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Textos de Rubens Pinto Lyra

A Esfera Pública da Cidadania

por Rubens Pinto Lyra

Publicado na revista: Política e Trabalho 12 - Setembro / 1996 - pp. 40-52

A ESFERA PÚBLICA DA CIDADANIA: O CASO DO CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS DA PARAÍBA

 

Vamos tratar, em minha exposição, da esfera pública da cidadania, que não é senão uma das formas de institucionalização da democracia participativa. Iremos analisar, especificamente, os Conselhos Estaduais de Cidadania e, em particular, o Conselho Estadual de Defesa dos Direitos do Homem e do Cidadão (CEDDHC) da Paraíba.

Seria interessante e indispensável, antes de entrar diretamente na abordagem deste tema, discutir alguns conceitos. Claro que apenas de forma introdutória e genérica, para podermos situar questões como democracia, democracia direta, participativa, representativa e esfera pública de cidadania, entre outros.

Em primeiro lugar, o conceito de democracia. A democracia é o regime em que o povo governa. Esse regime democrático em que o povo governa tem, portanto, como característica primeira e inarredável a de ter o povo como a fonte de todo o poder. Porém isso não é suficiente: é preciso que ele o exerça, direta ou indiretamente. Sabemos que a democracia direta, na sua plenitude, como forma determinante ou dominante de processo de governo não existe mais nas grandes nações modernas, nas grandes democracias modernas. A democracia direta se exercitou, basicamente, na Antigüidade. O exemplo clássico é o da Grécia, onde o povo, reunido na Ágora, praça a em que se exercia a cidadania, governava diretamente os assuntos da Pólis, da Cidade-Estado. Quero lembrar que a palavra "povo" deve ser entendida em seu sentido estrito, visto que o "povo" era apenas uma pequena minoria de cidadãos livres: a maioria (escravos, mulheres e estrangeiros) não votava. Mas essa pequena minoria [fim da página 40] votava e também governava diretamente. Os funcionários do governo apenas executavam decisões tomadas coletivamente. Bom, o fato é que estamos num regime de democracia representativa e este regime, como qualquer regime democrático, exige que a fonte do poder seja o povo. Exige, também, que determinados princípios e valores que se consubstanciam nas regras fundamentais do constitucionalismo moderno sejam respeitados. São os chamados Direitos do Homem e do Cidadão: direito à integridade física e psíquica, direito à dignidade, à vida, à liberdade de locomoção, à liberdade de imprensa, aos direitos civis, aos direitos políticos, portanto, ao direito de voto, etc. Então, o exercício desses direitos integra o regime democrático. Todavia, não basta que a fonte do poder seja o povo. Tanto assim que tivemos, há algum tempo, no Iraque, um referendo para confirmar a permanência de um ditador, Sadan Hussein, no poder. Mas esse referendo é uma farsa, pois é preciso que se exercite a liberdade de expressão e o contraditório para que o povo possa formar o seu juízo. A democracia exige o respeito a regras previamente estabelecidas, dentre as quais a principal é o sufrágio universal. A regra do sufrágio universal define a legitimidade do poder, desde que a escolha se faça com base em uma situação de exercício de liberdades, onde exista o mínimo de oposição entre idéias, grupos e partidos. Nós temos, então, a democracia representativa como o sistema democrático dominantae. Nela não se governa diretamente, mas o povo governa pelos seus representantes, que são os deputados, governadores e todos aqueles que são eleitos por ele.

Um regime democrático-representativo pode resgatar elementos da democracia direta e a chamada "Constituição Cidadã" exatamente o fez, em 1988, incorporando aos seus princípios e às suas normas a possibilidade do exercício dessa democracia direta. Tanto no processo legislativo, portanto no exercício do Poder Legislativo, quanto no exercício do Poder Judiciário e, sobretudo, no exercício do Poder Executivo. No Poder Legislativo, a democracia direta se manifesta através do plebiscito e do referendo: quem decide se a lei vai ter vigência ou não é o povo - tivemos recentemente o caso do Presidencialismo e do Parlamentarismo - e nesse momento o pronunciamento do povo é decisivo. Então, o povo participa do processo legislativo, através de um plebiscito, por exemplo, onde ele se manifesta a favor ou contra alguma proposta que venha do Executivo. Ele pode participar também do processo legislativo através das iniciativas populares e elas abundaram no processo constituinte. Quer dizer, o povo pode apresentar um projeto de lei e esse projeto será proposto para discussão, desde que tenha um certo número de assinaturas, [fim da página 41] independentemente da aprovação dos deputados. São inovações importantes que ampliam o espectro da chamada democracia participativa. Há também no Judiciário elementos da democracia direta. No Tribunal do Júri, por exemplo, é o povo diretamente que julga - inclusive este dispositivo já estava em nossa Constituição antes da "Constituição Cidadã" ser editada, já é uma tradição nossa.

Assim, com a vigência da Constituição de 1988, criaram-se inovaações que incidiram no Poder Executivo. Destacamos o surgimento de uma esfera pública de cidadania que se materializa em diferentes órgãos, como, por exemplo, os Conselhos de Cidadania, onde a sociedade organizada participa diretamente da gestão pública. Normalmente a gestão pública é exercida pelo governo, que é eleito. Portanto, o povo exerce o poder através dos seus representantes. No caso da democracia participativa, o povo participa diretamente, sem passar pela escolha de representantes, através das entidades da sociedade civil que integram esses Conselhos e esta participação no exercício do poder pode se dar em dois níveis: 1) Na fiscalização do Poder Público. Essa é uma característica essencial do Conselho Estadual dos Direitos do Homem e do Cidadão (CEDDHC) da Paraíba, que é um Conselho de caráter propositivo e consultivo. Mas existem outros Conselhos, onde a sociedade organizada ingressa no Estado para fiscalizar, tendo inclusive poderes para participar da formulação das políticas públicas e para editar normas de ação para o Poder Público na área que atua: é o caso, por exemplo, do Conselho Estadual de Habitação, de Saúde e, até certo ponto, do Conselho Estadual da Criança e do Adolescente. 2) Na gestão de entidades públicas. Temos o exemplo da Universidade, onde existem entidades da sociedade que participam do Conselho Universitário, que é instância máxima da instituição. Mas é preciso que as grandes empresas estatais, como a Petrobrás e a Vale do Rio Doce sejam também públicas, controladas pelo público, dotadas de controle social e isso ocorrerá se essas entidades incorporarem nos seus conselhos de administração representantes dos trabalhadores, representantes dos usuários, representantes de entidades que congregam juristas, ecologistas, militantes de direitos humanos, etc. Então, aí se manifesta também a esafera pública da cidadania, na medida em que os cidadãos, através das suas entidades, diretamente, podem participar da administração da res publica, seja ela integrante do poder executivo ou empresa estatal. Agora, há também uma esfera pública que não é estatal. Existem diversas entidades que são dotadas de um certo grau de universalidade nos seus objetivos, como os Centros de Defesa dos Direitos Humanos, que visam a objetivos públicos, de interesse público, como a promoção [fim da página 42] da cidadania, o respeito à lei e a garantia da participação do cidadão na coisa pública. Há entidades ecológicas, que, a exemplo da Associação Paraibana dos Amigos da Natureza (APAN), são de direito privado, mas que têm por finalidade garantir interesses coletivos e difusos (no caso da APAN, o equilíbrio ecológico).

Eu gostaria de falar agora dos Conselhos que materializam a democracia participativa. Mas, antes de entrar na questão específica nossa, eu queria fazer uma observação que considero essencial: nós precisamos ter uma visão crítica da democracia representativa em que vivemos. Eu entendo que a democracia representativa baseada no sufrágio universal é efetivamente o único conduto que temos para possibilitar um aprimoramento constante do regime democrático. É preciso que tenhamos consciência das limitações da democracia representativa, não para destruí-la, mas para aprimorá-la - e elas são imensas. O que eu quero dizer é que não adianta participar da gestão pública, fiscalizar o Estado se este sempre for ocupado pelas classes dominantes, pelas oligarquias, por setores conservadores. Se não se fizer reformas no sistema eleitoral, se não se fizer reformas políticas, se não se fizer reformas que assegurem a plenitude da soberania popular, esta continuará deficiente e distante do que preciasa ser, deixando o povo confinado na periferia do poder. A soberania popular existe quando há uma possibilidade efetiva da livre formação da vontade política, notadamente quando o povo é convocado para votar. Isso se dá quando, através do contraditório, de um debate, a maioria do povo possa ter acesso a diferentes posições e, a partir daí, tem condições de comparar as posições expostas e, assim, formar um juízo sobre qual é o melhor partido, o melhor programa, o melhor candidato. Atualmente, nós sabemos que isso não existe, ou existe muito precariamente, pois para que o contraditório e a liberdade de expressão sejam respeitados, temos que lutar pela reforma da lei que rege a concessão dos meios de comunicação, temos que lutar pela democratização desses meios. Enquanto uma grande rede de televisão, como a Globo, continuar sem ter contas a prestar à nação, a não organizar uma programação educativa, como manda a Constituição, a não organizar uma programação que seja democrática, como manda os princípios do nosso sistema, esses princípios não serão respeitados. Na época das eleições não há a possibilidade de uma palavra ou de um pensamento dissonante, o que ocorre são vergonhosas manipulações. Temos, portanto, que democratizar os meios de comunicação, garantindo que eles não fiquem nas mãos de um só. Nós temos que reformar a lei eleitoral. Em artigo de sua autoria, Luis Fernando Furquim, coordenador financeiro da campanha presidencial de Fernando Henrique Cardoso, [fim da página 43] mostra que a lei eleitoral em vigor, decididamente favorece o poder econômico, pois isenta da prestação de contas a grande maioria dos candidatos que se situa em municípios onde a lei, pela sua dimensão, entende que deve dispensar essa prestação. Permite-se, assim, que as empresas contribuam com um percentual de faturamento de milhões dea dólares para campanha, falseando, portanto, completamente, o mínimo de igualdade que deva existir. Não haverá condições decentes para um regime democrático enquanto não houver uma mobilização para se garantir uma reforma do sistema eleitoral, pois é preciso que o povo tenha a liberdade de escolher e aí temos que lutar contra a manipulação do poder econômico e ideológico. Entretanto, é preciso também que os escolhidos tenham representatividade e nós vivemos num sistema onde a representatividade no Congresso Nacional é precária pela própria natureza das regras do jogo do processo eleitoral. Vocês devem saber que Estados escassamente povoados, que não têm sequer um milhão de habitantes, já têm garantidos, na Câmara dos Deputados, oito representantes, no mínimo. Enquanto Estados altamente populosos, como São Paulo, têm um teto na sua representação, que de setenta passou para oitenta. Isso é um artifício que faz com que os setores mais modernos, organizados e dinâmicos da sociedade brasileira fiquem sub-representados: o voto de um paulista vale muito menos que o voto de um acreano. Embora se fale no princípio da proporcionalidade, este é logo destruído pelo "jeitinho brasileiro" quando se coloca um teto de representação. A ditadura militar, que exacerbou essa distorção, procurou enfraquecer o peso do voto dos centros mais politizados. Uma última questão que gostaria de abordar, dentro da temática do sistema eleitoral, é a do voto distrital. O sistema do voto distrital permite que o poder econômico seja largamente enfrentado, na medida em que, por hipótese, em João Pessoa, numa eleição para Deputado, teria-se distritos pequenos, sendo, por exemplo, escolhido um Deputado pelos bairros das praias, Bairro dos Estados e do Centro, apenas se fazendo campanha ali. Isso tem um significado econômico, pela considerável diminuição dae despesas e político, pela aproximação do candidato com o eleitor, disto resultando o fortalecimento dos partidos e do seu conteúdo programático. Então, são questões que eu coloco e encerro aqui, ainda acrescentando a necessidade do controle social das empresas estatais e do governo. Com essas reformas nós teríamos condições para aprimorar o nosso sistema democrático. Do contrário ele permanecerá sendo, em larga medida, uma farsa.

Gostaria, então, depois de feitas essas observações, de fazer uma análise de como se dá a participação nos Conselhos de Cidadania. O que [fim da página 44] são esses Conselhos que materializam a democracia participativa? 1) os que têm atribuições de fiscalização, denúncia e acompanhamento da gestão pública: a função consultiva e propositiva, própria dos Conselhos de Direitos Humanos. 2) os que têm funções normativas e de formulação de políticas públicas, como o Conselho de Habitação e o Conselho Estadual de Saúde. No primeiro caso, o dos Conselhos de Cidadania - é normal que tais Conselhos sejam dominados por órgãos independentes do governo, do Poder Executivo, pois para que se faça uma fiscalização do governo que seja digna desse nome é preciso que os fiscais tenham autonomia em relação ao governo, não sejam prepostos dele. Então, é preciso que a maioria das entidades que compõem esses Conselhos seja independente do Poder Executivo, independente do governo. No segundo caso, o caso dos Conselhos de Saúde e de Habitação, o normal é que estes Conselhos sejam constituidos majoritariamente de órgãos e entidades dependentes do governo. Incorporam a sociedade organizada de forma direta na fiscalização, na normatização e até na formulação das políticas públicas, mas numa posição minoritária. Por que? Porque quem foi eleito para governar tem de ter aa prerrogativa de escolher as políticas públicas que vai implementar. Caso contrário, não tinha sentido eleger o governador.

Gostaria de examinar, agora, o caráter dos órgãos públicos que integram os Conselhos: entre estes, há uma distinção fundamental, os que dependem do governo e os que gozam de autonomia perante ele. Na Paraíba, por exemplo, várias autarquias federais (Universidade, OAB, os Conselhos Regionais de Economia e de Medicina) integram o seu Conselho de Direitos Humanos, o CEDDHC. A Universidade Federal da Paraíba é representada nesse Conselho pela sua Comissão de Direitos do Homem e do Cidadão (CDHC). Este órgão, por exemplo, seria independente da administração ou seus membros são nomeados e demissíveis ad nutum pelo Reitor? Abasolutamente não. Os integrantes da CDHC são eleitos pelo Conselho Universitário. Eu, por exemplo, fui eleito por esse Conselho para ser membro da Comissão. Comissão esta que me elegeu para representá-la no CEDDHC, onde fui eleito por unanimidade para presidi-lo. Portanto, a nossa autonomia em relação ao Governo é a mais completa e em diferentes circunstâncias demonstramos isso da forma mais cabal.

Da mesma forma, a OAB e os Conselhos Regionais de Medicina e de Economia são "órgãos governamentais", no sentido de exercerem prerrogativas inerentes ao poder do Estado. Mas o que importa aqui, é que são totalmente independentes do governo estadual. E, mais do que isto: congregam núcleos de maior representatividade da sociedade civil organizada, [fim da página 45] comprometidos com o aprimoramento do regime democrático.

Então, o critério distintivo decisivo não é mais o de entidade governamental ou não-governamental e sim o da independência em relação ao Governo. E o a segundo critério é saber se a direção de um órgão dessa natureza, como o Conselho de Defesa de Direitos Humanos, é eleita ou nomeada. Quando quem preside uma entidade como esta é um Secretário de Estado, então o Conselho está "nas mãos do Governo". Quando a presidência é eleita e tem mandato ela goza de independência.

Eu quero fazer algumas observações sobre o que foi dito a respeito dos Conselhos. Há enormes pressões contrárias à implantação e ao bom funcionamento desses Colegiados. Nossa democracia é precária, seu processo é ainda embrionário, a sociedade pouco afeita à democracia se preocupa de maneira irrisória com essas questões e ainda assim as classes dominantes que detêm o poder do Estado se apavoram com a mínima possibilidade de transparência. Um caso emblemático é o de Sergipe. Estive na Assembléia Legislativa de Sergipe e defendi a criação do Conselho Estadual de Direitos Humanos em sessão plenária daquele órgão. O Deputado Renato Brandão, por duas vezes, tentou criar um Conselho Estadual de Direitos Humanos, sem êxito. Em Brasília, o Governador Cristóvam Buarque se propõe a apresentar o projeto criando o Conselho de Direitos Humanos e o cargo de Ombudsman, inspirado no nosso Conselho e nas sugestões que demos sobre a Ouvidoria Pública, através de contato sistemático com o Governo do Distrito Federal, mas vem encontrando resistências. Finalmente, em Pernambuco, o Governo de Arraes, apesar de ter um Secretário de Justiça historicamente ligado à causa dos Direitos Humanos, vem, surpreendentemente, com argumentos pouco convicentes, resistindo à criação de um Conselho de Direitos Humanos.

Vamos, agora, nos dedicar à análise do tema central da nossa exposição: O Conselho Estadual de Direitos do Homem e do Cidadão (CEDDHC) da Paraíba. a

Quais foram as ações básicas e a contribuição fundamental do Conselho Estadual de Direitos Humanos à construção da cidadania na Paraíba e no país? O que nós buscamos basicamente? Enraizar e disseminar uma mentalidade democrática no Estado da Paraíba, associando a questão da democracia ao respeito dos direitos do homem e do cidadão. Nós fizemos isso de diferentes formas e eu queria dizer que este é um dos objetivos fundamentais de um Conselho como o nosso: buscar o aprimoramento, a disseminação e a consolidação da democracia, sendo os direitos do homem e do cidadão os pilares desse sistema democrático. Procuramos [fim da página 46] atingir este objetivo através, em primeiro lugar, da organização de seminários, cursos, eventos e publicações. Estamos aqui diante de um curso típico, onde discutimos a questão da democracia e da participação e eu acredito que isso possa ter uma repercussão importante, no sentido da compreensão dos mecanismos da democracia e da sua importância para a construção de uma sociedade mais justa. Esses cursos estão sendo realizados nos bairros, inclusive estão sendo interiorizados, pois Campina Grande já dispõe de um Comitê Municipal do CEDDHC. Nos preocupamos, em particular, em organizar palestras e debates para as polícias militar e civil do Estado Realizamos, também, eventos de caráter nacional que deram grande credibilidade ao Conselho, como o I Encontro Nacional de Ouvidorias Públicas. Os Anais desse Encontro estão sendo publicados pelo nosso Conselho, em co-patrocinio com o Governo do Distrito Federal, tendo a apresentação do Governador Cristóvam Buarque. Temos várias publicações com Prefeituras e com entidades que se destacam pela sua preocupação com os Direitos Humanos. Por exemplo, a Prefeitura de Belo Horizonte vai editar conosco um dossiê a respeitao dos órgãos de cidadania. Eu tenho impressão que esse foi um ponto fundamental da nossa atuação.

Um segundo aspecto a destacar na atuação do CEDDHC é o intercâmbio que mantêm com vários órgãos de cidadania do país, com vistas à disseminação das instituições da democracia participativa, como os Conselhos Estaduais e as Ouvidorias Públicas. Não nos contentamos com uma atuação apenas provinciana. Não devemos cultivar a vocação de periferia, e sim buscar influenciar os destinos do país, contribuindo para o desenvolvimento de uma consciência democrática no Brasil e para seu aperfeiçoamento institucional, no sentido de uma participação crescente de cidadania na gestão do Estado. O que depende de uma ação convergente de todas as forças vivas do país, e não apenas das iniciativas provenientes do "Sul Maravilha".

Um terceiro aspecto diz respeito ao trabalho do Conselho no campo da defesa dos direitos do homem. Eu gostaria de explicar a diferença entre os direitos do homem e do cidadão. Isso não é absolutamente rígido, mas a gente pode entender a partir de diferentes enfoques, por exemplo: os direitos do homem tutelam qualquer pessoa humana e em geral estão relacionados com a defesa da integridade física e psíquica do indivíduo. Então, como defensores dos direitos humanos, no sentido estrito do termo, preocupamo-nos em denunciar a tortura, a violência física. A esse respeito, um conhecido pintor paraibano, Flávio Tavares, fez duas ilustrações e nós vamos, então, através de cartazes, onde um tem um [fim da página 47] "pau-de-arara" e o outro uma mulher com expressão de sofrimento, iniciar, a partir da data da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, em dezembro, uma campanha contra a violência e a favor tipificação da tortura comao crime. Esta é uma luta difícil, por causa da relativa indiferença de entidades da sociedade face ao tema, pelo desinteresse e falta de responsabilidade da maioria dos membros do Congresso Nacional, cuja omissão na matéria foi surpreendentemente denunciada pelo Presidente da República, Fernando Henrique Cardoso, nas comemorações do dia 7 de Setembro.

Também por Direitos Humanos, no sentido específico do termo, entende-se a denúncia da violência social, quer dizer, os Direitos Humanos negados por uma estrutura social excludente. Estes direitos se expressam na defesa da reforma agrária, da distribuição de renda, na luta contra o desemprego, etc.

O quarto ponto de atuação do CEDDHC, que nos parece decisivo, foi o da luta pela construção de uma mentalidade cidadã e de uma ética republicana e democrática, baseada no respeito, à igualdade efetiva de todos perante a lei, na moralidade pública e na práxis democrática e participativa. Assim, sabemos, que o princípio da igualdade jurídica foi proclamado desde a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão na Revolução Francesa, em 1976, entretanto ele continua sendo sistemática e violentamente desrespeitado com o silêncio cúmplice da sociedade civil, inclusive da melhor sociedade civil organizada - e o Conselho atuou nesta questão de forma contundente. No episódio do Gulliver, que envolveu o então Governador Ronaldo da Cunha Lima e o ex-governador Tarcísio de Miranda Burity, o Conselho foi o único órgão da Paraíba que, de forma destacada, sistemática e abrangente se posicionou denunciando o fato e mostrando que o então Governador não tinha condições de permanecer exercendo o cargo, exigindo o seu afastamento do Governo do Estado como uma condição de respeito à ética política, pois o chefe do Poder Execuativo se escudou no manto da imunidade para assegurar a impunidade. Nós dissemos naquela ocasião em, Nota Oficial, que, com as mãos sujas de sangue, o Governador do Estado não teria autoridade moral para exigir o respeito à lei. Como é que o Estado ia se comportar, qual autoridade teria para exigir do cidadão pobre, que é o que lota as penitenciárias, que ele fosse purgar por crimes muitas vezes de menor monta enquanto o Governador, escudado na imunidade do seu cargo, permanecia impune? Naturalmente nosso posicionamento foi feito dentro do espírito do mais completo distanciamento partidário, pois se trata de um princípio e de uma verdade, que é a verdade da democracia e que tem que prevalecer [fim da página 48] contra as verdades que pretendem ser as únicas possíveis na Paraíba, que é a verdade político-partidária. Uma grande conquista do Conselho foi construir uma reputação de credibilidade de tal maneira que hoje eu acredito que ninguém ouse pretender que nós tenhamos um comportamento ditado por partidos políticos, os partidos políticos se encontram há anos-luz da nossa área de atuação. Embora eles sejam fundamentais, não podem interferir em órgãos como o CEDDHC.

Um outro exemplo de atuação deste Conselho na defesa dos direitos do cidadão refere-se aos direitos dos portadores do HIV. Para a minha surpresa, pessoas muito interessantes e esclarecidas sustentavam que era legítimo que eles fossem proibidos de prestar concurso público. Vários órgãos discriminaram estes portadores e nós fizemos debates, escrevemos um artigo no jornal mostrando que era inaceitável esta discriminação, baseados sempre na questão da lei e da defesa de princípios fundamentais da democracia. Também nos preocupamos em defender do patrimônio público e da moralidade administrativa. Um fato que vinha ocorrendoa durante anos é a utilização pelo governante de plantão, seja ele Governador do Estado ou Prefeito, do dinheiro publico para sua auto promoção. Durante anos assistimos toda sorte de abuso nesta área. A Constituição do Estado teve incorporados em 1988, graças a sugestões minhas feitas com a colaboração do Procurador Luciano Maia, dispositivos que consideram crime de responsabilidade esta atitude. A Constituição Federal proíbe tal conduta, cominando, entre outras, pena de cassação de mandato do infrator. Até hoje, o que aconteceu, entretanto, foi a omissão do Ministério Público diante disto. Recentemente nós propusemos ao Procurador Geral de Justiça uma ação civil pública contra o Prefeito de João Pessoa, Chico Franca, e contra a Prefeitura e a Câmara Municipal de Sapé. E vamos continuar atuando onde persistir a prática de fazer notas em jornais ou propaganda de televisão exaltando figuras políticas às custas do nosso dinheiro. Para vocês medirem a extensão da debilidade da nossa democracia e a passividade da sociedade civil, basta observar que durante anos esses crimes vêm sendo praticados com a nossa absoluta e cândida cumplicidade. Não pode haver democracia enquanto nós apenas estejamos preocupados com nosso sindicato, em botar mais dinheiro no bolso, por mais legítima que possa ser esta aspiração. Não pode haver democracia enquanto a Universidade estiver isolada na sua torre de marfim, pretendendo aposentadorias precoces e querendo se eximir de qualquer controle social na sua avaliação; enquanto a Polícia Militar desenvolver um comportamento corporativo; enquanto a OAB não admitir críticas ao seu estatuto; enquanto o Poder Judiciário submeter à execração pública [fim da página 49] quem luta pelo seu controle externo. Nós temos que vencer estes condicionamentos corporativos, caso contrário não teremos a democraacia, teremos uma brincadeira. Nós não podemos construir uma democracia enquanto não tentarmos nos voltar para a formulação de projetos e de uma visão da transformação da sociedade que vise, predominantemente, o interesse público. Isso é possível se tivermos coragem de enfrentar as nossas próprias mazelas.

Eu estou me aproximando do fim e até antecipei algumas considerações, mas ainda queria lembrar um aspecto ao qual damos muita atenção, que foi a questão da luta pela liberdade de imprensa na Paraíba. Luta pela liberdade de imprensa? Sim, a liberdade de imprensa é muito relativa na Paraíba. Por exemplo, na campanha para Governador, dois candidatos se apresentaram. Nós do Conselho propusemos um debate - com cada candidato isoladamente - com perguntas apresentadas previamente, por escrito. Um compareceu e o outro não. Com isso, fui à imprensa denunciar a omissão de um dos dois candidatos, que sequer respondeu à convocação para o debate. Pois bem, eu não consegui espaço de uma reportagem para colocar isso porque nos dois jornais era preciso não só elogiar, mas elogiar muito esse candidato que se omitiu. Caso contrário, nada referente a ele sairia. Quer dizer, em um momento decisivo, e não por coincidência, o poder econômico determina quem quer que vá para o poder e não dá espaço para oposição. Digo isso sem desdouro algum para com o candidato a que estou me referindo. O que está me interessando é constatar os limites da liberdade de imprensa. No momento, por exemplo, de fazer com que divulgássemos a nossa luta contra os Prefeitos e os governantes que estão utilizando o dinheiro público para promoção pessoal, em flagrante violação à lei, nenhum jornal publicou nada. Apenas o Ouvidor Rubens Nóbrega, do Correio da Paraíba, que tem tido um desempenho extremamente consentâneo com o comportamenato democrático e de cidadania, divulgou, na sua coluna, que a ação civil pública que requeremos contra o Prefeito de João Pessoa não havia sido noticiada.

Ainda sobre a questão da imprensa, por ocasião do episódio Gulliver, nós atacamos o jornal A União, mas não o jornal em si, pois achamos que ele, assim como a rádio Tabajara, ambos órgãos do Governo do Estado, podem continuar existindo. Mas é preciso saber se eles existem apenas para promover o governante de plantão ou se eles devem existir como órgãos que possam expressar a pluralidade e a riqueza das opiniões sobre as políticas públicas, sobre a vida política paraibana. Nesse episódio A União teve um comportamento particularmente vergonhoso, mas não só ela, pois existe uma imprensa oficial que é privada, como O [fim da página 50] Correio, que teve esse mesmo comportamento. O que aconteceu foi que A União publicou um dos primeiros editoriais intitulado "o segundo tiro", querendo fazer crer que o Governador Ronaldo Cunha Lima teria disparado o segundo tiro, pois o primeiro teria sido o tiro desfechado contra a honra do então Governador. Trata-se, como se vê, de uma forma de justificar o delito do então governador Ronaldo Cunha Lima. Em seguida, num processo bajulatório dos mais deploráveis, A União incitou ao crime em uma série de reportagens. Nós levamos esta questão ao Procurador Geral de Justiça, pedindo que ele verificasse os indícios de incitação ao crime e eu continuo aguardando até hoje, sem esperança alguma de retorno. Então, tudo isso nos leva a algo que é uma reflexão sobre a democracia.

No que diz respeito à democracia participativa, os obstáculos ao seu funcionamento se devem, em grande parte, aos políticos conservadores da classe dominante que não querem abrir espaaço para a transparência, a participação, mesmo que esse espaço seja mínimo e mesmo que ele não ponha em questão o seu poder. Mas o que eu queria chamar atenção aqui é para o fato de que a responsabilidade maior é nossa. Nós criamos um Conselho que envolve dezessete entidades altamente importantes, das mais representativas da sociedade e a participação de muitas delas no Conselho é nula ou próxima disso. O que há é um apoio passivo às iniciativas do Presidente e da Diretoria. A sociedade civil está pouco se lixando para o que possa acontecer nas questões que dizem respeito à democracia, aos direitos humanos e é isso o que nós temos que enfrentar. A teoria é fundamental, mas a teoria não vale coisa alguma se for para alimentar a famosa - perdoem-me a expressão produzida por um Ministro - "masturbação sociológica". O que nos interessa é fazer da teoria um instrumento da transformação da sociedade e esse instrumento passa pela consciência democrática. Precisamos afastar a perspectiva de vanguardas iluminadas que pretendem encontrar respostas para o nosso povo, pois o risco que a gente pode correr é muito grande. Com efeito, a História ensina que essas vanguardas, mesmo quando muito bem intencionadas, quando assumiram o poder, afastaram-se dos princípios a que originariamente estavam ligadas, esclerosaram o processo produtivo, o crescimento da política social e a socialização da política e fizeram com que o atraso em relação às perspectivas de uma sociedade democrática e socialista se tornasse enorme e incomensurável. O desafio maior que eu vejo é o do corporativismo, que faz com que os melhores quadros, os mais politizados, e, por vezes, os mais generosos algumas vezes estejam envolvidos em reivindicações exclusivamente corporativas. Se você fala com um dirigente [fim da página 51] de um sindicato de funcaionários ele pode se considerar o maior revolucionário do mundo. Mas, na prática, o que ele faz, pelo menos freqüentemente, é restringir toda a sua atuação política a atitudes defensivas e não propositivas, muitas delas contrárias ao interesse social. E isto em nome de um vanguardismo, de um revolucionarismo que não se coadunam com um projeto de modernização e de transformação da sociedade que possa unir o que é imperativo para a esquerda e o que é um imperativo para aqueles que querem transformar a sociedade, que é estabelecer um projeto capaz de modernizá-la e não de fazer com que sempre estejamos a nos defender. Precisamos associar a modernização à democracia, pois essa será a única possibilidade de garantir a construção de uma sociedade mais justa.


Notas:
1) Conferência proferida no âmbito do seminário sobre Cultura Política, Democracia e Cidadania, promovido pelo Conselho Estadual de Direitos do Homem e do Cidadão (CEDDHC) e pela Comissão de Direitos do Homem e do Cidadão da UFPB (outubro/novembro de 1995).

2) Doutor em Direito, na área de Política, pela Universidade de Nancy (França). Professor do Programa de Pós-Graduação em Sociologia e do Mestrado em Ciências Jurídicas da Universidade Federal da Paraíba. Primeiro Vice-Presidente da Associação Brasileira dos Ouvidores (ABO).


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