Amílcar
Cabral Libertador, 1924-1973
Carlos Pinto
Santos
Quando tudo aconteceu...
O
Cenário
A
Acção
Os
Autores do Atentado
Labrac,
Poeta e Contista
Guerra,
Secas e Fome
Anti-Colonialista
em Lisboa
O PAIGC e
o início da Luta Armada
Uma Teia de
Interesses
As várias Mortes
de Amílcar Cabral
Quando tudo
aconteceu...
1924,
12 de Setembro:
Nasce em Bafatá, Guiné
1932: Vai para Cabo Verde
1943: Completa no Mindelo
o curso liceal
1944: Emprega-se na Imprensa Nacional, na Praia
1945:
Com uma bolsa de estudo, ingressa
no I. S. Agronomia, em Lisboa
1950: Termina o curso e trabalha na Estação Agronómica de Santarém
1952: Regressa a Bissau, contratado para os S. Agrícolas
e Florestais da Guiné 1955:
O governador impõe a sua saída da
colónia; vai trabalhar para Angola; liga-se ao MPLA –
1956: Criação em Bissau do PAIGC
1960: O Partido abre uma delegação em Conacri; a China apoia a formação
de quadros do PAIGC
1961: Marrocos abre as portas aos membros do Partido
1963,
23 de Janeiro: Início
da luta armada, ataque ao aquartelamento
de Tite,
no sul da Guiné; em Julho o PAIGC abre a frente norte
1970,
1 de Julho:
O papa Paulo VI concede audiência
a Amílcar Cabral, Agostinho Neto
e Marcelino dos Santos;
22
de Novembro: O governador da Guiné-Bissau decide e Alpoim Calvão chefia a operação
de "comando" "Mar
Verde" destinada a capturar
ou a eliminar os dirigentes do PAIGC
sediados em Conacri:
fracasso!
1973,
20 de Janeiro:
Amílcar Cabral é assassinado em
Conacri.
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O
Cenário:
uma
casa branca, isolada, de um só piso,
um largo terreiro à volta, uma enorme
mangueira em frente da casa, um
telheiro que serve de garagem; em
Conacri,
capital da República da Guiné, de
que é Presidente Séku
Turé.
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O
Tempo:
três
da madrugada do dia 20 de Janeiro
de 1973.
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A
Acção:
Um carro, um Volkswagen, que o condutor arruma
no telheiro. Dois faróis projectam
a luz para os ocupantes do veículo
que são Amílcar Cabral e a sua segunda
mulher, Ana Maria. Uma voz ríspida
vem da noite e ordena que amarrem
Amílcar. Este resiste. Não deixa
que o atem. O comandante do assalto
dispara. Atinge-o no fígado. Amílcar,
sentado no chão, propõe que conversem.
A resposta é uma rajada de metralhadora
que acerta na cabeça do fundador
do PAIGC. A morte é imediata.
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Os
Autores do Atentado:
Inocêncio
Kani, que dispara primeiro, um veterano da guerrilha, ex-comandante
da Marinha do PAIGC; membros do
Partido, todos guineenses.
Noutros
pontos da cidade, onde se alojam
os cerca de meio milhar de combatentes
do PAIGC, grupos pertencentes à
revolta aprisionam os restantes
dirigentes sediados em Conacri: Aristides Pereira, Vasco Cabral, José Araújo, entre
outros. São todos transportados
para uma vedeta
que zarpa para Bissau. Seku
Turé recebe
no palácio presidencial, a 21 de
Janeiro, os cabecilhas
da rebelião. Tudo leva a crer que
apoia
os assassinos de Cabral. Mas, surpresa:
o Presidente da Guiné-Conacri
não dá cobertura. Manda prender
os conspiradores, ordena ao Exército
que detenha todos os elementos do
PAIGC, intercepta, em pleno mar,
o barco que leva os prisioneiros
para Bissau. Uma
comissão internacional, indigitada
por Séku
Turé,
elabora um inquérito sobre os acontecimentos.
A pouco e pouco, os antigos dirigentes
do PAIGC são libertados. O Conselho
Superior de Luta do Partido decide
ir mais longe na investigação.
A
partir daí, uma teia de denúncias,
traições e intrigas
vai acelerar as conclusões.
Cerca de uma centena de membros
do Partido são indiciados, julgados,
fuzilados. Entre eles, está a maioria
dos culpados, mas estão, também,
muitos inocentes. Era inevitável
que assim acontecesse. A morte de
Amílcar Cabral, o chefe quase incontestado,
desencadeia ódios e paixões e, nesse
ambiente, difícil seria que a justiça
fosse completamente isenta. Para
mais, num clima de guerra contra
o colonialismo português que ninguém
quer abrandar.
De
facto, o Exército Português nada lucra com o assassínio. A
guerrilha intensifica a acção.
Em Março de 1973, dispõe dos mísseis
terra-ar "Stella"
que retiram a supremacia aérea às
forças portuguesas. Em Maio, Spínola,
governador da Guiné, avisa o ministro
Silva Cunha: "Aproximamo-nos,
cada vez mais, da contingência do
colapso militar". A 24 de Setembro,
nas matas de Madina
do Boé,
o PAIGC declara, unilateralmente,
a independência da Guiné-Bissau
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Labrac, Poeta e Contista
Juvenal
Cabral, à luz difusa de um candeeiro,
escreve na sua casa em Cabo Verde
um memorando a Vieira Machado, ministro
das Colónias
de Salazar.
Está-se
em Dezembro de 1941 e o ministro
visita a Praia. O documento chegará
às mãos do membro do Governo de
Lisboa. Que, muito provavelmente,
não o leu. Que lhe importa as opiniões
de um obscuro professor primário
cabo-verdiano?
No
entanto, o documento é significativo.
Preocupado com a seca e a fome no
seu arquipélago, Juvenal propõe
ao ministro algumas políticas a
seguir para minorar os males: pesquisa
e captação de águas, arborização
intensiva, protecção
à agricultura, supressão do imposto
sobre as terras, criação de um crédito
agrícola, protecção
ao pequeno funcionário.
Seu
filho, Amílcar, tem 17 anos e frequenta
o liceu no Mindelo. Não se sente ainda com capacidade para auxiliar o
pai na cruzada em favor de Cabo
Verde. Mas já conhece todos os problemas
que afectam a sua terra, porque o pai, desde cedo, o consciencializa.
Todavia,
Amílcar é, nessa altura, Larbac.
Assim assina os poemas de amor que
escreve: Quando
Cupido acerta no alvo, Devaneios,
Arte de Minerva, entre outros.
Os temas denotam influências clássicas.
Os poetas que conhece do liceu são
os inspiradores: Gonçalves Crespo,
Guerra Junqueiro,
Casimiro de Abreu, por exemplo.
O lirismo de Amílcar (Larbac
é anagrama de Cabral) não se evidencia
pela originalidade. Revela, porém,
a sua sensibilidade amorosa. Esse
romantismo passa para a sua prosa
de adolescente, os contos, notas
e comentários onde se vislumbra
já um seguro conhecimento e um desejo
de participação no universo insular
em que vive. Um pouco mais tarde,
em Lisboa, essas preocupações irão
agudizar-se.
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Guerra, Secas e Fome
Ele
nasceu com a política na cabeça.
Era filho de político. Juvenal falava-lhe
de todas as coisas".
São palavras, em 1976, um ano antes
da sua morte, de Dona Iva
Pinhel
Évora, mãe de Amílcar, mulher de
Juvenal Lopes Cabral.
Memórias e Reflexões,
editado pelo autor, em 1947, é um
curioso livro do pai de Amílcar
em que rememora a sua vida, debate
os problemas da época e dos meios
em que viveu, anota factos
e episódios que clarificam a História
e esclarecem as origens sociais do futuro líder do PAIGC.
Juvenal
nasce em Cabo Verde em 1889. Um
dos avós é grande proprietário rural.
Mas a fortuna desaparece depressa,
perante as catástrofes naturais
das ilhas. O outro avô, o paterno,
homem culto, também com algumas
posses, dá ao neto o nome de Juvenal,
em homenagem ao poeta latino. O
rapaz não conhece o pai, morto tragicamente
quando tem dois meses. A criança
é entregue aos cuidados do avô e,
mais tarde, da madrinha, Simoa
Borges, que lhe irá financiar os
estudos. Primeiro, em Portugal,
no Seminário de Viseu.
Estava destinado à vida eclesiástica.
Mas uma grande seca no princípio
do século torna impossível a manutenção
de Juvenal na metrópole. Volta ao
arquipélago. Em 1906, está a frequentar
o seminário de S. Nicolau. Aos dezoito
anos, abandona os estudos e embarca
para a Guiné à procura de emprego.
É funcionário em Bolama,
depois professor sem diploma.
Vive
em Bafatá quando, a 12 de Setembro de 1924, nasce Amílcar Cabral.
Que, na certidão de nascimento,
surge com o nome de Hamílcar,
homenagem prestada pelo pai ao célebre
cartaginês Hamílcar
Barca.
Mas,
em 1932, morre a madrinha Simoa
que lhe deixa algumas propriedades
rurais em Cabo Verde. Juvenal, Iva
e Amílcar regressam às ilhas. É
aí que a família vive o período
difícil da Segunda Guerra Mundial.
Salazar sobe os custos de vida,
as mercadorias rareiam. Em 1940,
uma calamitosa seca provoca a fome.
Morrem mais de 20 mil cabo-verdianos.
E, entre 1942 e 1948, nova crise
vai fazer 30 mil vítimas.
Entretanto,
nas ilhas, há um forte contingente
militar de tropas portuguesas, o
que cria inúmeros conflitos com
a população e acentua o racismo
e o colonialismo. Para além da fome
e da seca não há, praticamente,
serviços de assistência pública.
A emigração para S. Tomé e Angola
e, posteriormente, para a América
despovoa as ilhas.
Nunca
se calou Juvenal. Em 1940, dirige
ao governador um memorando em que,
baseado em dados históricos, prediz
uma grande seca para os anos seguintes
(o que se confirmou). Surgirá, depois,
o documento enviado ao ministro
das Colónias.
(Este terrível período de calamidades
em Cabo Verde é magistralmente descrito
no romance de Manuel Ferreira, Hora
di Bai).
Neste
contexto, Amílcar Cabral passa a
infância e a adolescência. Se o
pai lhe aponta um exemplo de consciência
e actuação,
dentro das limitações legais que
o fascismo de Salazar permite, a
mãe, Iva
Évora, é, para o jovem, o exemplo
da ternura, da protecção
e do trabalho. Presa todo o dia
à máquina de costura, Iva
vai contribuindo para que a família
vença, da melhor maneira, as crises
por que passam. E, mais tarde, sem
largar a costura, empregar-se-á
numa fábrica de conserva de peixe.
A mãe e a sua capacidade de sacrifício
há-de
servir a Amílcar de testemunho de
luta aos jovens combatentes do PAIGC.
Aos
20 anos, Amílcar tem absoluta consciência
das degradantes condições de vida
do povo cabo-verdiano. Imbui-o um idealismo político, a certeza dos
amanhãs que cantam, a inevitável
transformação do mundo, a nova ordem
emergente do caos pós-guerra.
Aluno
brilhante, 17 valores numa escala
de 18, Amílcar conclui o curso liceal.
Vai para a Praia onde se emprega
como aspirante na Imprensa Nacional,
enquanto aguarda a concessão de
uma bolsa para prosseguir os estudos.
Finalmente, em 1945, embarca para
Lisboa.
A
escolha da sua formação universitária,
em que terá, também, havido cumplicidade
do pai, é óbvia: será engenheiro
agrónomo.
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Anti-Colonialista
em Lisboa
Amílcar
Cabral chega a Portugal em 1945.
É o ano da grande esperança para
os democratas portugueses, depressa desfeita quando Salazar garante a condescendência
dos vencedores da Segunda Guerra
Mundial e mantém, inalterável e
apoiado, o regime de ditadura.
A
primeira mulher de Amílcar, Maria
Helena de Athayde
Vilhena Rodrigues, foi sua colega no Instituto de Agronomia.
Narrou assim a Mário de Andrade
o conhecimento do futuro marido,
de quem viria a ter duas filhas,
Iva Maria
e Ana Luísa:
"Conheci
Amílcar no primeiro ano de Agronomia,
em 1945. As aulas tinham começado
em Novembro, ele chegou em Dezembro
(...) Eu não pertencia ao seu grupo,
mas lembro-me perfeitamente de o
ver entre os outros colegas. Como
ele era o único negro, notava-se
bem... Amílcar não fizera o exame
de admissão à Universidade (...)
toda a gente falava dele, elogiava
a sua inteligência e ele, para mais,
era simpático e descontraído. No
que respeita às suas actividades
políticas, lembro-me que os meus
camaradas recolhiam assinaturas
de adesão aos movimentos democráticos.
E Amílcar participava activamente
nesses comités
de estudantes antifascistas. Aquando das assembleias era ele
quem dirigia as discussões porque
se exprimia muito bem (...) No princípio
do terceiro ano, em Outubro de 1948,
pertencemos à mesma turma, a dos
únicos vinte e cinco estudantes
que tinham passado nos exames".
Condiscípulos
e amigos recordam Amílcar como um
indivíduo de dinamismo contagiante,
grande sentido de humor, com enorme
capacidade de criar amizades. Sedutor,
atrai afectos femininos com facilidade.
"Era
o mais bem vestido e aprumado de
todos nós", lembra seu amigo,
o jornalista Carlos Veiga Pereira.
"O
meu irmão conseguia fazer amizades
em todo lado", diz Luís Cabral.
"Foi pela simpatia de Amílcar
— revelou em entrevista ao
"Diário Popular"
o primeiro presidente da República
da Guiné-Bissau — que os soviéticos
nos forneceram os mísseis com que
controlámos
a aviação portuguesa. O magnata
italiano Perelli
era seu amigo e deu-nos as fardas
de oficiais que usávamos. Tudo por
amizade e simpatia".
O
estudo, a militância, os namoros,
ainda lhe deixam tempo para se dedicar
ao seu desporto preferido: o futebol.
E,
segundo as crónicas, caso o tivesse querido poderia ter feito carreira.
De tal maneira dá nas vistas na
equipa de Agronomia que o Benfica
chega a convidá-lo para ingressar
no clube. Mas Amílcar declina a
proposta e mantém-se apenas nos "pelados" universitários.
Durante
os anos de estudo um irresistível
apelo o toma, bem como a outros
estudantes negros: era necessário
o regresso
a África. Não só pela família que ama profundamente,
mas porque "milhões de indivíduos
têm necessidade da minha contribuição
na luta difícil que travam contra
a natureza e os próprios homens
(...) Lá, em África, apesar das
cidades modernas e belas da costa,
há ainda milhares de seres humanos
que vivem nas mais profundas trevas".
Em 1949, escreverá: "Vivo intensamente
a vida e dela extraí experiências
que me deram uma direcção, uma via que devo seguir, sejam quais forem as perdas pessoais que isso me ocasione. Eis a razão de ser
da minha vida".
Esta
vida a que se refere, partilha-a,
em Lisboa, no Instituto de Agronomia,
na Casa dos Estudantes do Império
e nos livros que lhe abrem os horizontes
de compreensão do mundo do seu tempo.
Entre esses livros um será determinante:
a Anthologie de la nouvelle poésie négre et malgache,
organizada por Léopold
Sédar
Senghor.
Este livro traz-lhe a certeza que
"o negro está a despertar em
todo o mundo". Teoriza sobre
o cabo-verdiano — o homem resultante da fusão dos primeiros
habitantes do arquipélago, brancos
e negros. Já então reconhece que
o número de mestiços é seis vezes
superior ao dos brancos e três vezes
ao dos negros — do ponto de vista
psíquico há um "espírito cabo-verdiano",
existe a cabo-verdianidade.
Esta profissão de fé tem de ser
harmonizada com a militância. No
quinto ano do curso, Amílcar volta
ao arquipélago para passar as férias
grandes. A sua especialidade técnica
- a erosão dos solos - e a cultura
geral de que dispõe, quer transmiti-las
e ensiná-las aos cabo-verdianos.
Na Praia, pronuncia, através do
Rádio Clube de Cabo Verde, várias
palestras sobre as características
do solo das ilhas. Apesar das dificuldades,
reconhece que a agricultura é a
base da economia de Cabo Verde.
Para tal, é necessário elucidar,
esclarecer, consciencializar
o homem
da rua. Amílcar coloca o
problema da elite
na sociedade. É preciso criar uma
vanguarda
intelectual que leve ao cabo-verdiano
anónimo toda a informação sobre os seus problemas tradicionais.
Como dirá: "Os quadros devem
esclarecer aqueles que vivem na
ignorância".
Esta
informação deve ultrapassar os limites
de Cabo Verde e tornar-se uma informação
global que se alargue a todo o mundo.
Eis a sua tarefa de militante: consciencializar
os cabo-verdianos.
Mas
as autoridades portuguesas rapidamente
lhe proíbem o acesso à rádio. Como
lhe proíbem que ministre um curso
nocturno
na Escola Central da Praia.
"Dar
a conhecer Cabo Verde aos cabo-verdianos"
corresponde ao que acontece em Angola:
"Partamos à descoberta de Angola"
é a divisa de um grupo de jovens
intelectuais em torno do poeta Viriato
da Cruz.
De
novo em Lisboa, Amílcar firma os
laços que o unem a outros estudantes
originários das colónias portuguesas. Trata-se de
um grupo de jovens, provenientes
da pequena burguesia urbana africana,
todos conscientes da revolta contra
o colonialismo e detentores da vantagem
de possuírem instrução e cultura.
Militam nas organizações da juventude
democrática portuguesa, o MUD Juvenil,
o Movimento para a Paz. Com uma
bandeira que os diversifica dos
europeus: a
reafricanização dos espíritos, diz Amílcar Cabral.
Esta reprocura
da identidade leva à criação, em
casa da família Espírito Santo (de
que é figura proeminente a santomense
Alda Espírito Santo), de um Centro
de Estudos Africanos. Ali se discutem,
apesar das incursões da PIDE, algumas
das questões mais prementes da África
sob a domínio
português. Amílcar tem nesses debates
uma participação decisiva.
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O
PAIGC e o início da Luta Armada
Após
terminar o curso, em 1950, faz estágio
na Estação Agronómica
de Santarém. Pouco depois, falece
Juvenal Cabral. Em 1952, Amílcar
regressa a África, a Bissau, contratado
pelos Serviços Agrícolas e Florestais
da Guiné Portuguesa.
Aos
28 anos desembarca em Bissau um
engenheiro agrónomo
que tem em mira outros fins que
não só os da sua profissão (onde,
aliás, será sempre de grande competência).
O principal desses fins: consciencializar
as massas populares guineenses.
Como escreverá na comunicação aos
quadros, em plena luta de libertação,
em 1969: "Não foi por acaso
que viemos para a Guiné. Nenhuma
necessidade material determinava
o nosso regresso ao país natal.
Tudo foi calculado, passo a passo.
Tínhamos enormes possibilidades
de trabalhar nas outras colónias
portuguesas e mesmo em Portugal.
Abandonámos
um bom lugar de investigador na
Estação Agronómica
para virmos para um lugar de engenheiro
de segunda classe na Guiné (...)
Isto obedeceu a um cálculo, a um
objectivo,
à ideia de fazer qualquer coisa,
de contribuir para o levantamento
do povo, para lutar contra os portugueses.
É isso que temos feito desde o primeiro
dia em que chegámos
à Guiné".
O
"Engenheiro", como lhe chamarão os compatriotas, está na melhor das
posições para levar a cabo a tarefa
de consciencialização.
No posto agrícola
de Pessubé,
que dirige, contacta
com os trabalhadores rurais entre
os quais cabo-verdianos.
É difícil a unidade entre estes
e os guineenses
para a constituição de uma luta
comum. Será difícil até ao fim,
apesar de alguns cabo-verdianos
(Aristides Pereira, Fernando Fortes,
Abílio Duarte, entre outros) se
unirem à sua volta. O trabalho político
segue a par da actividade
profissional. Encarregado da planificação
e execução do recenseamento agrícola
da Guiné, o relatório que elabora
continua a ser hoje o primeiro dado
valorizável para o conhecimento da agricultura guineense.
A
princípio, Amílcar Cabral procura
agir na legalidade. Redige os estatutos
de um Clube desportivo e cultural
ao qual podem aderir todos os guineenses.
As autoridades portuguesas não o
autorizarão a funcionar porque a
maioria dos signatários não possui
bilhete de identidade.
Em
1955, o governador Melo e Alvim obriga Cabral a deixar a Guiné, embora
lhe permita voltar uma vez por ano,
por razões familiares.
1955
é o ano da Conferência de Bandung
que assinala o nascimento do Movimento
dos Não-Alinhados, do final da primeira
guerra de independência do Vietname, da passagem à luta armada da FNL argelina. E Amílcar
Cabral transferido para Angola,
trabalha em Cassequel,
como engenheiro... e tomando contacto
activo
com os fundadores do MPLA, ao qual
se liga, desde início.
Numa
das suas passagens por Bissau, a
19 de Setembro de 1959, Amílcar
Cabral, Aristides Pereira, Luís
Cabral, Júlio de Almeida, Fernando
Fortes e Elisée
Turpin
criam o Partido Africano da Independência/União dos Povos da Guiné e Cabo Verde (PAIGC).
Obviamente, um
partido clandestino, que só deixará
de o ser quatro anos mais tarde,
quando instalar a sua delegação
exterior em Conacri.
Nesse
período, a actividade de Amílcar Cabral é esgotante. Continuando os seus
estudos fitossanitários
e agrológicos,
viaja frequentemente
entre Portugal, Angola e Guiné.
Em
Novembro de 1957 participa em Paris
numa reunião para o desenvolvimento
da luta contra o colonialismo português,
mantém contactos com os anti-colonialistas
em Lisboa, está em Accra
num encontro pan-africano e vai
a caminho de Luanda quando ocorre
o massacre de Pidjiguiti.
Em Janeiro de 1960 vai à II Conferência
dos povos africanos, em Tunis, em
Maio está em Conacri.
Ainda neste ano, em Londres, denuncia
numa conferência internacional,
pela primeira vez, o colonialismo
português. Mas aí, como durante
todos os anos de luta, sublinha
com ênfase não estar contra o povo
português. O seu combate é, em exclusivo,
contra o sistema colonial.
Hoje,
as investigações históricas e os
depoimentos de muitos intervenientes
da época mostram que líder do PAIGC
sempre se disponibilizou para negociações
com o Governo português, nunca aceites
pelo regime da ditadura.
Entre
1960 e 1962, o PAIGC actua
a partir da República da Guiné.
Essa actuação desenvolve-se em três aspectos: formar militantes
e quadros para a difusão do Partido
no interior da Guiné, garantir o
apoio dos países limítrofes (o que
foi tarefa complicada porque a República
da Guiné pretendia a utilização
dos guineenses
de Amílcar Cabral na sua própria
política e porque o Senegal se manifestou
hostil durante seis anos) e, finalmente,
a obtenção do apoio internacional.
É
a República Popular da China quem
dá o primeiro passo, recebendo,
em 1960, Amílcar Cabral e alguns
quadros que ali ficarão preparando
a guerrilha e a formação ideológica.
Em 1961 o Reino de Marrocos concede-lhe
idêntico apoio.
Em
1962, desencadeia-se a luta armada
contra o Estado Português. Tinham
passado 17 anos desde que o filho
de Juvenal Cabral chegara a Lisboa
para frequentar
a Universidade.
^
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Uma
Teia de Interesses
Em
reportagem publicada no Expresso,
a 16 de Janeiro de 1993, José Pedro
Castanheira fornece uma série de
dados sobre a morte de Amílcar Cabral,
que, três anos depois aprofunda
no livro "Quem Mandou Matar
Amílcar Cabral?".
É
possível crer em vários factos.
A política colonial
portuguesa, dividindo para reinar,
criara uma diferenciação entre cabo-verdianos e guineenses. Os
primeiros, mestiços na sua grande
maioria e mais escolarizados, são
os preferidos da administração do
Estado Novo. Desempenham os cargos
menos desqualificados, usufruem
de um tratamento preferencial.
Quando se constitui o PAIGC, os
quadros dirigentes são cabo-verdianos, os combatentes são guineenses.
O próprio Amílcar Cabral, embora
nascido na Guiné, é considerado
cabo-verdiano. As tensões, os conflitos no interior do PAIGC
existiram sempre. Em 1973, a guerra
de libertação nacional encaminha-se
para a vitória. Os dirigentes políticos
continuam a ser cabo-verdianos.
É provável que a proximidade do
êxito extremasse a confrontação
no Partido.
Séku Turé que, desde
1958, fora um líder africano de
grande prestígio está em perda de
influência. Por seu turno, Amílcar
Cabral é uma personalidade que se
evidencia na cena africana e internacional,
reunindo apoios que vão da China
e dos regimes comunistas, aos países
nórdicos. O grande sonho de Turé
de anexar a Guiné-Bissau para criar
a "Grande Guiné" está
em perigo. É bem provável
que tivesses dado sinais de concordância
aos revoltosos - todos guineenses
- para consumarem o crime. Cabral
sairia de cena, o PAIGC desmembrar-se-ia,
passando, na prática, para o controlo
de Turé.
(Em Maio de 1974, Leopold
Senghor,
Presidente do Senegal, não hesita
em afirmar ao coronel Carlos Fabião e ao embaixador Nunes Barata ter sido Séku Turé o instigador do assassínio
de Amílcar Cabral).
Por
fim, a PIDE/DGS. Desde muito, pelo menos desde 1967, a organização
policial portuguesa procurava matar
Cabral. Alguns guerrilheiros prisioneiros
foram manobrados para colaborarem
com a polícia política. Ficou provado
em relação a alguns dos intervenientes
no atentado. Tudo leva a crer que,
em medida desconhecida, a PIDE não
foi alheia a toda a trama.
Testemunhos
da época revelam também que Amílcar
Cabral tinha consciência que poderia
ser traído pelos companheiros de
luta. Afirmara algumas vezes: "se
alguém me há-de fazer mal, é quem está aqui entre nós. Ninguém mais
pode estragar o PAIGC. Só nós próprios".
^
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As várias Mortes
de Amílcar Cabral
Amílcar
Cabral foi sepultado no cemitério
de Conacri.
Desaparece de cena o mais esclarecido
dirigente africano da sua geração,
o principal teórico da luta armada
africana de libertação.
O
homem que sempre viveu em coerência
com os seus ideais, o líder do movimento
guerrilheiro que almejava uma comunidade
fraterna que floresceria — em várias
ocasiões o escreveu e disse — quando
os dois povos levados à guerra se
libertassem do opressor comum, seria
morto mais vezes.
Vítima
de um ajuste de contas que não merecia,
Amílcar Cabral teve a segunda morte
no golpe de Estado de Nino Vieira
de 14 de Novembro de 1980 que arrasou
o seu grande sonho de fazer da Guiné
e de Cabo Verde um único país, ou,
pelo menos, uma união de Estados
capaz de se impor aos desígnios
hegemónicos
dos governos de Dacar e Conacri,
e desmembrou o PAIGC por ele fundado.
Morreu
com a ostentação, a corrupção e
a sanha sanguinária na resolução
dos diferendos políticos onde se deixaram atolar
muitos dos dirigentes guineenses.
Morreu
com a miséria, a doença e a fome
que dizima o seu povo vinte anos
depois da independência admiravelmente
conquistada nas matas de Madina
do Boé.
Morreu
agora outra vez quando velhos camaradas
de armas — os seus antigos camaradas
— se digladiaram numa luta fratricida
infligindo à Guiné-Bissau uma destruição
terrivelmente superior à provocada
por onze anos de guerra colonial
vendendo, provavelmente, a soberania
nacional numa patética tentativa
de conservar a bebedeira do poder.
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Retirado
de:
Vidas
Lusófonas
http://www.vidaslusofonas.pt