
Depoimentos
forjados: confissões falsas
Depoimentos
forjados
Ao
comparecerem perante o Conselho de Justiça, muitos réus
denunciaram como foram induzidos a assinarem depoimentos forjados,
na fase do inquérito policial, como ocorreu com o professor Luiz
Andréa Fávero, de 26 anos, preso em Foz do Iguaçu em 1970:
(...)
que, em dita sala, novamente o interrogando foi submetido a
torturas, já das mesmas participando o Capitão Júlio Mendes e o
Ten. Expedito; que, após as sevícias já referidas, trouxeram um
papel, ou melhor, vários papéis para que o interrogando
assinasse; que, em face dos fatos já descritos, o interrogando se
limitou às assinaturas, desconhecendo, no entanto, o conteúdo
de tais papéis; (..)
Por
vezes, o réu nem sequer tinha o direito de ler os papéis que lhe
apresentavam para assinar, como foi o caso da assistente social
Luiza Gillca Oliveira Rabelo, de 29 anos, que foi ouvida na
Auditoria de Fortaleza, em 1973:
(...)
Que, ao final das entrevistas, o Inspetor Xavier apresentou à
interroganda um documento datilografado para que assinasse; que não
chegou a ler devidamente o conteúdo dos documentos
datilografados, porquanto tal não lhe foi permitido; que,
entretanto, verificou logo à primeira vista que o citado continha
coisas horríveis com respeito não só à pessoa da interroganda,
como a de outras pessoas, ficando essas referências, ao que
tudo indica, em torno da formação de grupos e de atividades
contrárias ao regime; que a interroganda assinou tal documento
para se ver livre daquele vexame que estava passando; (...)
O
jornalista Nelson Luiz de Morais Costa, de 22 anos, contou ao
Conselho de Justiça no Rio, em 1971, como foi forçado a assinar
depoimentos ao encontrar-se praticamente fora de si:
(...)
que os depoimentos que constam nos autos foram feitos sob coação
física e moral, ocasião em que foi obrigado a assinar diversos
papéis brancos e datilografados, sendo que destes desconhecia o
seu teor; que em época nenhuma, ou melhor, por um período de 43
dias, não teve acesso a nenhum advogado, pois se encontrava preso
incomunicável; que, por ocasião de assinar os citados papéis,
se encontrava incapaz, falando palavras desconexas, monologando
sem qualquer discernimento (e) devido a esse estado foi levado
ao Hospital Souza Aguiar, onde foi medicado. (...)
O
pânico e o medo provocado pelas sevícias levaram alguns réus a
assinar os papéis que lhe apresentavam:
(...)
que foi obrigado a assinar as páginas de fís. 62 a 74 face às
declarações de alguns homens da P.E. de que, se não as
assinasse, teria de voltar para o primeiro Quartel em que esteve,
onde sofreu maus-tratos; (...) (Depoimento de João Luiz San Tiago
Dantas Barbosa Quentel, 21 anos, estudante, Rio, 1973)
(...)
que quer acrescentar que, na realidade, não prestou qualquer
declaração, tendo se limitado a assinar depoimentos que lhe
foram apresentados; (...) (Depoimento de João Henrique dos Santos
Coutinho, 25 anos, professor, Salvador, 1972)
O
engenheiro mecânico Ivan Valente, de 31 anos, declarou à justiça
Militar em 1977, no Rio, que as peças processuais apresentadas
como seu depoimento na polícia não passavam de um ditado do
delegado ao escrivão:
(...)
que as declarações prestadas pelo interrogado no DPPS, foram
ditadas pelo Delegado ao Escrivão, apesar dos protestos do
interrogado, ocasião em que recebia novas ameaças de voltar ao
Quartel da Polícia do Exército; que apesar da maneira como foram
tomadas as declarações, o interrogado assinou o termo respectivo
porque dois (motivos) básicos determinaram esse seu gesto: 1) -
receio de voltar a ser torturado; 2) - que aquele tipo de prova
que havia sido (obtida) pela polícia, não teria valor jurídico
nenhum; que, apesar de não ser um técnico no assunto, o
interrogado tinha razão de que as declarações tomadas sob
torturas físicas e morais não tem valor na justiça; que, até o
20º dia, após ter sido torturado, o corpo do interrogado
denotava sinais de choques elétricos nas mãos, nos pés e nos
órgãos genitais; (...) que o interrogado assinou o termo de
declaração que lhe foi apresentado na DPPS, porque ficou com
receio de voltar a ser torturado no Quartel da Polícia do Exército;
(...)
Forte
pressão sofreu também a professora Izabel Marques Tavares, de
30 anos, ouvida pelo Conselho de Justiça em Juiz de Fora, em
1972:
(...)
que antes de assinar o depoimento durante o 1PM, depoimento do
qual não conhecia o teor, passou a interroganda por várias
torturas físicas e psicológicas sendo, inclusive, submetida
nua a choques elétricos no ânus e beliscões nos selos, a
passeios de automóveis com paradas em lugares ermos, onde se ameaçava
a sua vida, com ameaças constantes contra seu marido que, por
duas vezes, pudera ver no Hospital Militar em estado de coma e,
uma vez, sendo torturado numa das salas do DOI; ...)
O
industriário Joaquim Falcão Filho, de 26 anos, ouvido pela Justiça
Militar em Juiz de Fora, em 1972, narrou como fora feito seu inquérito
policial-militar:
(..)
que não leu o seu depoimento prestado no 1º PM antes de assinar,
o qual não foi feito da mesma forma por que se processa o
presente interrogatório, ou seja, com perguntas, respostas e redução
a termo, porquanto o depoimento do interrogado no 1PM foi
trazido pronto, para sua assinatura, pela Autoridade Policial e,
premido pelas circunstâncias, viu-se obrigado a assinar o
referido depoimento, tendo em vista que anteriormente sofrera coação
física, moral e psicológica; ... .)
O
estudante de comunicação Jorge José de Melo, de 25 anos, contou
na 1ª Auditoria da Aeronáutica do Rio, em 1977, como fora
pressionado para assinar declarações que não eram suas:
(...)
que foi levado, então, ao DPPS onde, durante quase 28 horas, foi
ameaçado de ser mandado para o DOI-CODI; que as ameaças eram
feitas para que assinasse um depoimento que já se encontrava
pronto e foi apresentado ao interrogado pelo Delegado BORGES
FORTES; que um dos argumentos usados foi o de que não
adiantaria que o interrogado falasse sobre sevícias e torturas,
porque tinham como conseguir laudos médicos negando tais fatos;
que a cada negativa do acusado em assinar o depoimento ou
confirmar alguma coisa que lhe fosse dita, como sendo de sua
autoria, lhe era falado sobre tudo que poderia passar, caso não
confirmasse; que, durante uma noite, foi colocado a dormir entre
policiais, algemado, tendo esses policiais lhe dito, durante quase
toda a noite que, se não confessasse, iria sofrer bastante; que,
nesta altura, o interrogado já tinha notícias de torturas sofridas
pelos outros presos, além de já ter lido a respeito em noticiário
de jornais; que o Delegado informou ao interrogado que poderia tê-lo
preso até durante 15 dias; que essa prisão seria incomunicável
e que, assim, fatalmente assinaria o depoimento; que, nessas ameaças,
era constante a participação de outros policiais; que diante
de toda essa pressão psicológica e temendo por sua segurança física,
o interrogado assinou o depoimento sob coação; (...)
O
serralheiro Nelson Menezes, de 22 anos, ao depor em São Paulo, em
1975, não teve receio de reconhecer que inventara os termos de
suas declarações na polícia:
(...)
que o interrogando escreveu tudo o que consta de fís. 76 e verso,
inventando para satisfazer a polícia e não apanhar mais; que
cada vez que a policia pedia para relatar um fato novo, o
interrogando inventava uma outra história, ainda para satisfazer
a polícia; (...)
Já
o professor Nestor Pereira da Mota, de 29 anos, declarou na 2º
Auditoria de São Paulo, em 1970, que assinara na polícia o que
lhe entregaram pronto:
(...)
que no dia 2 de dezembro, um mês depois de ter sido preso, o
interrogando foi levado a uma sala onde lhe deram um depoimento
para assinar, dizendo-lhe os policiais que aquilo tinha que ser
confirmado e assinado tal qual estava, sob pena de o interrogando
passar pelas mesmas sevícias que, durante um mês, presenciou
serem aplicadas a diversas outras pessoas, algumas das quais eram
levadas, à cela onde estava o interrogando, em estado tal que não
podiam sequer locomover-se sozinhas; (...)
Confissões
falsas
Devido
às torturas aplicadas aos réus na fase do inquérito policial,
muitos revelaram, à Justiça Militar, a falsidade de seus depoimentos,
feitos com o objetivo de fazer cessar a violência que se abatia
sobre eles.
Ouvido
em São Paulo, em 1972, narrou o jornalista Renato Leone Mohor, de
30 anos:
(...)
que, certa noite, ouviu gritos de mulher e choros de criança
intercalados com música e lhe foi dito que eram a sua esposa e
filha que estavam sendo torturadas; que, assim, o interrogado
pediu que dessem liberdade à esposa e filha e que responderia a
todas as perguntas da forma que eles quisessem, chegando mesmo a
inventar uma porção de coisas que ficou constando de suas
declarações; (...)
No
Recife, em 1972, o mecânico Leonardo Mário Aguiar Bar. reto, de
38 anos, denunciou no auto de interrogatório na Auditoria:
(...)
que o interrogando deseja esclarecer serem falsas as declarações
constantes nas fls. 114 dos autos, as quais somente foram
assinadas pelo interrogando face às pancadas e torturas a que foi
submetido desde sua prisão até 22 de janeiro do corrente ano;
Que essas torturas foram aplicadas ao inter. rogando, a principio,
no DOPS, posteriormente no DOI do IV Exército, ao qual foi o
interrogando (colocado) à disposição; Perguntado se deseja
ser submetido a exame de corpo de Delito, foi respondido
afirmativamente, inclusive porque sofreu o interrogando fratura em
duas costelas, as quais, não obstante já consolidadas, deverão
revelar a calosidade óssea através de radiografia; (...)
Em
carta de 1975, anexada aos autos, o réu e 2º Sargento da Polícia
Militar de São Paulo, João Buonome, descreve como os depoimentos
tomados sob tortura ganhavam, posteriormente, uma aparência de
relatório manuscrito, redigido sem coação:
(...)
Em 14 de julho de 1975, vários policiais, ali detidos, foram
levados a um auditório juntamente comigo e, lá, foram entregues
a cada um de nós pastas contendo as declarações datilografadas
que haviam sido obtidas nos interrogatórios sob pressão e
torturas. Fomos instruídos no sentido de copiá-las de próprio
punho e, depois, assiná-las. Esta era a condição sine qua non”
para terminar aquele período de sofrimento e sermos
reapresentados à Polícia Militar. (...)
O
filho do corretor de imóveis Ildeu Manso Vieira, de 47 anos, foi
obrigado a presenciar as sevícias sofridas por seu pai, conforme
este relatou na Auditoria de Curitiba, em 1975:
(...)
que quer deixar consignado que, diante do que foi submetido,
assinaria sua própria sentença de morte ou ainda, preferindo,
seu fuzilamento; que seu filho sofreu, por ver seus gritos e
sofrimentos, um trauma que perdura até a data de hoje; (...)
Conclusão
Para
o artigo 99 do Código de Processo Penal Militar, o inquérito
policial “é apuração sumária dos fatos” e “tem o caráter
de instrução provisória, cuja finalidade precípua é a de
ministrar elementos necessários à propositura da ação
penal”. Para o artigo 35 b mesmo Código, “o processo
inicia-se com o recebimento da denúncia pelo juiz”. Portanto,
antes da fase judicial não há processo, mera investigação
policial provisória destinada ao Ministério Público e não aos
juizes. Já o artigo 297 estabelece que “o juiz forjará
convicção pela livre apreciação das provas colhidas em juízo”.
É
garantia constitucional que nenhuma prova terá valor se não é
submetida ao crivo da defesa, tendo o réu o direito de examiná-la
e contestá-la, no momento mesmo em que ela é produzida diante os
que irão julgá-lo. Toda “prova” colhida sob tortura não
deveria ter qualquer valor como matéria de convicção judicial
num sistema processual democrático. No Brasil, o Supremo Tribunal
Federal sempre declarou a completa insuficiência e o caráter de
subsidiariedade das provas do inquérito policial. No entanto,
depois de 1964, inquérito policial-militar sempre teve caráter
inquisitorial e se desenvolveu sigilosamente, com o réu incomunicável,
submetido a violências físicas, morais e psicológicas, e ainda
assim seus resultados representaram o alicerce principal das
decisões judiciais.
Um
caso extremo de completo abuso de autoridade ocorreu com Me
Etienne Romeu, de 29 anos, mantida em cárcere privado em Petrópolis,
em 1971:
(...)
Nesta fase, reforçaram a minha alimentação, deram-me roupas
limpas e, inclusive, um par de óculos - de outra pessoa - pois
sou bastante míope e passei quase três meses sem usá-los. Nesta
época fui forçada a assinar papéis em branco e escrever declarações
ditadas por eles sobre a minha situação, desde o momento de
minha prisão. Forçaram-me ainda a assinar um “contrato de
trabalho” em que me comprometia a colaborar com os órgãos de
segurança, em troca de minha liberdade e de dinheiro. Neste
contrato constava uma cláusula segundo a qual, se eu não
cumprisse o combinado, minha irmã, Lúcia Etienne Romeu, seria
presa, pois eu mesma, sua própria irmã, a acusava de estar
ligada a grupos subversivos. Até isso foi feito pelos meus
carcereiros; eu estava arrasada, doente, reduzida a um verme e
obedecia como um autômato. Aproveitando-se disso, fizeram-me
acusar minha irmã que nunca se envolveu em atividades políticas,
como muito bem sabem os próprios órgãos de segurança, que
nunca a molestaram.
Obrigaram-me
também a gravar um “tape” em que me de claro agente
remunerada do Governo e me filmaram contando notas de dez
cruzeiros, quando li o meu “contrato de trabalho”.
Declarei
nesse “tape” que fui muito bem tratada por meus carcereiros.
Filmaram-me de calça e sutiã para mostrar que as marcas de meu
corpo eram consequência do atropelamento. Não me recordo de tudo
que disse, mas afirmo que era tudo falso e mentiroso. As respostas
que me obrigaram a dar e as afirmações e gestos que me obrigaram
a fazer foram previa. mente ensaiados.
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