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 A Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos
 * A versão da Carta Africana dos
              Direitos do Homem e dos Povos foi publicada em português na
              colectânea do Prof. Jorge Miranda, intitulada Direitos do Homem
               Principais Textos Interna- cionais, 2.ª ed., Lisboa, Petrony,
              1989, pág. 299 e seguintes. Neste trabalho é apenas feita a
              descrição dos direitos enunciados na Carta Africana, faltando a
              apreciação dos trabalhos da Comissão Africana dos Direitos do
              Homem e dos Povos nela insti- tuída, a qual já produziu alguns
              relatórios e decisões. Dada a falta de informação em língua
              portuguesa relativamente à Carta (da qual são parte os cinco
              Estados africanos lusófonos), optá- mos, numa primeira fase, por
              "apresentar" o seu catálogo de direitos, deixando para
              momento posterior a análise da actividade da Comissão INTRODUÇÃO A protecção dos direitos do homem no continente africano decorre
              de
 circunstâncias históricas específicas, relacionadas com a
              descolonização e o
 direito à autodeterminação dos povos, que dominaram os
              trabalhos da Organização de Unidade Africana, desde 1963 (data da sua criação)
              até ao final da década de 70. Com efeito,?????? a questão dos direitos do homem apenas
              surge formalmente no Preâmbulo da Carta da OUA, nas referências à
              adesão aos princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao
              direito dos povos a disporem do seu próprio destino, bem como a cooperação
              em matéria de respeito pelos direitos do homem. Tratava-se de uma abordagem
              "avara" 1 e "tímida" 2 , que resultava mais da interpretação dos seus princípios
              gerais do que da letra do respectivo articulado.
 
              Após o processo de independência dos Estados africanos, foi
              adoptada pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA, em 28
              de Junho de 1981, em Nairobi, a Carta Africana dos Direitos do Homem
              e dos Povos, também conhecida como Carta de Banjul. Entrou em vigor em
              1986 1 M'Baye, Kéba  "A Organização de Unidade Africana",
              inAs Dimensões Internacionais dos
 Direitos do Homem
 , Manual Unesco, Lisboa, 1983, págs. 615 a 633. Ainda em língua
              portuguesa,
 vide Gonçalves Pereira / Quadros, Fausto de 
 Manual de Direito Internacional Público
 , 3.ª ed.,
 Coimbra, 1994, págs. 641 e seguintes.
 2
 Ndiaye, Birame  "Lugar dos Direitos do Homem na Carta da
              Organização de Unidade Africana",
 in
 As Dimensões Internacionais dos Direitos do Homem,
 Manual Unesco, Lisboa, 1983,
 págs. 633 a 648.
 
 
   --------------------------------------------------------------------------------P??????l??age 1
 MARIA JOSÉ MORAIS PIRES
 Mestre em Direito Público
 Conselheira de Embaixada
 CARTA AFRICANA
 DOS DIREITOS HUMANOS E DOS POVOS
 *
 * A versão da Carta Africana dos Direitos do Homem e dos Povos
              foi publicada em português na
 colectânea do Prof. Jorge Miranda, intitulada
 Direitos do Homem  Principais Textos Interna-
 cionais,
 2.ª ed., Lisboa, Petrony, 1989, pág. 299 e seguintes.
 Neste trabalho é apenas feita a descrição dos direitos
              enunciados na Carta Africana, faltando a
 apreciação dos trabalhos da Comissão Africana dos Direitos do
              Homem e dos Povos nela insti-
 tuída, a qual já produziu alguns relatórios e decisões. Dada a
              falta de informação em língua
 portuguesa relativamente à Carta (da qual são parte os cinco
              Estados africanos lusófonos), optá-
 mos, numa primeira fase, por "apresentar" o seu
              catálogo de direitos, deixando para momento
 posterior a análise da actividade da Comissão.
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 INTRODUÇÃO
 A protecção dos direitos do homem no continente africano decorre
              de
 circunstâncias históricas específicas, relacionadas com a
              descolonização e o
 ??????l??            direito à autodeterminação dos povos, que dominaram os
              trabalhos da Organi-
 zação de Unidade Africana, desde 1963 (data da sua criação)
              até ao final da
 década de 70. Com efeito, a questão dos direitos do homem apenas
              surge
 formalmente no Preâmbulo da Carta da OUA, nas referências à
              adesão aos
 princípios da Declaração Universal dos Direitos do Homem, ao
              direito dos
 povos a disporem do seu próprio destino, bem como a cooperação
              em matéria
 de respeito pelos direitos do homem. Tratava-se de uma abordagem
              "avara"
 1
 e "tímida"
 2
 , que resultava mais da interpretação dos seus princípios
              gerais do
 que da letra do respectivo articulado.
 Após o processo de independência dos Estados africanos, foi
              adoptada
 pela Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da OUA, em 28
              de
 Junho de 1981, em Nairobi, a Carta Africana dos Direitos do Homem
              e dos
 Povos, também conhecida como Carta de Banjul. Entrou em vigor em
              1986
 1
 M'Baye, Kéba  "A Organização de Unidade Africana",
              in
 As Dimensões Internacionais dos
 Direitos do Homem
 , Manual Unesco, Lisboa, 1983, págs. 615 a 633. Ainda em língua
              portuguesa,
 vide Gonçalves Pereira / Quadros, Fausto de 
 Manual de Direito Internacional Público
 , 3.ª ed.,
 Coimbra, 1994, págs. 641 e seguintes.
 2
 Ndiaye, Birame  "Lugar dos Direitos do Homem na Carta da
   ??????>??´p??           Organização de Unidade Africana",
 in
 As Dimensões Internacionais dos Direitos do Homem,
 Manual Unesco, Lisboa, 1983,
 págs. 633 a 648.
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 e está actualmente ratificada pela maioria dos Estados membros da
              OUA
 3
 com excepção da Etiópia e da Eritreia.
 A Carta Africana constitui naturalmente um contributo importante
              para
 o desenvolvimento do direito regional africano e preenche uma
              lacuna em
 matéria de protecção dos direitos do homem. Trata-se de um
              progresso signi-
 ficativo, resultante de um compromisso entre as concepções
              políticas e jurí-
 dicas opostas, que veio trazer ao direito internacional dos
              direitos do homem a
 consagração de uma relação dialéctica entre direitos e
              deveres, por um lado,
 e a enunciação tanto de direitos do homem como de direitos dos
              povos, por
 outro. As tradições históricas e os valores da civilização
              africana influenciaram
 os Estados autores da Carta, a qual traduz, pelo menos no plano
              dos princípios,
 uma especificidade africana do significado dos direitos do homem.
 Uma outra inovação que merece relevo, consubstancia-se na
              ausência
 de distinção entre direitos civis e políticos, por um lado, e
              direitos sociais
 e económicos por outro, o que constitui aliás a consagração da
              mais recente
 doutrina do direito internacional dos direitos 
                                do homem
 4
 . A Carta não distingue
 a natureza dos direitos, atribui-lhes igual força jurídica e
              submete-os todos
 à "jurisdição", ou melhor, ao controlo da Comissão
              Africana dos Direitos do
 Homem. Assim, em teoria, a Comissão poderá ser chamada a
              apreciar a acti-
 vidade dos Estados em matéria de acções destinadas a assegurar
              o exercício
 dos direitos económicos e sociais.
 A enunciação dos deveres revela-se também uma das
              originalidades da
 Carta de Banjul. A referência aos deveres tinha já surgido num
              instrumento
 jurídico não vinculativo  a Declaração Americana dos
              Direitos e Deveres do
 Homem de 1948  mas a Carta Africana revela-se o único tratado
              relativo
 a direitos do homem que consagra, de forma desenvolvida, a noção
              de
 deveres individuais não só em relação ao próximo, mas também
              em função da
 comunidade, na linha da tradição africana. Este entendimento
              constitui uma
 3
 Em Setembro de 1999, eram os seguintes os Estados partes na
 Carta Africana dos Direitos do
 Homem e dos Povos
 : África do Sul, Angola, Argélia, Benin, Botswana, Burkina Faso,
              Burundi,
 Camarões, Cabo Verde, Chade, Comores, Congo, Costa do Marfim,
              Djibouti, Egipto, Gabão,
 Gâmbia, Ghana, Guiné, Guiné-Bissau, Guiné Equatorial, Lesoto,
              Libéria, Líbia, Madagáscar, Malawi,
 Mali, Mauritânia, Maurícias, Moçambique, Namíbia, Niger,
              Nigéria, Quénia, República Centro
 Africana, República Democrática do Congo, República 
                                Árabe Sarawi, Ruanda, São Tomé e Prín-
 cipe, Senegal, Serra Leoa, Seychelles, Somália, Sudão,
              Suazilândia, Tanzânia, Togo, Tunísia, Uganda,
 Zâmbia, Zimbawe.
 O Reino de Marrocos retirou-se da OUA em 1984, após o
              reconhecimento da República Árabe
 Sarawi.
 4
 Pellonpää, Matti  "Economic, Social and Cultural
              Rights" in
 The European System for the
 Protection of Human Rights
 , R. St. J. Macdonald, (eds.), Dordrecht, 1993, págs. 855-874.
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 "ruptura"
 5
 com a concepção ocidental dos direitos do homem, que considera
              à
 luz da doutrina positivista, a dialéctica direito-dever
              essencialmente baseada no
 direito como um conjunto de prerrogativas, que originam por
              reciprocidade um
 feixe de deveres ou obrigações. A "autonomização"
              dos deveres altera a natu-
 reza deste conceito, embora não seja possível afirmar que a
              Carta estabelece
 uma relação hierárquica entre direitos e deveres, nem
              tão-pouco uma prece-
 dência dos direitos sobre os deveres. Determina apenas  com
              alguma impre-
 cisão  o conteúdo dos deveres, bem como os seus
              beneficiários. Com efeito,
 a Carta impõe várias obrigações ao indivíduo em 
                                relação à comunidade, as
 quais não decorrem de um "direito subjectivo", no
              sentido kelseniano, pois
 constituem verdadeiras obrigações autónomas, sem paralelo em
              outros instru-
 mentos de direito internacional de direitos do homem.
 Para além das inovações trazidas pela Carta Africana, importa
              ainda
 assinalar algumas lacunas de natureza técnico-jurídica, do seu
              articulado.
 Assim, a definição imprecisa dos direitos e a sua enunciação
              de forma ambígua
 e insuficiente, bem como a ausência de limitações específicas,
              ou melhor, a
 formulação de limitações que protegem o Estado, em detrimento
              do indivíduo,
 reduzem o conteúdo dos direitos, por vezes abaixo do nível
              mínimo exigido pelo
 direito internacional dos direitos do homem
 6
 . É certo, que no artigo 27.º, n.º 2,
 surge, incluída no capítulo dos deveres, o que se poderá
              designar de "cláusula
 geral de limitação"
 7
 , aplicável genericamente a todos os direitos. Assim, os
 direitos e liberdades exercem-se no "respeito dos direitos de
              outrem, da segu-
 rança colectiva, da moral e do interesse comum". Para além
              de uma objecção
 de natureza sistemática  a sua inclusão no capítulo dos
              deveres  a imprecisão
 dos conceitos, deixa ao Estado uma larguíssima margem de
              apreciação, dado
 que será sempre possível encontrar um fim legítimo para
              justificar uma
 ingerência nos direitos e liberdades dos indivíduos. 
                                Caberá naturalmente à
 Comissão delimitar com rigor a aplicação desta norma, de forma
              a evitar inter-
 pretações distorcidas daquele preceito.
 Ao contrário das Convenções europeia e americana, a Carta de
              Banjul
 omite uma cláusula derrogatória de certos direitos em
              situações de excepção,
 facto que pode levantar problemas de ordem prática, mas pode
              também ser
 5
 Matringe, Jean 
 Tradition et Modernité dans la Charte Africaine des Droits de l'Homme
              et des
 Peuples,
 Bruxelas, 1996, pág. 43.
 6
 Idem,
 pág. 40.
 7
 Kastanas, Elias 
 Unité et diversité: notions autonomes et marge d'appréciation
              des Etats dans la
 jurisprudence de la Cour européenne des droits de l'homme,
 Bruxelas, 1996, pág. 70 e seguinte.
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 interpretado no sentido de um reforço de protecção dos
              direitos, que serão
 todos inderrogáveis, mesmo em casos excepcionais
 8
 .
 A ausência de uma cláusula de reservas constituiu também uma
              deficiên-
 cia técnica da Carta Africana. Assim, ao aceitar implicitamente o
              regime das
 reservas previsto na Convenção de Viena sobre o Direito dos
              Tratados, ou seja
 ao deixar ao critério dos Estados, através de objecções às
              reservas, a aprecia-
 ção da sua compatibilidade com o objecto e o fim 
                                da Carta, os seus autores
 optaram implicitamente por uma solução que nos parece pouco
              compatível com
 a efectiva protecção dos direitos nela enunciados
 9
 . Na realidade, apenas a
 Zâmbia e o Egipto formularam reservas, sendo a primeira relativa
              à liber-
 dade de circulação, restringindo-a a locais públicos. As
              reservas egípcias
 referem-se à liberdade religiosa e aos direitos das mulheres, as
              quais estarão
 sujeitas à lei islâmica, o que levanta sérias dúvidas de
              compatibilidade com
 o próprio direito internacional.
 A questão da garantia dos direitos e deveres enunciados na Carta
              afigu-
 ra-se talvez o problema juridicamente mais complexo. Com efeito,
              institui-se
 um órgão de tutela  a Comissão Africana dos Direitos do Homem
               para
 "promover os direitos do homem e assegurar a sua protecção
              em África",
 como refere o artigo 30.º da Carta. A delimitação da
              competência da Comissão
 inscrita no artigo 45.º permite-lhe organizar actividades
              destinadas a promover
 os direitos do homem, bem como emitir pareceres ou recomendações
              aos
 governos; tem ainda competência para interpretar todas as
              disposições da
 Carta, e executar as tarefas solicitadas pela Conferência dos
              Chefes de Estado
 e de Governo da OUA. O artigo 47.º prevê a apreciação das
              "comunicações"
 apresentadas por um Estado parte contra outro Estado parte, à
              semelhança do
 disposto no artigo 24.º da Convenção europeia. 
                                As "outras comunicações"
 podem ser apresentadas por outras entidades que não os Estados
              partes, de
 acordo com o artigo 55.º e seguintes. Esta indefinição da
              competência
 rationae
 personae
 relativa ao requerente, não torna clara a aceitação de
              petições indi-
 viduais, remetendo-se para a Comissão a decisão sobre o
              preenchimento dessa
 lacuna
 10
 que alguns autores consideram não estar prevista no seu
              articulado
 11
 .
 8
 Gerin, Guido  "Présentation" in
 La Charte Africaine des Droits de l'Homme et des Peuples 
 Actes du Colloque de Trieste, 30-31 de Outubro de 1987,
 1990, págs. 12 e 13.
 9
 Morais Pires, Maria José 
 As reservas à Convenção Europeia dos Direitos do Homem
 , Coimbra,
 1997, págs. 103 e 104.
 10
 Mbaye, Kéba  "Les droits protégés et les procédures
              prévues par la Charte africaine des droits de
 l'homme et des peuples" in
 La Charte Africaine des Droits de l'Homme et des Peuples  Actes
              du
 Colloque de Triestre, 30-31 de Outubro de 1987,
 1990, pág. 53.
 11
 Miranda, Jorge 
 Manual de Direito Constitucional
 , tomo IV, 1.ª ed., Coimbra, 1988, pág. 217.
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 Outros interpretam a Carta no sentido da admissibilidade das
              comunicações
 apresentadas por indivíduos, grupos de pessoas ou organizações
 12
 , conforta-
 dos aliás pelo entendimento da própria Comissão africana, até
              ao final de
 1996, apreciou 72 comunicações individuais, das quais 50 foram
              declaradas
 inadmissíveis e 12 admissíveis
 13
 . As "outras comunicações" estão no entanto
 sujeitas à conjugação de sete condições descritas no artigo
              56.º da Carta, entre
 as quais figura o clássico princípio da exaustão dos meios
              internos, como
 princípio geral de direito internacional
 14
 . As outras condições para apresenta-
 ção de comunicações revelam-se, em parte semelhantes a outros
              instrumentos
 de direito internacional, salvo no que toca à condição de
              "compatibilidade" com
 a Carta da OUA, que poderá restringir drasticamente a
              admissibilidade
 das petições.
 A actividade da Comissão, para além da escolha dos seus membros,
              está
 sujeita à fiscalização da Conferência de Chefes de Estado e de
              Governo da
 OUA, que deverá apreciar as recomendações que a Comissão
              entende dirigir
 aos Estados e ainda autorizar os estudos sobre graves violações
              de direitos do
 homem. A Comissão pode ainda mandatar "relatores
              especiais" para estudar
 temas concretos, como foi o caso das condições 
                                nas prisões em África e 
                                dos
 direitos das mulheres. Assim, o órgão supremo da OUA, de
              natureza
 intergovernamental detém um papel fundamental no mecanismo de
              protecção
 da Carta Africana. No entanto, como os seus próprios autores
              reconheceram,
 entre os quais o juiz Mbaye, as dificuldades dos Estados africanos
              apenas per-
 mitiram aceitar o actual conteúdo da Carta
 15
 , estando naturalmente em aberto
 a possibilidade de se alterar o seu mecanismo de controlo.
 Nesse sentido reuniu-se em 1995, um grupo de peritos
              governamentais,
 mandatados pela Cimeira da OUA, que preparou um Projecto de
              Protocolo
 que cria um Tribunal Africano de Direitos do Homem e dos Povos,
              com vista
 a tornar vinculativas as "recomendações" da Comissão.
              O Protocolo foi apro-
 vado e aberto à assinatura em Junho de 1998 e assinado por alguns
              Estados
 membros da OUA, tendo sido já ratificado pelo Burkina Faso e o
              Senegal
 (Dezembro de 1999).
 12
 Gerin,
 op. cit.,
 pág. 14.
 13
 Viljoen, Frans  "Review of African Commission on Human
              Rights and Peoples' Rights: 21
 October 1986 to 1 January 1997" in Christof Heyns (ed.)
 Human Rights in Africa 1997
 , Hais,
 1998.
 14
 Para o estudo do fundamento jurídico deste princípio, vide em
              língua portuguesa: Quadros, Fausto
  "O Princípio da exaustão dos meios internos na
              Convenção Europeia dos Direitos do Homem
              e a ordem jurídica portuguesa" in
 Revista da Ordem dos Advogados,
 ano 50, I, Lisboa, Abril,
 1990, págs. 119-157.
 15
 V. Rapport du rapporteur, Doc. OUA CAB/LEG/67/3, Draft-Rpt (II) 1,
              pág. 4, § 13.
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 340
 1. Os direitos protegidos
 Ao longo do catálogo dos direitos inscritos na Carta Africana
              transparece
 a influência da Declaração Universal dos Direitos do Homem. Sem
              entrar aqui
 no debate da sua obrigatoriedade, cabe notar que a técnica
              jurídica usada, ou
 seja uma enunciação declarativa, sem excessivas preocupações
              de limitações
 e garantias, afigura-se análoga ao texto de 1948. Por outro lado,
              como é conhe-
 cido, o sistema dos Pactos das Nações Unidas, prevê dois
              regimes diferencia-
 dos consoante a natureza dos direitos, designadamente nos meios de
              garantia,
 sendo que o Pacto relativo aos Direitos Económicos, Sociais e
              Culturais apenas
 exige uma execução progressiva das acções necessárias ao
              exercício dos
 direitos e o Pacto dos Direitos Civis e Políticos está submetido
              ao controlo de
 um órgão para-jurisdicional, o Comité dos Direitos do Homem.
 Neste contexto, na Carta de Banjul, a indistinção entre os
              direitos civis
 e políticos de natureza perceptiva e os direitos económicos e
              sociais de natu-
 reza programática
 16
 , tanto no que se refere à sistemática, como no 
                                respeitante
 à sujeição à competência da Comissão, revela-se assim muito
              inovadora. Esta
 identidade de regimes parece implicar que os Estados partes
              pretendem asse-
 gurar de imediato o exercício de todos os direitos previstos na
              Carta e, em
 última análise, sujeitam os Estados à respectiva apreciação
              pela Comissão.
 A concepção individualista dos direitos do homem está
              naturalmente
 presente na letra e no espírito das normas da Carta de Banjul, em
              parte por
 influência da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, apesar
              da tradição
 social africana incluir o indivíduo no grupo, num conjunto de
              relações familiares
 e étnicas
 17
 . Por outro lado, a própria ideia de abstenção do Estado
              inerente
 aos chamados direitos da "primeira geração" está hoje
              completamente ultra-
 passada, tanto pela doutrina como pela jurisprudência. A
              exigência de acções
 do Estado, tanto se verifica nos chamados direitos da
              "primeira" como da
 "segunda geração", o que aliás decorre do espírito
              da Carta Africana. Os seus
 autores quiseram claramente ultrapassar a dialéctica marxista,
              que rejeita os
 direitos da "primeira geração", para impor uma
              relação de interdependência
 e igualdade entre todos os direitos.
 Uma observação que pode desde já ser feita à generalidade dos
              direitos
 refere-se às cláusulas de limitações, as quais 
                                se revelam imprecisa, reme-
 16
 A distinção está longamente estudada na doutrina portuguesa:
              Miranda, Jorge 
 Manual de Direito
 Constitucional
 , tomo IV, 2.ª ed., Coimbra, 1993, pág. 92 e segs.; Gomes
              Canotilho, J. J. 
 Manual
 de Direito Constitucional,
 Coimbra, 1991, págs. 537 e 538.
 17
 Sudre, Frédéric 
 Droit international et européen des droits de l'homme,
 Paris, 1989, pág. 82.
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 tendo em alguns casos os limites dos direitos para a
              "lei", sem que se defina
 o que se entende por lei. Ora, em regimes de partido único,
              afigura-se-nos que
 a lei não tende a proteger os direitos e liberdades dos
              cidadãos, mas sim o poder
 do Estado e das autoridades públicas. A ausência de cláusulas
              limitativas do
 tipo europeu, como sejam as limitações necessárias a uma
              "sociedade demo-
 crática" não se encontram nas disposições da Carta de
              Banjul.
 Cabe ainda referir brevemente, os princípios gerais de igualdade
              e não
 discriminação que se encontram inscritos nos artigos 2.º e 3.º
              da Carta
 Africana, os quais, à semelhança dos Pactos e da Convenção
              Europeia, não
 são disposições autónomas, só podendo ser invocadas em
              conjunto com a apli-
 cação de um direito protegido no texto.
 Apesar do Preâmbulo da Carta os considerar
              "indissociáveis", por razões
 de ordem sistemática, distinguimos os direitos civis e políticos
              dos direitos
 económicos e sociais, de forma a tornar mais clara a análise dos
              direitos.
 1.1. Direitos civis e políticos
 O catálogo dos chamados direitos da "primeira
              geração", inspirado na
 Declaração Universal dos Direitos do Homem e na Convenção
              Europeia, está
 descrito nos artigos 4.º a 14.º da Carta de Banjul.
 Os artigos 4.º e 5.º protegem a integridade e dignidade humanas,
              embora
 sem tomar posição explícita sobre a pena de morte
 18
 , nem definir a noção de
 vida. Refere-se apenas que ninguém pode ser
              "arbitrariamente" privado do
 direito à vida, sem delimitar com rigor o sentido do termo, o
              qual tanto pode
 significar ilegalidade, como oportunidade por oposição a
              necessidade
 19
 . Rela-
 tivamente à integridade física, a Carta parece proibir práticas
              tradicionais afri-
 canas como por exemplo a excisão, pois tanto na letra, como no
              espírito do
 Preâmbulo (§ 5) e articulado (artigo 61.º), prevalece o direito
              individual. No que
 se refere à dignidade humana, a Carta, apesar de proibir a
              tortura e os trata-
 mentos degradantes, bem como a escravatura, prevê no seu artigo
              29.º o dever
 de "servir a sua comunidade nacional" (n.º 2) e de
              "trabalhar na medida das
 suas capacidades" (n.º 6). Esta contradição 
                                revela-se tanto mais grave quanto
 a Carta não proíbe expressamente o chamado trabalho forçado.
 O direito à liberdade e à segurança encontra-se enunciado no
              artigo 6.º de
 modo algo simplista e sem menção às garantias dos detidos,
              facto que em
 18
 Note-se que
 todas
 as Constituições dos Estados Africanos de língua portuguesa
              proíbem expressa-
 mente a pena de morte.
 19
 Matringe,
 op. cit.,
 pág. 35 e seguintes.
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 sistemas penais pouco desenvolvidos, não permite proteger os
              indivíduos de
 detenções sem motivo e indefinidas no tempo. O citado artigo
              refere apenas o
 princípio da legalidade das penas, sem indicação de
              limitações, ao contrário do
 previsto no Pacto dos Direitos Civis e Políticos das Nações
              Unidas. Na mesma
 linha está o artigo 7.º relativo à administração da justiça,
              que consagra o direito
 de acesso aos tribunais, a presunção de inocência, o direito à
              defesa, o direito
 a ser julgado num prazo razoável, bem como o princípio da
              irretroactividade
 da lei penal.
 As liberdades de consciência e de profissão e prática religiosa
              previstas
 no artigo 8.º estão consagradas de forma algo "lacónica"
 20
 , pois a Carta Africana 
                                apenas prevê uma reserva de ordem pública para 
                                eventualmente os Esta-
 dos limitarem estas liberdades. Esta restrição revela-se
              ambígua e de larga
 amplitude para o legislador dos Estados partes, dada a diferença
              das versões
 francesa e inglesa. Esta última refere que as medidas restritivas
              estão
 subject
 to law and order,
 sendo que o texto francês cita a
 ordre public,
 o que
 dificulta a interpretação do preceito
 21
 , sujeitando as restrições a um vago
 princípio da legalidade. Por outro lado, ao contrário do Pacto
              dos Direitos
 Civis e Políticos, a possibilidade de mudar de religião está
              omitida no articu-
 lado, facto que nas circunstâncias específicas do continente
              africano, não se
 afigura muito benéfico ou protector dos direitos dos indivíduos.
 O direito à informação e a liberdade de expressão estão
              contemplados no
 artigo 9.º, de modo sucinto e sem limitações precisas, apenas
              enquadrados pelo
 âmbito das "leis e regulamentos" citados no n.º 2 do
              mesmo artigo. Não se
 referem os elementos constitutivos da liberdade de expressão,
              como sejam a
 liberdade de procurar, difundir e receber livremente informações
              ou ideias,
 escritas, orais ou por imagem, nem tão-pouco se faz referência
              à comunicação
 social, liberdade distinta mas conexa com a liberdade de
              expressão
 22
 . Ora,
 a liberdade de expressão revela-se um dos fundamentos 
                                essenciais de uma
 sociedade democrática, susceptível de favorecer o
              multipartidarismo. No
 entanto, o seu exercício facilmente colide com outros direitos e
              liberdades,
 pelo que se torna necessário prever os seus limites com rigor.
 O artigo 10.º enuncia o direito à liberdade de associação, bem
              como o
 direito de recusar a dela fazer parte, de forma igualmente
              insuficiente, devido
 20
 Matringe,
 op. cit.,
 pág. 32.
 21
 É notória a dificuldade em transpor o conceito de "ordem
              pública" do direito continental,
 v.g
 . português e francês, para o direito anglo-saxónico, no qual
 public order
 respeita apenas à
 segurança pública. Esta última não parece ser o sentido da
              norma da Carta Africana, dado que na
 versão inglesa se refere a lei e a ordem.
 22
 Vide
 na doutrina portuguesa, Miranda, J.,
 op. cit.,
 pág. 399 e seguintes.
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 à falta de definição do conteúdo do direito e à imprecisão
              da cláusula de limita-
 ção. Esta última remete simplesmente para a lei, acrescida da
              remissão para o
 artigo 29.º da própria Carta, que enuncia deveres, entre os
              quais o dever de
 solidariedade social e nacional, sobretudo quando 
                                elas estejam ameaçadas
 (n.º 4). Naturalmente, que estas limitações diminuem fortemente
              o âmbito do
 direito supostamente protegido, pois sugerem mesmo uma relação
              conflituosa
 entre direito e dever, atribuindo ao Estado uma larga margem de
              apreciação
 para restringir o direito em causa.
 A liberdade de reunião surge consagrada no artigo 11.º, mas as
              restrições,
 para além de estarem limitadas pela lei e regulamentos, devem
              ainda respeitar
 a segurança nacional, a segurança dos outros, a saúde, a moral
              e os direitos
 e liberdades das pessoas. Estas limitações draconianas tornam
              difícil deter-
 minar o conteúdo do direito.
 A liberdade de circulação enunciada no artigo 12.º traduz o
              artigo análogo
 do Pacto dos Direitos Civis e Políticos, mas acrescenta-lhe um
              direito até aí
 inédito no direito internacional dos direitos do homem  o
              direito ao asilo 
 que no continente africano assume particular importância,
              atendendo ao número
 de conflitos armados que obrigam as populações a fugir dos seus
              países de
 origem. No entanto, o n.º 3 do citado artigo limita drasticamente
              o âmbito deste
 direito ao remeter para as legislações nacionais a aceitação
              do pedido de asilo,
 bem como ao impor restrições relativas a segurança nacional,
              ordem pública,
 saúde e moral públicas. O n.º 5 do mesmo artigo 12.º proíbe
              ainda a expulsão
 colectiva de estrangeiros, para além de proceder à sua
              definição expressa,
 técnica pouco usada no articulado da Carta.
 Um outro direito inovador surge inscrito no artigo 13.º da Carta,
              o qual
 consagra o direito da livre participação na direcção dos
              negócios públicos, acres-
 cida do direito ao igual acesso aos bens e serviços públicos. A
              doutrina especia-
 lizada considera que este direito traduz apenas uma obrigação de
              abstenção do
 Estado, no sentido de não discriminar os cidadãos utentes dos
              seus bens e
 serviços
 23
 . No contexto africano, tal interpretação afigura-se decerto a
              mais
 adequada, sendo por isso uma variante do princípio da igualdade
              enunciado
 no artigo 3.º
 Finalmente, o direito de propriedade está consagrado no artigo
              14.º, em
 termos semelhantes à Convenção americana e ao Protocolo
              Adicional à
 Convenção Europeia. Atendendo à sua omissão nos Pactos das
              Nações
 Unidas, bem como à realidade africana tradicional, onde a noção
              de proprie-
 23
 Ouguergouz, M. 
 La Charte Africaine des Droits de l'Homme et des Peuples; une
              approche
 juridique entre tradition et modernité
 , Paris, 1993, pág. 122.
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 dade privada era algo diferente da europeia, parece-nos inovadora
              e positiva
 a consagração deste direito, que existe na realidade africana
              actual, herdado da
 época colonial e decorrente das modernas relações 
                                económicas. No entanto,
 alguma ambiguidade na sua definição surge agravada pela
              aceitação de possí-
 veis restrições impostas pela lei, pela "necessidade
              pública" e pelo "interesse
 geral da colectividade", sem referir expressamente a
              propriedade privada.
 Alguns autores consideram-na resultante da conjugação das
              convenções
 europeia e americana com as Resoluções da Assembleia Geral das
              Nações
 Unidas, quando conjugado com o direito ao desenvolvimento e o
              direito dos
 povos a disporem dos seus recursos naturais, designadamente no que
              diz
 respeito à "soberania permanente sobre os recursos
              naturais"
 24
 . Assim, este
 reconhecimento do direito de propriedade ao indivíduo parece-nos
              uma base de
 trabalho, para a Comissão desenvolver na sua actividade futura.
 1.2. Direitos económicos e sociais
 Como acima referimos, a ausência de distinção entre os direitos
              e liber-
 dades por um lado e direitos económicos e sociais por outro,
              revela-se uma das
 mais interessantes inovações da Carta Africana. Assim, os
              escassos direitos
 económicos, sociais e culturais surgem descritos nos artigos
              15.º a 18.º de
 forma sucinta.
 O direito a trabalhar em condições justas e satisfatórias, bem
              como a
 receber salário igual para trabalho igual, citado no artigo 15.º
              está apresentado
 de forma lacónica e imprecisa
 25
 . Não é claro que o indivíduo beneficie de um
 direito a um trabalho garantido e em condições de igualdade,
              higiene e segu-
 rança à semelhança do Pacto dos Direitos Económicos Sociais e
              Culturais das
 Nações Unidas.
 Pelo contrário, o reconhecimento do direito à saúde no artigo
              16.º impõe
 aos Estados medidas necessárias à protecção da saúde das suas
              populações,
 bem como assegurar a assistência médica em caso de doença.
              Trata-se de
 uma inovação muito positiva, cujo âmbito mais
              político-declarativo, do que jurí-
 dico, poderá no entanto ter influência benéfica nas medidas
              legislativas dos
 Estados partes.
 O direito à educação, o direito a participar na vida cultural
              no respeito
 e promoção dos valores tradicionais da comunidade inscritos no
              artigo 17.º não
 24
 Quadros, Fausto de 
 A Protecção da Propriedade Privada pelo Direito Internacional
              Público,
 Coimbra, 1998, pág. 170 e seguintes.
 25
 Matringe,
 op. cit.,
 págs. 30 e 31.
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 impõem directamente obrigações aos Estados, nem permitem aos
              cidadãos exigir
 acções das autoridades públicas para assegurar o seu
              exercício.
 Finalmente, o artigo 18.º visa proteger a família, a mulher, a
              criança,
 os idosos e os deficientes. As garantias visam 
                                não só a "discriminação posi-
 tiva"
 26
 , mas também impõem obrigações ao Estado, apesar dos termos
 genéricos e imprecisos.
 2. Deveres enunciados
 A consagração de deveres do indivíduo revela-se igualmente uma
              impor-
 tante inovação da Carta de Banjul, sobretudo pela forma
              pormenorizada como
 são descritos, ao arrepio da pura ortodoxia da doutrina dos
              direitos do homem,
 que visa proteger os direitos e liberdades do indivíduo face ao
              Estado, sem
 impor deveres. Com efeito, a Carta Africana vai para além da
              concepção indi-
 vidualista dos direitos do homem, que aliás tinha já sido
              ultrapassada através
 dos direitos económicos e sociais. A referência aos deveres
              surge em comple-
 mento dos direitos, mas a sua enumeração apresenta-se em termos
              vagos, que
 não nos parece possam ferir demasiado a protecção dos direitos
              do indivíduo.
 Por outro lado, a sociedade africana tradicional assenta numa base
              comunitária
 e não individualista, na qual o indivíduo tem alguns direitos,
              mas tem sobretudo
 deveres em relação à família e à comunidade. Ao consagrar
              estas duas con-
 cepções e considerando os deveres complementares dos direitos
 27
 , os quais já
 existem implicitamente na dialéctica dos direitos do homem, a
              Carta vem
 inovar o direito internacional dos direitos do homem ao criar
              normas jurídicas
 positivas em matéria de deveres, dirigidas aos 
                                indivíduos.
 Em termos concretos, os deveres visam em primeiro lugar a família
 (artigo 27.º, n.º 1). Trata-se de uma obrigação moral, de
              conteúdo jurídico limi-
 tado, pelas inerentes dificuldades de fiscalização e garantia. O
              dever de
 alimentação e assistência aos ascendentes previsto no artigo
              29.º, n.º 1, existe
 na generalidade das ordens jurídicas. Assim, no que diz respeito
              à família, o
 texto da Carta não se afigura muito inovador.
 No que toca aos deveres com o próximo, ou melhor o respeito dos
              direitos
 de outrem (artigos 27.º, n.º 2, e 28.º), afigura-se segundo
              alguma doutrina,
 26
 Morais Pires, Maria José  "A `Discriminação Positiva' no
              Direito Internacional e Europeu dos
 Direitos do Homem" in
 Boletim de Documentação e Direito Comparado 
 Procuradoria-Geral da
 República, Lisboa, 1995, págs. 23 e 24.
 27
 Oppenheim's 
 International Law
 , 9.ª ed., vol. I, parte 2 a 4, Londres, 1992, pág. 1030.
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 algo "perigoso"
 28
 , pois poderá em teoria conduzir a situações de negação de
 direitos individuais. Para outros autores, a norma do artigo
              27.º, n.º 2, revela-se
 uma cláusula geral de limitação de direitos
 29
 , como já atrás analisámos a pro-
 pósito das limitações, mas que não impõe qualquer 
                                obrigação ao Estado.
 Assim, trata-se de uma disposição que rege relações entre
              indivíduos, embora
 possa ser teoricamente invocada pelo Estado para assegurar a
              protecção dos
 direitos, na linha dos chamados
 drittwirkung
 da doutrina alemã
 30
 , sem no
 entanto prever uma condição de legalidade. O artigo 28.º impõe
              aos indivíduos
 o respeito do próximo, norma que traduz uma obrigação de
              respeito pelos direi-
 tos alheios, prevista normalmente nos direitos internos com maior
              precisão.
 Os deveres do indivíduo em relação à comunidade e ao Estado
              prescritos
 no artigo 29.º revestem-se de carácter algo delicado. Assim, o
              dever de servir
 a sua comunidade poderá em tese permitir situações de trabalho
              forçado,
 sobretudo se se conjugarem os n.
 os
 2 e 6 do artigo 29.º
 Os deveres específicos para com o Estado parecem redundar numa
              obri-
 gação de
 non facere,
 ou seja, os indivíduos devem abster-se de comprometer
 a segurança do Estado e a "unidade africana". Em rigor
              este tipo de deveres
 suscita dúvidas em relação ao exercício de alguns direitos,
              designadamente os
 dos partidos políticos, assim como o dever de solidariedade
              social e nacional
 pode levantar dúvidas em relação à liberdade de associação.
 No entanto, a autonomização do conceito de comunidade revela-se
              muito
 inovadora em matéria de direitos do homem. Este 
                                novo "sujeito" de direito
 internacional não impõe ainda verdadeiras obrigações
              jurídicas aos indivíduos
 mas representa sem dúvida um aspecto importante da Carta
              Africana.
 3. Direitos dos povos e direitos da "terceira geração"
 A expressão "direitos dos povos" levanta desde logo
              problemas conceptuais
 complexos, que reflectem as circunstâncias da descolonização em
              que se
 defendia a autodeterminação dos povos, mas que perduraram na
              ideologia dos
 novos Estados independentes.
 Impõe-se em primeiro lugar notar que o conceito de "direitos
              dos povos"
 não tem o mesmo significado, na filosofia africana, que os
              direitos colectivos na
 28
 Matringe,
 op. cit
 .
 ,
 pág. 59.
 29
 Ouguergouz,
 op. cit.,
 pág. 373.
 30
 Vide: Clapham, Andrew  "The `Drittwirkung' of the
              Convention" in
 The European System for
 the Protection of Human Rights
 , R. St. J. Macdonald, (eds.), Dordrecht, 1993, págs. 163-207.
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 concepção socialista dos direitos do homem
 31
 . Para alguns autores, seguidores
 de Vasak, eles correspondem aos chamados direitos 
                                da"terceira geração"
 32
 ,
 enquanto para outros, trata-se da consagração de uma
              "tradição africana
 ancestral"
 33
 . A questão conceptual ultrapassa naturalmente o âmbito deste
 trabalho
 34
 , mas não podemos deixar de observar a tendência para confundir
 "direitos dos povos" com direitos dos Estados, por
              oposição aos direitos do
 indivíduo. Relacionados com este conceito estão os chamados
              "direitos da
 terceira geração" ou direitos de solidariedade, que se
              afastam também do es-
 quema jurídico clássico do sujeito, objecto, oponibilidade a
              terceiros e garantia.
 Ora, todos estes elementos da relação jurídica aparecem de
              forma muito inde-
 finida, para que se possa falar de direitos em sentido próprio.
 A referência aos "direitos dos povos" surge nos dois
              Pactos das Nações
 Unidas relacionada com a autodeterminação e o desenvolvimento
              económico.
 Na mesma linha, a Carta Africana, adoptada em 1981, proclama um
              conjunto
 de "direitos dos povos" nos artigos 19.º a 24.º A
              interpretação destas disposi-
 ções pode ser feita de várias formas, consoante se tenham ou
              não em conta as
 circunstâncias históricas do final da década de 70, as quais
              eram bem diferen-
 tes das actuais. Com efeito, a subsistência de um regime de
              discriminação
 racial e situações coloniais deram origem a um conjunto de
              normas que visava
 claramente condenar a persistência de tais circunstâncias. 
                                Passados que são
 esses problemas, impõe-se uma interpretação jurídica
              actualista e desprovida
 de carga ideológica.
 Assim, no texto da Carta o princípio da igualdade entre os povos
              surge
 no artigo 19.º de forma declarativa, mas em termos mais fortes
              que a própria
 Carta das Nações Unidas. Os artigos 20.º e 21.º enunciam o
              direito dos povos
 à existência e à autodeterminação e o direito dos povos à
              livre disposição das
 suas riquezas e recursos naturais. Quanto ao primeiro, parece
              claramente en-
 tendido, que o direito à autodeterminação não se aplica às
              minorias nacionais
 ou étnicas, devendo restringir-se aos Estados resultantes das
              fronteiras colo-
 niais, ou seja respeitando o princípio da integridade territorial
              e da intangibilidade
 das fronteiras. O princípio contido no artigo 21.º inspira-se
              nos Pactos das
 Nações Unidas, acrescido do direito à reparação em caso de
              expoliação dos
 31
 Huaraka, Tunguru  "Les fondements des droits de l'homme en
              Afrique", in
 Les Dimensions
 Universelles des Droits de l'Homme
 , dirg. Lapeyre, Vasak, Bruxelas, 1990, pág. 244 e seguintes.
 32
 Östreich, Gabriele  "Le système de la protection des
              droits de l'homme en Afrique et en Europe:
 échange d'expériences et perspectives" in
 Rapport Général,
 pág. 8
 ,
 de
 
 Actas do Colóquio afro--europeu, Estrasburgo, 26 a 31 de Março de 1990, organizado pela
              Fundação Friedrich Naumann.
 33
 Matringe,
 op. cit.,
 pág. 65 e seguintes.
 34
 Vide na doutrina portuguesa: Miranda, Jorge,
 op. cit.,
 pág. 62 e seguintes.
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 bens "do povo". Tal direito tem um sujeito indefinido,
              pelo que nos parece que
 terá apenas natureza programática.
 O direito ao desenvolvimento económico inscrito no artigo 22.º
              suscita
 grande controvérsia doutrinal, quanto à sua natureza individual
              ou colectiva
 35
 .
 O entendimento das Nações Unidas, exposto aliás na Conferência
              de Viena de
 1993 sobre Direitos do Homem, vai no sentido de lhe atribuir uma
              dimensão
 individual. A determinação do seu objecto  o desenvolvimento
              económico,
 social e cultural  parece-nos de uma tal ambiguidade e vastidão
              que se
 torna difícil desenhar o seu contorno, aliás objecto de
              inúmeros documentos
 elaborados em diversas organizações internacionais. Revela-se
              também, salvo
 melhor opinião, uma norma de natureza programática e
              declarativa. Ainda no
 artigo 22.º, refere-se o direito ao património comum da
              humanidade. Trata-se
 de um direito pouco elaborado na doutrina, com excepção do
              domínio do direito
 do mar, no qual tem sido muito debatido, mas ainda 
                                sem conclusões.
 No artigo 23.º, a Carta Africana consagra o direito à paz e à
              segurança,
 como forma de garantir a solidariedade e as relações amigáveis,
              proibindo
 ainda as actividades subversivas dirigidas contra os povos de
              outros Estados,
 facto que poderá permitir ao Estado violar direitos e liberdades
              individuais.
 A Assembleia Geral das Nações Unidas considerou a paz como um
              direito,
 tanto individual como colectivo. Com efeito, trata-se de uma norma
              com grande
 significado no continente africano, no qual as guerras tem sido
              frequentes e
 prolongadas. Os exemplos do Ruanda e do Sudão revelam
              infelizmente a inefi-
 cácia actual desta norma e a dificuldade da comunidade
              internacional resolver
 pacificamente os conflitos.
 O direito a um ambiente "satisfatório e global"
              proclamado no artigo 24.º
 revela-se de modo vago e impreciso. No entanto, a história deste
              direito é ainda
 curta e pouco desenvolvida conceptualmente. Assim, embora redigido
              de modo
 algo lapidar, não nos parece que os cidadãos possam exigir ao
              Estado qualquer
 acção concreta, aliás à semelhança de outros instrumentos
              jurídicos sobre esta
 matéria.
 Conclusão
 A catalogação dos direitos de forma pouco elaborada e imprecisa
              não é
 exclusiva da Carta Africana. O caso vertente resultou do
              compromisso possível
 35
 Kamto, Maurice  "Retour sur le `droit au 
                                développement' au plan international: Droit au
 dévelopement des Etats?" in
 Revue Universelle des Droits de l'Homme,
 vol. 11, n.
 os
 1-3, 1999,
 pág. 1 e seguintes.
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 no momento da sua redacção, mas o seu articulado poderá ser
              desenvolvido
 através do trabalho da Comissão e do futuro Tribunal, aliás à
              semelhança de
 outros instrumentos de direito internacional dos direitos do
              homem.
 Surge no entanto esboçado um mecanismo institucional de
              protecção
 regional dos direitos do homem, cuja eficácia está por enquanto
              em embrião.
 O excessivo respeito pela soberania dos Estados, através da forte
              intervenção
 da Conferência dos Chefes de Estado e de Governo da Organização
              de Unidade
 Africana, diminui a credibilidade do sistema. Por outro lado, a
              Carta de Banjul
 poderá ter um efeito perverso nas legislações internas dos
              Estados partes, pois
 a natural tendência que os legisladores nacionais possam ter para
              se inspirar
 nas normas internacionais, poderá levar a um resultado negativo,
              ou seja,
 uma legislação "minimalista" e pouco protectora das
              garantias dos cidadãos, à
 semelhança das disposições da Carta Africana. Cabe porém
              assinalar que
 a maioria das Constituições africanas inclui já 
                                um considerável catálogo de
 direitos, mais alargado do que o da Carta, pelo que a ordem
              interna de alguns
 Estados encontra-se em certos casos mais habilitada a proteger os
              direitos do
 cidadão que a ordem internacional, o que sucede aliás nos outros
              sistemas
 regionais de protecção.
 Por outro lado, no texto da Carta não existem referências à
              democracia,
 como condição de desenvolvimento dos direitos do homem. Sem
              querer pôr
 no mesmo estado de elaboração as ordens jurídicas europeia e
              africana,
 parece-nos que o esforço de instauração de regimes
              democráticos nos Estados
 do continente africano, será decerto uma forma concreta de
              proteger e desen-
 volver os direitos do homem, que pressupõem naturalmente o
              princípio da
 democracia política nos órgãos do poder. É certo que na
              última década
 tiveram lugar várias eleições democráticas, mas subsistem
              Estados que
 proíbem expressamente na sua lei interna a existência de
              partidos de oposição
 e sindicatos.
 O papel da Comissão Africana de Direitos do Homem poderá ser
              decisivo
 na definição e delimitação dos conceitos, bem como na ajuda à
              elaboração de
 normas legislativas destinadas a proteger os direitos e liberdades
              dos cidadãos,
 embora seja de difícil concretização em relação aos conceitos
              de "comunidade"
 ou "direitos dos povos". A actual prática 
                                de aceitar as petições de requerentes
 individuais revela-se já um avanço em relação às
              disposições da Carta. O in-
 cremento da sua actividade e uma interpretação teleológica da
              Carta, poderão
 levar a uma "jurisprudência" mais adequada à realidade
              africana e que poderá
 influenciar beneficamente a ordem jurídica dos Estados partes,
              que parecem
 até agora mais inspiradas pela Convenção Europeia e pela
              prática dos seus
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 órgãos de controlo
 36
 . No momento presente a Carta deve ser interpretada em
 termos complementares ao direito internacional dos direitos do
              homem, e não
 em sistemática comparação com os modelos europeu e americano,
              como aliás
 defendem alguns dos seus próprios autores
 37
 .
 Finalmente, a existência da Carta e o seu reconhecimento através
              das
 ratificações da larga maioria dos Estados membros da OUA teve o
              mérito de
 tornar os direitos do homem no continente africano uma questão
              internacional
 comum a todas as ordens jurídicas e recusar o entendimento,
              muitas vezes
 defendido no passado, de estarmos perante uma questão do domínio
              reservado
 dos Estados.
 36
 Heyns, Christof  "African Human Rights Law and the European
              Convention", in
 South African
 Journal on Human Rights,
 n.º 11, 1995, págs. 253-263.
 37
 Mbaye,
 op. cit.,
 págs. 40-53.
  
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