheres, quer vivam em
seu próprio país ou em outro.
As mesmas dificuldades ocorrem com relação aos demais
direitos da assim chamada segunda geração.
Às vésperas do terceiro
milênio, quando já se fala em direitos de quarta geração,
impõe-se rever posturas e atualizar conceitos. O
mundo encontra-se em plena fase da terceira geração dos
Direitos da pessoa humana, na qual a titularidade dos DDHH
deixa de ser monopólio dos indivíduos. Ao lado dos
precitados direitos, emerge a proteção aos direitos
difusos ou meta-individuais, que não podem ser exercidos
individualmente, de maneira isolada da comunidade. O indivíduo
passa a ser entendido a partir de sua dimensão social. O
valor supremo é o humanismo do direito sob a
inspiração da fraternidade universal entre todos os
seres vivos. Nesse contexto, incluem-se o direito dos
povos à autodeterminação como necessidade decorrente da
diversidade das culturas; o direito ao desenvolvimento; à
paz; à proteção do meio ambiente como patrimônio comum
dos povos. Titulares desses direitos (de terceira geração)
são os povos, as presentes e futuras gerações, as
minorias raciais ou etnias, e todos os grupos
tradicionalmente excluídos.
Hodiernamente, são princípios
informativos dos DDHH: 1) o da universalidade: todos os
seres humanos são titulares desses direitos,
independentemente de nacionalidade, sexo, raça, crença
ou ‘status’ social. A universalidade gera deveres
gerais negativos e positivos tanto para o Estado quanto
para o indivíduo, pois gravita sobre os destinatários
implicados. A propósito, a norma contida no art. 225 da
Carta Política Nacional, de cárater genérico, e
outras tantas específicas, visando à proteção
ambiental; 2) da indivisibilidade; 3) da interdependência.
Deles resulta a inexistência de hierarquia entre os DDHH.
Todos têm a mesma importância e força moral, não
podendo o seu reconhecimento depender de nenhuma condição.
Sob tal enfoque, nenhuma discriminação pode ser
tolerada, nenhum tipo de exclusão ou restrição há
de ser consentido. As únicas normas diferenciadoras possíveis
são apenas aquelas que visem a extirpar as
desigualdades reais, conferindo especial proteção aos
desiguais. É o caso da mulher quanto aos direitos sociais
concernentes à maternidade e, por exemplo, na esfera das
execuções penais, o direito da presidiária de
permanecer com seus filhos durante o período de amamentação
(art. 5º, inciso L, C.F.).
A realidade fática no país,
malgrado os acordos formais celebrados pelo Brasil, expõe
uma prática social tradicionalmente fulcrada nas
desigualdades. A tendência contemporânea universal é de
reverter esse quadro através da releitura dos
instrumentos de proteção aos DDHH, à luz dos direitos
dos excluídos. Sinalizam em tal sentido os organismos
internacionais, ONU, OEA, etc, com relação à problemática
da criança, do imigrante, da discriminação das
mulheres, através de diferentes instrumentos, centrados
nas especificidades.
A formulação e
desenvolvimento de uma perspectiva de gênero na compreensão
e aplicação dos DDHH têm apoio na Declaração e
Programa de Ação de Viena, Conferência Mundial de
Direitos Humanos, Viena, 14 a 25 de junho de 1993;
Declaração para a Eliminação de todas as Formas de
Discriminação contra as mulheres, adotada pela Assembléia
Geral das Nações Unidas, nos termos da Resolução 2263
(XXII) de 07 de setembro de 1967; Convenção
Interame-ricana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência
contra a Mulher, adotada pela Assembléia Geral da
Organização dos Estados Americanos, nos termos da
Resolução de 09 de junho de 1994; Tratado Global das
Mulheres para as ONGs que procuram um planeta justo e
sadio, Fórum Global, Rio de Janeiro, junho de 1992;
Programa de Ação da Conferência Internacional sobre a
População e o Desenvolvimento; Conferência
Internacional sobre a População e o Desenvolvimento,
Cairo, 05 a 13 de setembro de 1994; Declaração e
plataforma de Ação de Beijing; 4ª Conferência Mundial
sobre a Mulher, Beijing, 04 a 15 de setembro de 1997;
Declaração de Nairobi, adotada por 105 governos na sessão
do Conselho de Caráter Especial em comemoração ao 100
aniversário das Nações Unidas sobre Ambiente Humano;
Declaração de Estocolmo sobre o Ambiente
Humano, e tantas outras.
No solo pátrio, as violações
aos DDHH estão presentes em nosso dia a dia, envolvendo
as camadas mais indefesas da população, quer através
das práticas repressivas do Estado, por seus agentes,
quer nos exemplos rotineiros de exploração do trabalho
do menor, da prostituição infantil ou ainda pela violência
dentro da família contra mulheres e crianças.
Apesar dos avanços no
plano formal em diversas esferas de atividades, teórica e
prática, a pobreza, a violência e a desigualdade são
fenômenos crescentes no atual contexto mundial. No limiar
do terceiro milênio, ao Poder judiciário e operadores do
Direito cumpre o desafio de colaborar para que o
direito se converta em instrumento transformador na vida
cotidiana das mulheres, homens e crianças. O Projeto JEP
(Jurisprudence of Equality Project) de capacitação de
magistrados, representa o esforço de Juízas e Juízes de
vários países latino-americanos e dos EEUU da América
que, em convênio com o BID, vêm desenvolvendo reflexões
e estudos nos workshops e seminários, com tal finalidade,
ou seja, a de construir uma sociedade mais justa e igualitária
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