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                        Etnicidade,
                        Violência e Direitos Humanos em ÁfricaKABENGELE
                        MUNANGA
 Docente
                        do Departamento de Antropologia
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              Nenhum país do mundo respeita integralmente os trinta artigos que
              compõem a Declaração Universal dos Direitos Humanos adotada
              unanimemente pela Assembléia Geral das Nações Unidas em 1948.
              Como demonstrado pelo levantamento exaustivo realizado por Charles
              Humana (World Human Right Guide, 1984), a taxa média de aplicação
              e respeito dos Direitos Humanos nos países do mundo ocidental,
              coincidentemente mais ricos e mais democráticos, é de mais de
              90%. No entanto, é justamente entre os cinqüenta e sete países
              que compõem o continente africano onde encontram-se as maiores
              taxas de violação e desrespeito dos Direitos Humanos. Nesses países,
              a taxa média de aplicação não atinge o limite inferior de 64%.
              No caso dos países da África sub-saariana, esse índice é
              geralmente medíocre ou ruim.    
              Como explicar essa discrepância entre os países africanos e os
              do mundo ocidental em matéria dos diretos humanos? Constata-se
              também uma coincidência entre a pobreza e a falta de democracia
              na África, ambos os fatos relacionados com a violência. Se os países
              da Europa ocidental conseguiram no último meio século formar uma
              ilha de paz, os da África dita negra formam desde as independências
              (1957-2001) uma das zonas mais violentas do mundo contemporâneo.
              E quando falo de violência, não me refiro à série de Golpes de
              Estado Militar muitas vezes realizados com música marcial, sem
              ferir ninguém, nem à violência difusa no corpo social como um
              todo, embora reconheçamos a sua importância. Refiro-me à violência
              que toca a grupos inteiros: os massacres coletivos, a repressão e
              a tortura institucionalizadas, as hostilidades sangrentas que opõem
              grupos étnicos ou religiosos. Breve, penso no sangue derramado
              entre populações civis aterrorizadas nas situações impossíveis,
              as chamadas guerras fratricidas.    
              Num relatório ao Conselho de Segurança sobre as causas dos
              conflitos, da promoção da paz e do desenvolvimento durável, o
              atual Secretário Geral da ONU, Kofi Annan confessa a incompetência
              de sua Organização e sua falência por não ter evitado as tragédias
              na África. Desde 1970, mais de trinta guerras aconteceram no
              continente, sendo a maioria delas no próprio interior dos
              Estados. Apenas em 1996, quatorze dos cinqüenta e sete países
              africanos sofreram conflitos armados, o que provocou mais de oito
              milhões de refugiados e um imenso deslocamento das pessoas. A
              lista dos pontos quentes tem a forma de uma ladainha necrológica:
              Biafra, Zaire, Sul do Sudão, Etiópia, Angola, Moçambique,
              Ruanda, Burundi, África do Sul, Libéria, Somália...    
              Diante dessa violência, a opinião comum formada a partir de um
              olhar jornalístico ocidental e etnológico colonial nos acostumou
              à seguinte explicação, fundamentada num cenário em três atos:
              no início havia uma África pré-colonial despedaçada pelas
              guerras tribais incessantes; em seguida veio a Missão
              Colonizadora através das potências coloniais, que conseguiram,
              com muito trabalho e dedicação, construir o progresso e
              apaziguar as tribos selvagens; em último ato vem a África pós-independência
              que, por uma espécie de atavismo hereditário, retorna, após a
              saída do colonizador, ao velho tempo pré-colonial caracterizado
              pelas incessantes guerras tribais que, por sua vez, seriam um
              atavismo das hordas primitivas que viviam permanentemente em
              guerra umas contra outras. Uma tal explicação torna natural o
              estado da violência na África “negra” e inviabiliza, conseqüentemente,
              qualquer tentativa de apaziguamento.    
              No entanto, se olharmos a história da Humanidade, percebemos que
              os povos da África “negra” não são nem mais nem menos
              violentos que os dos outros continentes. A violência sempre foi,
              segundo as palavras de Karl Marx, a maior “parteira” da história,
              notadamente no que concerne os processos de formação dos
              diferentes Estados-Nações, desde a China dos Tsing até os
              Estados Unidos da América, passando pelas guerras de Duas Rosas
              na Grã Bretanha ou pelo rude exército da unidade alemã fundada
              por Bismarck, sem esquecer as duas últimas guerras mundiais e
              todas as barbaridades recentes nos países Bálcãs e no Leste
              Europeu.    
              Para entender o lugar da violência na África contemporânea, é
              preciso fazer um recuo histórico, tentar situar a experiência
              atual numa perspectiva histórica global, suscetível de explicar
              as especificidades de nossa época. A história da África não é
              apenas a de suas formas de Estado, muitas vezes flutuantes e
              geograficamente limitadas. As etnias também têm história. A
              conquista colonial interrompeu brutalmente os processos
              (geralmente violentos) que, em numerosos pontos do continente,
              estavam conduzindo ao nascimento de Estados proto-nacionais, como
              os “Jihad” de Samori Touré ou de Uthman Dan Folio, o
              crescimento de Buganda ou do Estado caravaneiro de Mirambo, e o
              fez utilizando uma outra violência, pois concordamos que a
              colonização constitui uma modalidade de violência cujas conseqüências
              explicariam em parte os conflitos e antagonismos irredutíveis
              vividos pela África de hoje e cujas saídas são difíceis.    
              A etnização ou tribalização da África foi um processo
              constante em todas as políticas coloniais. As formações políticas
              diversificadas como impérios, reinos, chefias e clãs foram
              reduzidas a um mosaico de etnias que cada regime colonial tentou
              inventariar. Em algumas situações, criaram-se etnias e/ou
              fabricaram-se consciências étnicas que não existiam antes da
              chegada do colonizador. As oposições étnicas atuais exprimem e
              refletem tantas outras coisas que as diferenças culturais e
              hostilidades tradicionais que se perseguiam sob outras formas. Em
              outras palavras, os tribalismos “contemporâneos” só podem
              exprimir outras coisas que a etnicidade, porque as violências
              deles resultados nada ou pouco têm a ver com as diferenças
              culturais. As realidades de Ruanda, Burundi, Somália, etc,
              mostram que essas diferenças não existiram e que muitos países
              africanos têm mais semelhanças do que diferenças culturais. Não
              é por acaso que estudiosos ocidentais renomeados como Frobenius,
              Baumann, Westermann, Jacques Maquet, Denise Paulme e tantos outros
              cunharam o conceito de civilização africana no singular. As
              guerras na África contemporânea são essencialmente civis. A
              natureza do sistema do Estado herdado da colonização constitui o
              coração dos conflitos. FONTE:
              INFORME FFLCH Nº 22 - JUNHO/2001  
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