Militantes
Brasileiro(a)s dos Direitos Humanos
Perly
Cipriano
Depoimentos
Depoimento
a Marina Kumon – História da
Vida Depoimento
de Perly Cipriano a Marina Kumon, para sua
Tese de Mestrado
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HISTÓRIAS
DE VIDA: HISTÓRIAS DE “AMOR
AO MUNDO”
“O centro da política é
a preocupação com o mundo
e a essência da vocação
política é o amor ao mundo”
(Hannah Arendt).
4.1.
Perly
O sentido da vida foi aquele que nos
levou à prisão. Imagine
eu preso, condenado a noventa e tantos
anos, chegar à conclusão
que nada do que fiz valeu a pena. Se isso
acontecesse eu me acabava, até
fisicamente […]
Nasci em 10 de agosto de 1943, dia de São
Lourenço, santo protetor dos queimados.
Eu já tive o corpo queimado em 30%
e sobrevivi. Acredito que o santo me protegeu.
Nasci em Aimorés, Minas Gerais, com
um ano e meio fui para o Espírito
Santo. Saí de uma região contestada,
fui para uma região do Espírito
Santo, Barra do São Francisco, uma
região também contestada.
De Minas para o Espírito Santo, de
família pobre, rurais, ali cresci
como outra criança qualquer.
Comecei a estudar com oito anos. Meus pais
diziam que era melhor começar um
pouco mais tarde, senão podia cansar
e desistir. Portanto, estudei em escola
pública, Grupo Escolar Gutenberg.
Não
tinha nenhuma vontade de ir para escola,
nem gostava de ficar na escola, não
era um aluno muito esforçado. Sofria
muito, achava que a escola me prendia, porque
eu vivia solto, solto pelo mundo. E nessa
escola, pela primeira vez, apanhei, fiquei
de castigo, bolos e palmatória. Meus
pais nunca me bateram, minha mãe
só me deu três chineladas por
erros meus (…) talvez as únicas
merecidas. Uma vez a professora praticamente
queria me chutar. Eu nunca contava nada
em casa, pois meus pais sempre diziam: “Não
me traga coisas da rua”. A única
coisa que eu tive coragem de contar para
o meu pai foi que a professora quis me chutar.
Ele era um tropeiro, semi-analfabeto, mas
nunca tinha dado-me um cocorote. Ele foi
lá na escola, brigou com a professora,
brigou com todo mundo e falou que se quisesse
que o filho dele aprendesse a dar coice,
ele deixava no pasto, com os burros, com
os cavalos. Foi uma grosseria dele, mas
só hoje entendo que aquela grosseria
era alguma coisa até filosófica.
Ele não queria que o filho dele apanhasse.
Eu estudei no grupo escolar, depois fui
para o Ginásio Independência.
Fiz o curso ginasial, que na época
durava uns quatro anos. A gente fazia os
quatro anos primários e depois ia
para um curso de admissão, por dois
meses, e só depois fazia o chamado
curso ginasial que era de quatro anos. Eu
sou da segunda turma desse colégio.
Como não tinha mais jeito de continuar
os estudos em Aymorés fui para Vitória
estudar.
Já tinha as primeiras noções,
muito distante, ainda, de política.
Meu irmão era um militante comunista.
Passava lá em casa de vez em quando
e eu o escutava falando sobre política.
Meu pai foi do PSD e falava muito que o
Brasil precisava de uma guerra civil para
acabar com os ladrões. Eu não
entendia por que era isso, o que que tinha
uma coisa a ver com a outra. O meu irmão,
às vezes, lá em casa, sentado
jogando cartas com a família, com
as pessoas, com os amigos dele, falava do
socialismo. Para mim, aquelas conversas
não faziam muito sentido. De qualquer
forma, foram as primeiras noções
de política que meus ouvidos captaram.
A primeira manifestação de
consciência política que me
lembro, foi uma participação
em um protesto lá no Ginásio
Independência. Uma área da
escola, que ficava bem ao lado do ginásio,
era pouco iluminada e os jovens, alguns
poucos, mais corajosos, mais aventureiros,
às vezes se encostavam por ali e
eventualmente se beijavam, o que era coisa
rara. Naquele período, até
beijar era uma coisa meio de audácia,
um ato de coragem. Uma pessoa - não
me lembro se era oficial de menor ou juiz
de paz - foi ao diretor reclamar que os
jovens estavam namorando naquele local.
Eu senti indignação. Por conta
disso, o diretor resolveu botar mais lâmpadas
no local. Ficamos indignados com o diretor
e protestamos.
A outra vez que eu senti indignação,
imagino que já era um pequeno princípio
de consciência, foi com relação
a um fato que ocorreu ainda no Ginásio
Independência com o professor Célio
Magalhães, professor de matemática,
muito rígido, e eu tinha uma dificuldade
imensa de aprender matemática. Tinha
não, continuo tendo. Eu chegava a
ter pesadelo quando pensava no Célio,
porque ele era disciplinado, rígido.
Bom professor de matemática, naquela
época, era aquele que fosse mais
durão, que ameaçava reprovar
a metade da classe. Mas ele era, de fato,
um bom professor, eu é que não
era um bom aluno. Ele resolveu ser candidato
a vereador, pela UDN ou PSD, e o dono do
colégio, que era do PTB, o afastou
do colégio. Houve uma certa indignação
entres os alunos, que protestaram. Participei
do protesto, embora tivesse medo do Célio,
porque achava que ele era um professor muito
rígido. Achava que a atitude do diretor
estava errada, mesmo não querendo
o Célio como professor. Era uma contradição
que já vivia naquela época.
Depois, já no final do curso ginasial,
vi passar na minha casa muitas pessoas.
Passavam alguns comunistas e eles dormiam
lá. Eram viagens longas, ninguém
tinha carro próprio. Chegavam de
ônibus e alguns a cavalo. E eles dirigiam-se
para cidade vizinha de Ecoporanga, onde
havia uma grande luta dos posseiros. Inclusive
há livros sobre essa região.
A história dessa região começa
com a vinda de um beato chamado Udelino,
da Bahia. Esse beato lidera um movimento
de criação, em torno de Ecoporanga,
de um novo Estado brasileiro – o Estado
de União de Jeová. Depois
a polícia reprime, massacra muita
gente. Apesar de existir vários livros
sobre a região, esse fato ainda é
pouco conhecido. Acho que isso aconteceu
em Cotaxé, Distrito de Ecoporanga,
região onde viviam esses posseiros
que tiveram confrontos com a polícia
e que resultou na morte de muita gente.
Posteriormente, já em uma outra etapa,
com o avanço da luta, o partido comunista
começou a enviar pessoas para lá.
Muitas pessoas lá viveram e ajudaram
a organizar a resistência. Essas pessoas,
para ir a Ecoporanga, passavam pela minha
casa e eu acabava ouvindo muitas histórias,
alguns falavam sobre a União Soviética,
socialismo.
Meu pai era do PSD, mas achava que os comunistas
estavam certos. Já em 1959, eu ouvi
meu pai dizendo várias vezes: “Precisamos
de um Fidel Castro para consertar esse país!”.
A visão um pouco simples, mas na
cabeça dele, tinha que ter uma revolução
civil, uma guerra civil, para consertar
o país da ladroagem. Na concepção
dele, a ladroagem era o pior dos crimes.
Os rurais quase sempre são muito
radicais quanto ao roubo. Roubo é
roubo de gado, de cavalo. Na cabeça
deles roubar era até mais grave que
matar. Matar poderia ser por uma briga de
família, por desafeto, por vingança.
Na minha casa vi passarem muitas pessoas
que eram pistoleiros, que diziam: “Eu
tive uma briga lá e matei dois em
tal lugar”. Para mim, ele havia se
vingado do cara que bateu nos pais dele.
Eu não estranhava, achava plenamente
normal, não achava errado.
Então, eu fui pra Vitória
em 1960, mas já tinha alguns contatos.
Tinha pouca leitura, pois, no interior não
tinha jornal, só se ouvia o noticiário
pelo rádio, o que me impressionava
muito.
Eu vi quando chegou o primeiro rádio
na minha casa. Era imenso, com uma bateria
quase do tamanho do rádio, gigantesca.
Veio até gente de fora para ver o
rádio ser instalado. Tinha-se pouca
informação do mundo que ouvíamos
pelo rádio. Isso já no final
de 1950. Não tinha televisão
e o jornal era praticamente inexistente
nessa região.
Quando fui para Vitória, em 1960,
passo a ter um contato maior com os comunistas.
Lá tinha um jornal chamado de “Folha
Capixaba” e passei a freqüentar
esse jornal que existia legalmente há
muitos anos, dirigido por pessoas ligadas
ao Partido Comunista Brasileiro, mas não
era um jornal do Partido.
Tinha contato com pessoas que haviam passado
na minha casa para ir para regiões
de conflito. Na minha cidade, Barra de São
Francisco, conhecia um vereador comunista,
Nelson Fraga, que era farmacêutico
e morava no Distrito de Cachoeirinha. Percebia
que os comunistas eram pessoas um pouco
diferentes dos outros, isso suscitava em
mim uma certa curiosidade. Ao mesmo tempo
em que tinha essa curiosidade, tinha também
um certo pavor. Se hoje as pessoas falam
mal dos comunistas, imagine naquele período.
O pavor vinha da propaganda disseminada
na sociedade de que os comunistas matavam,
estupravam, matavam padres e freiras, comiam
criancinhas e até faziam igrejas
virarem armazéns. Mas, de qualquer
maneira, talvez tenha sido esse espírito
de contestação dos comunistas
que me seduziu, mas sem ter pretensão
de querer transformar igreja em armazém…
Apesar de toda essa propaganda contra o
comunismo, isso era insuficiente para arrefecer
a minha vontade de fazer alguma coisa, embora
sem muita consciência. Então,
em Vitória, comecei a ter contato,
eu ia ao jornal, encontrava algumas dessas
pessoas que eu conhecia e passei a ler mais.
Lembro-me até hoje do Severino Bezerra,
um estudante comunista, de uma família
de comunistas e que lia muito, era um grande
intelectual. Quando eu o conheci ele já
lia muito, para mim era uma das pessoas
que mais lia, sobre todas as coisas, ele
sabia tudo. Eu ficava muito impressionado
com a sua inteligência. Quando ele
me chamou para entrar no partido, eu não
aceitei.
Em Vitória, estudei no Colégio
Americano Batista, no Colégio Estadual
e depois fui para o Colégio Salesiano,
quando já participava do movimento
estudantil. Ajudei a fundar uma entidade
– a União Espírito Santense
de Estudantes Secundaristas. Existia uma
entidade estadual – a União
Capixaba dos Estudantes – e nós,
por divergência, criamos uma outra
entidade. Eu tinha pouco papel nessa entidade,
era apenas um bom trabalhador e fazia parte
da diretoria. Reconheço que era uma
pessoa disposta, ia a todas as reuniões,
mas a liderança maior desta entidade
era o Leônidas de Souza.
Nesse
período, eu já tinha uma noção
da luta pelas Reformas de Base, isto é,
tinha noção de um outro movimento
que não era apenas estudantil. Na
minha cabeça, parecia que essas Reformas
tinham uma dimensão muito grande.
As Reformas de Bases abrangiam a reforma
agrária, bancária, urbana,
estudantil, etc. Enfim, todas as reformas
que ainda hoje são faladas, já
naquela época eram discutidas. Tudo
me parecia justo e eu sabia exatamente definir
bem entre uma reforma e outra.
No
Espírito Santo, ajudamos na criação
dos sindicatos rurais. Na época,
era o Guilherme Ataualpa de Montezuma Breder
que estava na Superintendência de
Reforma Agrária e foi a principal
figura na organização do campesinato
capixaba. Então, nós íamos
ao interior ajudar a criar os sindicatos
rurais. Era difícil explicar para
o trabalhador rural qual era o papel do
sindicato. Na cidade é mais fácil
convencer os trabalhadores a entrarem para
um sindicato. Pode-se falar em lutar por
aumento de salário, aposentadoria,
diminuição de jornada de trabalho,
etc. No meio rural não tem nada disso.
No Espírito Santo são muitos
os pequenos proprietários e meeiros.
Por exemplo, falar sobre a greve para esses
trabalhadores não tinha sentido.
É muito difícil para um meeiro
entender o que é uma greve. A metade
do café que colhe é dele.
Como é que ele vai parar para fazer
greve? Só se fizer contra ele mesmo.
Depois, com a presença dos trabalhadores
rurais e as lutas camponesas, a briga já
começava a aparecer no cenário
nacional. Começamos então
a criação dos sindicatos.
Acompanhei
boa parte da criação dos primeiro
sindicatos rurais. Tinha uma pessoa, hoje
já morto, que se chamava Enéas
Pinheiro. Ele era comunista e tinha estado
na União Soviética. Ficávamos
encantados com ele por isso. Afinal, ir
à União Soviética era
quase um sonho irrealizável. Eu o
acompanhei a vários lugares para
criação dos sindicatos dos
trabalhadores rurais. Nas reuniões,
quando compareciam vinte pessoas a gente
ficava numa alegria imensa. Vinte pessoas
era muita gente, afinal aquelas pessoas
tinham ido ali a despeito do que o padre
tinha falado na Igreja Católica,
que era muito conservadora. Na criação
dos primeiros sindicatos no Espírito
Santo, havia mais espíritas e evangélicos
que católicos. Os padres eram muito
conservadores. Muitos vinham da Espanha,
de Portugal e da Itália e faziam
uma propaganda intensa contra o comunismo.
Os padres recebiam a revista conservadora
do IBAD, o Reader’s Digest que era
americana, além de outras de orientação
anticomunista produzidas por umas agências
americanas.
O Enéas Pinheiro, falava para os
trabalhadores baseando-se na Bíblia.
Como, no passado, ele tinha sido pregador
evangélico, além de estar
habituado a falar em público, conhecia
bem a Bíblia. Então, ele explicava
aos trabalhadores um pouco do que era o
sindicato e o socialismo, tudo isso através
da Bíblia. Eu assistia aquilo, mas
não achava aquilo que ele estava
achando na Bíblia. De qualquer maneira,
era interessante a linguagem usada por ele,
porque conseguia, usando passagens da Bíblia,
fazer com que os trabalhadores entendessem
o que era o socialismo e o sindicato.
Fazer com que os trabalhadores entendessem
o papel do sindicato era difícil.
Afinal, para criar um sindicato é
preciso ter uma sede e para se filiar é
preciso pagar. Como justificar uma sede
se não havia nenhum grau de organização
entre os trabalhadores? Tanto é que,
as primeiras sedes eram quase sempre instaladas
em uma saletinha pequenininha, cedida por
alguém ao sindicato. Mas o que que
o trabalhador ia fazer lá? Não
tinha carteira assinada de trabalho, portanto,
não tinha aposentadoria, não
tinha férias e não tinha luta
por salário. Meeiro, assim como o
proprietário, não tem salário
e não tem crédito bancário,
o que torna difícil explicar os benefícios
da criação de um sindicato.
Muita da atuação do sindicato
foi centrada na orientação
de como receber do governo benefícios
para as famílias, instituído
nos anos sessenta. Se uma família
tivesse cinco filhos, com menos de doze
ou treze anos, podia juntar as certidões
de nascimento e dar entrada no cartório
para receber uma pequena ajuda. Apesar de
ser uma ajuda bem pequena, era muito importante
para os trabalhadores uma vez que estes
viviam no limite da sobrevivência.
Lembro-me que ajudei muitos trabalhadores
a dar entrada no pedido de benefícios.
Alguns não receberam, havia a suspeita
de que o cartório pegava um pouco
daquele dinheiro quando chegava. Nunca soube
a verdade, não houve uma investigação.
Com a criação dos sindicatos,
antes de 1964, começa-se a vislumbrar
certo grau de mobilização,
incentivado pela Frente de Mobilização.
Havia, também, a influência
do Grupo dos 11 do Brizola. As pessoas mais
esclarecidas, em alguns municípios,
estavam ligadas ao Grupo dos 11. Era uma
coisa ainda incipiente, mas já se
percebia essa outra discussão.
O Partido Comunista também tinha
presença no cenário nacional.
Atuei no movimento estudantil para entrar
no Partido Comunista. Marcamos uma reunião
no jornal Folha Capixaba com um dirigente
do Partidão. Fui eu, meus primos
e uma outra pessoa, mas o dirigente não
compareceu à reunião. Fomos
lá para sermos “recrutados”,
que era a expressão que se usava
na época, e o dirigente não
estava lá. Lembro-me, até
hoje, meus primos dizendo: “Nunca
mais quero ver esse pessoal. A gente vem
aqui e o cara nem aparece”. Com isso
meus primos desistiram, à exceção
de um deles. Eu acabei ficando do mesmo
jeito, junto com um dos primos e acabamos
criando a chamada Base Secundarista. Literalmente,
recrutei-me. Achava que era importante e
entrei para o partido. Sem muita noção,
sem muita compreensão, mas lendo
muito. Fiz o cursinho oferecido pelo partido
e líamos o material que nos forneciam.
O Manifesto Comunista me impressionou muito
pela linguagem, pelo texto. Parecia radical
e, ao mesmo tempo, romântico. Era
isso que me impressionava e atraía.
Lia também os romances do povo. O
partido tinha uma coleção
de livros de muitos intelectuais de esquerda.
Li Judeu sem Dinheiro, do Jacques Roumain,
do Haiti, Senhor Deus dos Desgraçados,
do Gondin da Fonseca, que falava do petróleo.
Até hoje me lembro que, muitas vezes,
quando eu queria atrair alguém para
o partido não começava com
um livro marxista. Pegava o livro do Gondin
da Fonseca, que falava numa linguagem muito
interessante sobre petróleo, riqueza
e, sobretudo falava mal dos americanos,
principalmente contra o Mr. Link, um americano
que fez uma pesquisa no Brasil e que dizia
que o Brasil não tinha petróleo.
Eu cresci e militei falando mal desse Mr.
Link. Falava também do imperialismo
e das lutas que se travavam na África,
uma coisa importantíssima, a ponto
de a União Soviética criar
a Universidade Patríce Lumumba.
Nesse
período, o que é que ocorre?
A nossa cabeça estava ocupada pelas
reformas, que era uma coisa ampla, a presença
dos trabalhadores rurais, que era uma coisa
nova e também pela descoberta desse
outro mundo, chamado mundo socialista. Cuba
exercia uma influência imensa. A Revolução
Cubana havia alfabetizado toda a população,
aquilo era uma coisa fantástica para
nossa cabeça.
Quando veio o Golpe em 1964, tínhamos
montado um grupo para alfabetização
de adultos. Nossa idéia era de, voluntariamente,
ir para os bairros alfabetizar.
Antes, já tinha exercido, ilegalmente,
a profissão de professor. Dei aula
na Ilha do Príncipe, em Vitória,
na época uma ilha bem pobre. Foi
montado um cursinho, uma espécie
de cursinho de admissão, onde eu
dava aulas, junto com alguns amigos meus.
A gente tinha que caminhar muito, ir a pé,
voltar. E os alunos eram muito pobres, algumas
traziam caixote para assistir às
aulas. Acho que eu desisti da condição
de professor porque os alunos, por serem
pobres, não podiam comprar o caderno.
Eu, que já não tinha dinheiro,
de vez em quando tinha que comprar um caderno
para um aluno. A situação
era difícil. A gente deu aula lá
por um período, mas eu sonhava com
a alfabetização, tal como
ocorrera em Cuba.
Cuba tinha uma influência grande.
Uma ilha que havia feito uma revolução,
isso é uma coisa muito romântica.
Nós já tínhamos uma
noção desse outro mundo. Havia
modelos como Guevara, Fidel Castro, mas
também Mao Tsé Tung. A China
sempre foi um encanto para todo o mundo,
independente do que pensem. A gente também
acompanhava os acontecimentos na União
Soviética, líamos tudo o que
aparecia. Era como se fossem dois mundos
divididos e a gente se posicionava em um
desses mundos. Nesse período as pessoas
procuravam se situar de um lado ou de outro.
É como se o mundo tivesse dois pólos.
Não digo que todo mundo pensasse
assim, mas no caminho que a gente estava
seguindo esses pólos existiam. O
fato de ter dois pólos facilitava
na comparação. Então,
a gente falava: “Na Polônia
estão produzindo tantos tratores”.
“Não sei aonde acabou o analfabetismo”.
“Em tal lugar foram produzidas tantas
toneladas de trigo”. “Os Estados
Unidos ajudou nos golpes militares na América
do Sul”. Enfim, você ia fazendo
uma contraposição entre um
pólo e o outro.
Nesse período, até 1964, havia
uma grande mobilização no
Brasil, a gente sentia isso. As pessoas
falavam mal do Lacerda. Eu lembro que em
1963, quando estudava em um colégio
estadual, um grande amigo meu, que era líder
da juventude, estava chamando as pessoas
para recepcionar o Lacerda. Para mim, comunista,
Lacerda era o contraponto do que havia de
pior. Era direitista e seu apelido era “o
corvo”. Fizemos uma agitação
em nossa sala, a confusão foi tanta
que acabamos com a mobilização
do Lacerda. Acabou porque nós fizemos
muita pressão, também promovemos
muita discussão. E nesse mesmo período,
surgiram notícias que o Lacerda havia
matado uns mendigos, que foram jogados no
Rio Guandu. Lacerda tinha tomado essas medidas
para acabar com as favelas e “limpar
a cidade” para os turistas.
Então já havia uma certa efervescência
e nos localizávamos no mundo, devido
a um certo conhecimento adquirido por meio
de leitura e de discussões. A gente
se localizava no Espírito Santo,
se localizava no contexto do Brasil e se
localizava no contexto do mundo. Tínhamos
descoberto que o mundo era maior e que fazíamos
parte de um projeto.
A nossa percepção, alimentada
pelas leituras, era de que o socialismo
seria uma coisa inevitável. Diziam
que era inexorável. Eu ficava desesperado
para entender o sentido dessa palavra. É
quase como se você, querendo ou não
querendo o socialismo, ele virá.
Muito embora tivéssemos a consciência
de que precisávamos fazer alguma
coisa para que isso acontecesse. Nesse período,
a gente sentia que a sociedade civil não
era muito forte. A luta das mulheres, dos
negros, dos índios, na nossa cabeça,
seria mais bem equacionada quando o socialismo
chegasse.
Quando veio o Golpe, foi um baque muito
grande. Muitos, nem tomaram conhecimento
da existência do Golpe, continuaram
suas vidas do jeito de sempre. Às
vezes, tem-se a impressão que todas
as pessoas foram afetadas pelo Golpe, o
que não corresponde à realidade.
Para uma boa parte da população
a vida continuou, dentro da mesma rotina.
A Igreja Católica teve um papel importante
na mobilização e na complementação
ideológica do Golpe Militar, inclusive
junto à classe média promovendo
as famosas Marchas da Família.
Naquele momento de grande ruptura, o ser
humano continuou vivendo, mas em outras
condições. Houve uma mudança
profunda. Pessoas que você imaginava
que se tornariam grandes diante dessa situação,
às vezes desapareciam, reduziam de
tamanho e praticamente passavam a justificar
o contrário do que defendiam. Outras,
que a gente via como apagadas - era a expressão
que a gente usava - se tornavam um leão
lá na frente. Isso me marcou muito.
Procurava, na minha cabeça, localizar
as pessoas que conhecia e tentava pensar
o que estaria se passando com elas. Algumas,
eu percebia, continuavam no mesmo ritmo.
Outros tinham avançado mais, agora
estavam com mais fé, com mais fervor,
com mais vontade de fazer alguma coisa.
Vi gente que falava em dissidência
no PCdoB, porque queriam ser mais alto que
o PCdoB, isso em 1962. Eu era do Partido
Comunista, mas tinha uma boa convivência
com o pessoal do PCdoB. Muitos desses que
queriam ser mais radicais do que o PCdoB
da época, depois foram para a Arena,
se beneficiando do governo e justificando
essa mudança. Eu vi isso no parlamento,
na área sindical e em outras áreas
também. Muitas pessoas, que você
achava que tinham um ideal, revelaram que
esse ideal era, por assim dizer, fluido.
Um ideal que no primeiro enfrentamento de
fato, mudou. Não sei se poderia chamar
isso exatamente de ideal. Outros que não
estavam envolvidos na luta descobriram que
era preciso resistir.
Com o Golpe, você começa a
viver essa nova realidade. Muita gente desanimada
e muita gente ressurgindo. Como encontrar
um fio para conduzir isso? Para mim não
foi muito complicado, porque eu era do Partido
Comunista e não saí. Continuei
acreditando que era preciso prosseguir,
mas houve dissidência no próprio
Partido Comunista. Essa dissidência
aconteceu porque o Prestes, quinze dias
ou um mês antes do Golpe, disse que
se os gorilas - que era a expressão
que se usava para os golpistas militares
- tentassem o Golpe seriam enjaulados. Imagine
o Prestes ter afirmado isso, ele era uma
figura quase santa para nós.
Estive com ele em uma reunião em
1963, no Rio de Janeiro, representando os
estudantes secundaristas capixabas. O mito
era e é uma coisa muito forte no
Brasil. Numa reunião, ou ativo comunista,
como chamavam, que aconteceu em um prédio
bem ao lado do famoso Hotel Serrador, que
havia pegado fogo, o Prestes apareceu para
conversar com a juventude. Nunca fui de
pedir autógrafo, acho que foi o primeiro
autógrafo que eu pedi na minha vida,
até cometendo uma ilegalidade. No
local da reunião havia uma bibliotecazinha,
pegamos um livro e entregamos ao Prestes
para que nos desse seu autógrafo.
Portanto, a biblioteca da pessoa que havia
emprestado o local foi desfalcada. Já
cometemos algum deslize…
Antes do Golpe de 1964, fui participar daquele
comício da Central do Brasil. Havia
viajado de ônibus do Espírito
Santo para o Rio. Os discursos nos deixavam
entusiasmados e quando aplaudíamos
o discurso de uma pessoa do Partido Comunista,
chegam os petroleiros com faixas e tochas
acesas. No instante seguinte, vimos tochas
incendiando as faixas que caiam na multidão.
Eram mais de cem mil pessoas, ou duzentas,
não sei ao certo. Houve uma correria
tremenda, as pessoas sendo arrastadas, foi
um verdadeiro pavor. Foi a primeira vez
que senti, no meio da multidão, um
pavor assim. Fui arrastado, lembro-me que
houve momentos que não sentia meus
pés pisando no chão, parecia
que eu estava sendo carregado, empurrado.
Fiquei impressionado quando vi um carrinho
de pipoca todo amassado no chão.
É algo assombroso viver um momento
como esse. O coração da gente
dispara, são momentos que parecem
séculos. Então, aquelas pessoas
importantes gritavam lá do palanque
“calma, calma” até que
o tumulto cessou. Quando tudo parou, meu
coração batia muito, foi uma
sensação terrível.
Ser carregado pela multidão é
uma coisa assustadora. Eu respirava assim,
meio desesperado, mas decidi ficar até
o fim do Comício. Localizei uma árvore
e pensei: “Eu vou assistir o comício
junto a essa árvore. Se houver outro
tumulto, vou me abraçar à
árvore e ninguém vai me levar
nessa onda de pavor”. Quer dizer,
eu tinha elaborado toda uma estratégia
para me proteger. Quando olho na minha frente,
um novo choque. Vi uma senhora, já
idosa, cabeça bem branquinha, de
costas. Nas costas dessa mulher, tinha várias
marcas de sapato. Possivelmente ela deve
ter caído e foi pisada durante o
tumulto. A despeito de tudo, ela gritava:
“Manda brasa, Brizola!”. Ela
era uma brizolista. Eu me senti um pouco
humilhado. Jovem, eu só estava preocupado
com a minha segurança e aquela senhora,
embora tenha passado aquele aperto todo,
lá estava com todo o seu entusiasmo.
Então, a gente vai vendo, sentindo
um pouco a dimensão humana. Eu estava
com fé, mas estava preocupado em
proteger-me, enquanto ela, possivelmente
nem se lembrou disso.
No dia do Golpe, eu estava com a cabeça
raspada, pois tinha entrado na faculdade
de odontologia.
Fizemos
a primeira marcha contra o Golpe. Saímos
da União Estadual dos Estudantes,
a reunião havia sido lá: descemos,
percorremos um trecho em direção
ao Palácio do Governador, cantamos
o Hino Nacional - no meio do caminho esquecemos
alguns trechos do hino - carregando uma
bandeira e um quadro negro com palavras
contra o Golpe. Sempre sonhei em um dia
saber quem é que teve essa idéia
e de onde apareceu esse quadro.
O Governador Francisco Lacerda Aguiar, conhecido
como “Chiquinho”, era uma figura
que não se definia, tanto é
que as pessoas contavam uma piada em que
os militares perguntavam a ele: “De
que lado o senhor está, governador?”
e ele respondia: “Eu estou do lado
da Escola Maria Ortiz.”. Essa escola
ficava bem do lado do Palácio…
Ficamos em frente à porta do palácio,
escolhemos uma comissão, com pessoas
de maior representação, para
conversar com o governador e eu e outros
companheiros permanecemos no portão.
Tenho na lembrança uma cena que me
assustou muito e que, de vez em quando,
vem à minha mente. Os soldados ganhavam
muito mal e nós gritávamos:
“Soldado é filho do povo, filho
de soldado não pode entrar para a
universidade”. Falávamos isso
porque nós tínhamos tido a
oportunidade de entrar na universidade,
outros estavam próximos de entrar.
Havia um soldado, desses mais antigos, vestindo
uma calça cáqui, possivelmente
já meio puída até,
que respondeu: “Vocês têm
razão, mas se mandar atirar, eu atiro”.
Ele sabia que nós tínhamos
razão, ele tinha consciência
que soldado era filho do povo, mas se mandassem
atirar ele atiraria. Nós estudantes
estávamos vivendo um drama, mas esse
soldado também vivia seu drama. Estou
falando do drama humano, essa dimensão
que é difícil de a gente localizar.
Depois, saímos dessa atividade segurando
um quadro negro onde estava escrito algo
assim: ”O governador está ao
lado do povo e contra o golpe”. Mas,
já na saída, a polícia
nos cercou dizendo: “Deixem esse quadro”,
largamos nosso quadro para trás.
Eu nunca soube como surgiu esse quadro,
tinha vontade de um dia localizar esse quadro
que deve ter virado pó…
O governador deu uma declaração
de que estava ao lado do povo. Nunca vi
alguém se declarar contra o povo.
A ditadura dizia que estava com o povo e
a favor da legalidade. O Brizola também
era pela legalidade, todos estavam pela
legalidade. Com a democracia é a
mesma coisa. Nunca vi ninguém ser
contra a democracia, nem a ditadura. Os
militares sempre falavam: “Estamos
mantendo o Congresso aberto, nós
acreditamos que isso é o valor maior”.
Então, o discurso do governador,
de que estava ao lado do povo, serviu para
o outro dia, quando já tinha praticamente
acontecido o Golpe, e apareceu no jornal
praticamente dizendo as mesmas palavras.
Então, fiquei na universidade, respondi
ao Inquérito Policial Militar (IPM)
ainda com a cabeça raspada, muitos
professores me questionaram. Esse inquérito
era organizado e conduzido por uma comissão
de professores. Conversando com alunos de
outras faculdades, percebi que em todas
as faculdades, sem exceção,
havia professores, funcionários e
alunos que apoiavam o Golpe. Não
só apoiavam, mas se prestavam a delatar.
Lembro-me que a gente tinha um ódio
muito grande daqueles delatores e suspeitávamos
de colegas nossos, de alguns professores
e de alguns funcionários.
O curso de odontologia, naquele tempo, tinha
uma característica interessante de
ser um curso procurado pelos pobres e durava
quatro anos. Por coincidência, naquele
período fizeram uma lei, que ainda
hoje acho que está em vigor, que
permitia a quem terminasse o curso de odontologia
ingressar no Exército, Marinha, Aeronáutica
e no Corpo de Bombeiros, com a patente de
tenente. Assim, soldados, cabos e sargentos
buscavam os cursos de odontologia para serem
promovidos. Nossa faculdade tinha um número
imenso de militares. As aulas eram dadas
em período mais curto, não
era o dia inteiro, o que dava possibilidade
para a pessoa estudar e exercer a atividade
militar.
Logo depois do Golpe, passados mais ou menos
quinze dias, resolvemos fazer uma pichação.
Procurei alguém da direção
do partido e eles falaram “Não,
vocês não devem fazer isso,
porque vai chamar a atenção
sobre nós”. Acabamos desobedecendo
à orientação do partido
e fizemos a pichação pouco
tempo depois. Você começa a
sentir uma certa decepção.
Muitos daqueles dirigentes que você
conhecia sumiram, evaporaram. Conversei
com uma pessoa da direção
do partido, do Comitê Central, mas
que atuava no Espírito Santo. Era
uma figura que havia participado do movimento
de 1935, em Natal. Conversei com ele e ele
me assegurou: “Esse Golpe não
dura seis meses”. Saí de lá
animado, afinal ele era uma pessoa da direção
e, como tal, deveria ter informações
privilegiadas. Só que a ditadura
durou muito mais que os seis meses. Sendo
uma pessoa digna, decente, imagino que deve
ter ouvido esse comentário de alguém
e, como eu, acreditou.
Depois do Golpe, começa no partido
uma discussão meio sem pé
nem cabeça. As antigas orientações
deixaram de ter sentido. Nesse clima, começamos
a ler material do Marighella, que passou
a exercer uma grande influência sobre
nós. A sua trajetória pessoal
de luta, sua resistência à
prisão, certamente nos seduziu. Lembro-me
bem que já estavam preparando um
congresso e começaram a chegar as
teses. As de Marighella, Jacob Gorender
e Mário Alves eram as que tinham,
mais ou menos, uma formulação
mais próxima do nosso grupo. Na época,
eles apresentaram um documento chamado de
Defesa das teses. Eles só queriam
levar aquele único documento para
discutir com os comunistas. Só que
nós estávamos travando uma
luta interna dentro do partido. Chegamos
a organizar uma chapa para o sindicato dos
metalúrgicos, que era um sindicato
importante. Tinha uma chapa mais oficial
do Partido Comunista, a nossa - constituída
por dissidentes do Partido Comunista - e
a do PC do B que era apoiada por um coronel
interventor.
No movimento estudantil havia mais comunistas.
Eu fazia parte do PCB, mas tinha gente do
PC do B, da Ação Popular e
da Juventude Universitária Católica.
Estive no segundo congresso clandestino
da UNE, que não foi aquele de Ibiúna,
mas o de Valinhos, se não me engano.
Eu fui a esse congresso clandestino, onde
devia ter umas mil pessoas. Imagine clandestinidade
com mil pessoas… Quando retornamos,
eu já havia respondido a um Inquérito
Policial Militar na escola, acabei sendo
preso. Levaram-me para o Terceiro Batalhão
de Caçadores. Fiquei lá três
dias, sendo interrogado e com medo que pudesse
ocorrer alguma coisa pior.
Nessa ocasião, vi uma coisa que me
impressionou muito. Éramos três
estudantes de odontologia presos. Na cela
ao lado, uma pessoa chorava e eu o chamei:
“Companheiro!”. Pensamos que
devia ser alguém nosso que estava
na cela ao lado. Então, a pessoa
deu logo a entender que não era nem
comunista, nem subversivo, nem nada. Disse
que dera um cheque de valor bem baixinho
e, como estava sem fundo, o haviam prendido.
Depois, soubemos até que essa pessoa
foi maltratada, até torturada. Na
realidade, essa pessoa era um empresário
que fazia obras para o Governador Chiquinho.
Como os militares queriam cassar o Chiquinho,
pressionavam o empresário para que
confessasse alguma corrupção
que comprometesse o governador. Percebi
que tinha outro tipo de gente na prisão
que não era da luta política.
Dentre nossas atividades, utilizávamos
muito os trotes dos calouros para fazer
luta política. O refrão da
Odontologia era: “Abaixo a dentadura”.
Os movimentos sociais e sindicais haviam
sofrido um recuo muito grande com a repressão.
O Parlamento se dobrou mais facilmente do
que se imaginava. Depois participei de uma
atividade de estudantes em Niterói
e acabei sendo preso novamente. Levaram-me
para o DOPS em Niterói. Não
sei bem se era DOPS ou uma delegacia. Fiquei
preso umas quatro ou cinco horas, fiquei
até de madrugada. Apareceu um advogado
que me defendeu. Eu nem sei quem é
ele, mas devia ser uma figura muito boa.
Eu tenho uma imensa gratidão por
essa pessoa, não tenho nem como pagar.
Comigo estava uma pessoa menos experiente
e eu explicava a ele que não tinha
que falar nada. Na cela ao lado, apareceu
uma pessoa de um país da América
Latina, de língua espanhola, que
nos dizia: “Sou cubano, estou aqui
porque trouxe umas armas, me prenderam e
torturaram muito”, mostrando várias
marcas pelo corpo. É bem provável
que nem fosse cubano e foi preso por algum
tipo de ilegalidade. Apesar de ter sido
espancado, porque tinha marcas pelo corpo,
ele se prestava àquele papel. Possivelmente,
essa pessoa não tinha nenhuma identidade
política. Comentei com meu colega
que aquilo parecia muito estranho. Deveria
ser mais um dos ardis da repressão
para que falássemos.
Continuamos no Partido Comunista, mas já
na luta interna, fazíamos reuniões
separadas. Havia pouca atividade no movimento
estudantil e o movimento sindical já
estava muito fraco, acompanhávamos
os acontecimentos, em nível nacional,
através de jornais. Eu lembro das
matérias do Cony no “Jornal
da Manhã”. O jornal “Última
Hora” era um dos poucos jornais onde
se lia alguma crítica ao governo
militar. A mídia, grosso modo, aderiu
e ajudou na preparação do
Golpe, no sentido preciso. Com a visão
de hoje, percebe-se que muitas coisas que
eram ditas e faladas não eram nem
pedidos a donos dos jornais; eles se prestavam
a isso voluntariamente. Então, quando
se fala que a mídia sofreu censura,
é preciso dizer que isso aconteceu
em termos. Boa parte da mídia apoiou
franca e abertamente o Golpe Militar. A
perseguição era individual.
Um ou outro jornalista sofreu perseguição.
E muitas pessoas hoje no Brasil ainda confundem
muito o que é que é a luta
de um jornalista e o que é que é
da empresa. É preciso deixar claro
que a perseguição não
era contra o jornal, era contra a pessoa.
Eu tenho muito medo quando as pessoas criam,
isso eu já percebia na época,
blocos sagrados. A imprensa e as universidades,
como um todo, não foram vítimas
da repressão. Alguns membros da universidade
e da imprensa é que foram vítimas
da repressão. Alguns, inclusive,
perderam suas vidas na luta contra a repressão.
Não se pode dizer que os reitores,
que aplicavam decreto Lei 477, o AI-5 das
universidades, foram perseguidos pelo regime
militar. Esse resgate da verdade ainda não
aconteceu. Devolver a cada um o mérito
devido é importante para a memória
brasileira.
É importante o registro das histórias
individuais, não da instituição,
mas dos indivíduos na instituição.
Eu conheci uma pessoa no Espírito
Santo que era funcionário da universidade:
logo depois do Golpe Militar ele já
tinha articulado um esquema de informação
lá dentro, depois ele virou professor
da universidade. Era temido por todos, porque
ele delatava, denunciava. Por esta razão,
acho que é importante resgatar a
história da instituição,
mas também das pessoas. Por conta
desse funcionário que virou professor,
muitos funcionários foram perseguidos.
Se não tiver cuidado, esse funcionário,
daqui a algum tempo, irá dizer: “Eu
também estive contra a ditadura”.
Como disse, havia não só funcionários
delatores, mas também professores
e reitores. Quando fui torturado em Pernambuco,
fui torturado por um professor de odontologia
que era também coronel e que depois
virou reitor.
Por outro lado, quando falamos que apenas
um grupo de pessoas foi à luta, isso
não quer dizer que alguns estiveram
mais à frente e que os outros não
estivessem. Até certo ponto, havia
muitos que davam uma certa cobertura, mas
não se pode dizer que cem por cento
das pessoas foram às ruas para protestar.
Se em uma manifestação estudantil
havia cem pessoas, na universidade havia
cinco mil alunos ou muito mais. Pode ser
que entre os estudantes que não participavam,
havia mais uns mil que gostariam de estar
ali, mas a sua própria história
pessoal não os levou até lá.
Havia pouco conhecimento, havia pouca informação
ou a família não permitia
que se envolvesse em manifestações.
Quer dizer, temos que trabalhar com esse
dado, porque, senão a gente cria
um padrão, faz o McDonald da esquerda
e o McDonald da direita. Não é
assim. Eu vi gente que foi de direita e
que foi da esquerda, que mudaram de posição.
Teotônio Vilela visitou a gente no
presídio e falou: “Eu apoiei
o Golpe Militar, por convicção,
por ideologia e por opção
de classe. Hoje sou contra, por convicção,
purgando meus pecados”.
Depois desse período da ditadura,
quando já tinha sido preso por duas
vezes, fui para a União Soviética,
onde fiquei por um período de um
ano e pouco. Pretendia retornar para entrar
na guerrilha, junto com a ALN. Tentei contato
com Cuba, com os cubanos, mas nesse período
havia uma dificuldade de convivência
com a União Soviética. Na
Checoslováquia e em outros países
do bloco soviético havia grupos de
pessoas que estavam indo para a guerrilha,
seguindo o exemplo de Cuba. Então,
não consegui o que buscava. Fiquei
lá, estudei direito internacional
por um período. Vi a experiência
dos sindicatos socialistas, que eram mais
atrelados do que os nossos aqui, porque
o sindicato era o instrumento do Estado
e do partido. Então, o sindicato
falava o que partido queria e não
o que os trabalhadores pensavam. Depois,
havia uma Federação de mulheres,
que estava mais voltada para a defesa do
partido e do governo que para a temática
da mulher. Assuntos, como a exploração,
a dor, a alegria e a sexualidade eram pouco
discutidas. As mulheres eram tratadas assim,
era como se fossem um exército do
“nosso partido glorioso ou o nosso
exército fantástico”.
O exército era outra instituição
sagrada, que exercia um papel muito importante
para o fortalecimento do patriotismo na
população. Você percebia
uma burocracia muito grande, muito forte,
muito difícil.
A gente fica um pouco decepcionado, porque
as coisas na cabeça da gente eram
muito idealizadas. Em 1963 ou 1964, caminhava
com um amigo meu, hoje já morto,
e que tinha um problema cardíaco.
Disse-me um dia: “Estive na União
Soviética”. Você tinha
o Satanás, que era representado pelos
Estados Unidos e você tinha o “Deus”,
que era a União Soviética.
Parecia que na cabeça da gente havia
só dois mundos e nós aqui
vivíamos numa espécie de “limbo”.
Esse amigo contou-me que havia visitado
o Clube de Oficiais em Moscou, a descrição
que ele fez desse clube me deixou maravilhado.
Quando eu fui para a União Soviética,
a primeira coisa que aconteceu comigo na
chegada foi ser preso. Viajei com um passaporte
que me levaria à França e
de lá para a União Soviética.
Na França me deram um visto solto,
para não carimbar o passaporte de
forma a evitar problemas futuros. Acabei
perdendo esse visto, creio que isso aconteceu
na entrada do aeroporto, onde embarcaria
para Moscou. Matuto como era, não
prestei atenção se na alfândega
haviam devolvido meu visto. Coloquei o passaporte
no bolso e fui embora. Quando chego ao aeroporto
de Moscou, cadê meu visto? “Visa,
visa”, diziam e eu não entendia
nada, pois não falava o russo. Chegou
um cara falando em alemão, que eu
também não entendia. Então,
eles me levaram para uma casa próxima
ao aeroporto. Passei três dias numa
casa cinzenta e pensei que eu estava preso,
praticamente isolado. Via pessoas chegando.
Havia uma mulher bem gordona, vestindo roupas
pesadas e limpando o assoalho com panos.
Essa mulher lavava e falava no corredor
e eu sozinho naquele casarão imenso.
Depois, localizei nessa casa uma pequena
biblioteca. Lá havia livros em espanhol.
O mundo é engraçado, você
não sabe o que vai encontrar pela
frente! Folheando o livro em espanhol -
não lembro qual era o assunto, se
era poesia, ou história - vi algo
escrito em espanhol e fui ver o que é
que era. Algum latino que, como eu, fora
preso escreveu: “Estive aqui durante
vários dias”. Pensei: “Quantos
outros não passaram pela mesma situação
que eu estou passando?”. Depois de
três dias fui solto, imagino que eles
devem ter feito contatos e constataram que,
de fato, eu estava indo estudar pelo partido,
embora a essa altura fizesse parte da dissidência.
A princípio, eu deveria ir para Universidade
Patríce Lumumba, mas cheguei atrasado.
Fiquei em Moscou um período junto
com um grupo de cubanos que bebiam muito
e conversavam lorotas. Um dia, um dos cubanos
falou comigo: “Vamos lá ao
Clube dos Oficiais?”. Então,
pensei: “Não é possível,
um mortal como eu conhecer o Clube dos Oficiais!”
Era aquele mesmo clube que meu amigo havia
descrito com tanta grandiosidade. Lá
fui com os cubanos conhecer o Clube dos
Oficiais. Era um clube grande, com duas
ou três pistas de dança, mas
não era uma “Brastemp”,
como se diz. Concluí que a pessoa
que havia me contado sobre o clube não
devia ter conhecido nenhum outro clube.
Por esta razão, na cabeça
dele, esse clube parecia uma coisa gigantesca,
que na minha cabeça, ficou maior
ainda. Eu também não conhecia
muitos clubes, morando em Vitória,
mas de qualquer maneira, eu tinha uma idéia
através leitura, tinha noção
do mundo. São coisas que você
vai percebendo no dia-a-dia.
Em Moscou, vi uns quatro jovens cabeludos,
carregando algo nas costas, que poderia
ser um violão. Na minha cabeça
imaginava que não encontraria figuras
assim. Os cubanos disseram: “Não,
isso aqui é assim mesmo”. “Aqui
ficam bêbados e viram hippies”.
Os cubanos falavam mal dos russos e da União
Soviética. Um deles me disse: “Olha,
aqui se você tiver um disco dos Beatles,
você fica quase rico”. Os russos
queriam um Beatle de qualquer maneira. A
proibição de ouvir músicas
desse tipo gerava curiosidade nos jovens.
Outro fato que me impressionou, tenho isso
na minha cabeça até hoje,
foi quando o cubano me convidou para ver
o museu do Lênin. Não era ver
o museu, mas era ver o Lênin, que
era uma espécie de santo para nós.
A Igreja Católica tem hierarquias
de santos, tem santos mais importantes que
outros. Então, o Lênin era
aquele santo maior, e eu quase não
acreditei que iria vê-lo. Fomos para
o museu, havia uma fila enorme, mas como
éramos estrangeiros, podíamos
passar na frente dos russos, que aceitavam
sem reclamar. Lênin era considerado,
literalmente, um santo. Lembro-me que, quando
vi seu corpo, meu coração
bateu forte, foi uma imensa emoção.
Como não tinha havia na Universidade
Patríce Lumumba, fui para Kiev, capital
da Ucrânia, onde eu fiquei um ano
e pouco nessa cidade muito especial. Acho
que o ucraniano é o povo, que eu
conheço, que mais tem noção
de amor à pátria, à
terra. Na época, era um país
muito camponês, não sei hoje.
Mas, quando eles falavam das suas coisas,
eu percebia que era mais forte que todos
os povos que eu já vi. Tinha também
os cubanos que diziam: “é nosso
país”, “é nossa
pátria”, “é nossa
ilha”, “nossa revolução”,
“é nosso ideal”. Mas,
quando o ucraniano fala da terra, parece
que fala da terra no sentido de terra roxa.
É algo que eu não vi em lugar
nenhum. Você percebia logo que o ucraniano
se sentia meio excluído da União
Soviética. Chamados de “pequeno
russo”, se sentiam ofendidos, pois,
isto soava como uma ofensa para eles.
Eu estudava em russo na Ucrânia. Visitei
um dia um intelectual lá muito importante.
Eu já tinha uma visão crítica,
percebia como era a burocracia. Para falar
com o professor, você tinha quase
que pedir uma audiência. Quem é
que trataria o professor de “tu”?
Jamais. Era “vós, vós,
vós”. Falar com o reitor era
impossível. Então, fomos visitar
esse intelectual, uma figura nacionalista,
possivelmente, com muito prestígio
e não sei por que nos levaram lá.
Essa pessoa tinha pinturas, tinha tapetes,
aquelas coisas belíssimas da Ucrânia.
A Ucrânia é muito rica. E quando
o intérprete saiu, que era o León,
veio uma outra pessoa para conduzir a gente.
Percebi que ele, além de nos conduzir,
ele também nos acompanhava. Essa
figura perguntou: “Vocês acham
bonito o meu país?” “Claro,
belíssimo! A Ucrânia é
belíssima, estamos apaixonados”
respondemos. Aí, ele perguntou: “Vocês
estudam em que língua?” “Em
russo” dissemos. Senti que nossa resposta
tinha causado uma certa tristeza a essa
pessoa, que devia ser nacionalista. Provavelmente
pensou: “Por que não estudam
em ucraniano”? Dava para perceber
a força do nacionalismo e que o problema
maior era das nacionalidades.
Stálin era um ucraniano, mas sufocava
qualquer manifestação nacionalista
e outros governos que o sucederam também
faziam o mesmo. Percebi também que
havia poucas instituições
da sociedade civil. Uma vez, conversando
com uma pessoa, perguntei: “Aqui,
por acaso aqui tem homossexuais?”.
Tinha uma certa curiosidade, porque havia
aprendido, por meio de leituras, que aquilo
era uma degeneração burguesa,
capitalista. Ele me respondeu: “Aqui
não tem, nenhum”. Eu disse:
“Nenhum? O país tem 250 milhões
de habitantes e não tem uma lésbica,
um gay?” A resposta dele era que não
tinha mesmo. Então, você vê
a força de uma ideologia que impede
a pessoa até de pensar por conta
própria. Não é que
a ideologia não possa ser positiva,
mas precisa ter uma visão crítica.
A mesma coisa aconteceu na Albânia,
que declarou o fim da religião. Quando
caíram aquelas pessoas que declararam
o fim da religião, e os americanos
chegaram, quase metade da Albânia
saudou os americanos e a religião
voltou a fazer parte da vida deles.
Uma vez estava em companhia do Carlos, daqui
do Brasil, que falava bem russo e ucraniano,
mas era enrolador, cascateiro e namorador
como ninguém. Conversávamos
com um russo, que nos disse: “Nossa
língua não tem palavrão”.
Achei aquilo encantador, o único
país do mundo que não tinha
palavrões. “Os palavrões
que existem vêm do tártaro”,
completou o russo. Você imagina, naquele
país de 250 milhões, os tártaros
que deviam ser uns cem mil, duzentos mil
se muito, foram responsáveis pelos
palavrões.
Um outro fato que me chamou muito a atenção
foi com relação ao Vietnã.
Um dia a gente foi fazer um trabalho voluntário,
que era mais uma convocatória, pois
eles chegavam à universidade e comunicavam:
“No dia tal nós vamos trabalhar,
arrancar beterraba”. Eram beterrabas
enormes, uma coisa gigantesca. Tinha beterraba
de mais de dez quilos, usadas para fazer
açúcar. Fomos ao campo colher
beterrabas para ajudar o Vietnã.
Percebi que muitos dos estudantes russos
e ucranianos ficavam com uma raiva desgraçada.
Alguns diziam: “Por causa desses vietnamitas
é que não temos bons sapatos,
porque nós temos que ficar ajudando
a eles”. Eles estavam em guerra contra
os americanos. A gente fazia aquele sacrifício
por algumas horas, mas eram eles é
que estavam morrendo, portanto, fazendo
um sacrifício muito maior. Então,
você percebia que havia um certo egoísmo.
Isso desmonta, também, um pouco da
visão idílica que a gente
tinha dessa gente. Então, isso foi
uma experiência que permitiu que conhecêssemos
um pouco mais os russos. Entretanto, o russo,
de um modo geral, é uma figura muito
boa. O ucraniano é uma figura impressionante.
Você encontra uma pessoa, três
minutos depois de conversa, ele já
convida para ir à casa dele para
comer e beber wodka. Eu não tenho
coragem de convidar alguém, que acabei
de encontrar na rua, para minha casa, conhecer
minha família. Embora o brasileiro
seja uma pessoa muito afetiva, também
é muito desconfiado.
No período das férias, fui
até a Checoslováquia e Alemanha
e vi coisas que me impressionaram muito.
Na Checoslováquia, conversei com
muitos brasileiros que trabalhavam numa
rádio, tinham um programa lá.
Eles falavam do processo de democratização
que estava havendo na Checoslováquia.
Havia muita discussão, debates, muita
criação artístico-cultural
e contestação. Conversei também
com alguns checos. Dois deles me impressionaram
pelos argumentos que apresentavam. Um deles
falou assim: “Nós temos desenvolvimento
aqui na Checoslováquia, não
é por causa do socialismo, porque
antes disso já éramos desenvolvidos”.
De fato, a Checoslováquia já
tinha um certo grau de desenvolvimento industrial
quando os russos chegaram com seus tanques.
Ele dizia: “Boa parte do que nós
temos aqui devemos ao que já éramos
antes e ao nosso trabalho”. “Falam
que nós somos trabalhadores, que
nós estamos no poder. Aqui estamos
no poder, mas preciso de 5 ou 6 anos para
comprar um carro. Na Alemanha Ocidental
(que era a grande referência para
eles), que é capitalista, os trabalhadores
não estão no poder, mas com
menos de um mês de trabalho compram
um carro. Qual é a vantagem do socialismo?”.
Eram questionamentos de um operário
que fazia suas comparações.
Você pode fazer outras, utilizando
outros parâmetros, mas o operário
fazia a dele, de acordo com seus interesses
e necessidades. Talvez isso tenha contribuído
bastante para o desmonte do muro de Berlim.
Fomos à Alemanha Oriental, visitamos
o muro de Berlim. Estava no coração
da Alemanha Oriental. Todo mundo pensava,
imaginava que o muro ficasse numa espécie
de fronteira, mas localizava-se bem no coração
da Alemanha Oriental. Entretanto, acordo
de guerra é acordo de guerra, e a
Alemanha Ocidental era uma espécie
de uma vitrine do capitalismo. Mas não
era apenas isso, na Alemanha Oriental a
falta de liberdade era sentida por muitos.
Dava para sentir o peso do partido, um certo
temor do partido, um certo temor da máquina,
um certo temor de falar. Isso, também,
dava para perceber na União Soviética.
Um mês depois, voltei da Alemanha,
Checoslováquia e Polônia. Os
soviéticos haviam entrado com seus
tanques na Checoslováquia. Para justificar
essa invasão, jornais soviéticos
diziam: “Noventa e tantos comunistas
pediram essa intervenção”.
Como é possível que noventa
e oito pessoas pedem para intervir em nome
de toda a população? Que socialismo
era aquele? Não havia nenhuma sustentação
política ou ideológica que
justificasse a invasão. Era apenas
para manter o poder. Quer dizer, em nossa
cabeça era um pouco assim: “Se
o objetivo é implantar o socialismo
no mundo, não vai haver guerra, todos
os países serão irmãos.
A guerra era capitalista, para vender, comprar,
criar mercados e escravizar o outro”.
No período em que estava lá,
houve choque nas fronteiras da União
Soviética com a China. Soube que
morreu muita gente, não sei se ocorreu
próximo da Mongólia, mas era
um lugar desses. Os jornais soviéticos,
eu imagino que os chineses também,
exaltavam o ódio contra os chineses.
Era comum ouvir os russos dizendo: “Porcos
chineses”. Perceber isso, meio que
desmontava a gente que se perguntava: “Como
um país pode atacar o outro?”
Só não houve uma guerra de
fato porque devem ter avaliado o estrago
que causaria ao mundo socialista. Isto tudo
faz com que a gente perceba que, independente
da ditadura, do socialismo e do capitalismo,
todo ser humano busca uma vida melhor.
Nessa época, eu já estava
tentando voltar para o Brasil. Minha idéia
inicial era passar por treinamento em Cuba
e voltar para o Brasil, para formar o nosso
exército popular. Mas como não
consegui, decidi retornar por conta própria.
Porém, foi a maior dificuldade para
retornar. Tive que ameaçar dizendo
que não ia mais assistir às
aulas, nem nada. Quando cheguei ao aeroporto,
declarei que tinha quinze ou vinte dólares,
uma coisa assim. Quase que os caras do aeroporto
tomam meus dólares. Disseram-me que
não podia voltar com dinheiro. Expliquei
a eles que, quando cheguei, tinha cento
e cinqüenta dólares e esses
vinte dólares era o que tinha restado.
Eles queriam que eu gastasse, mas falei
que se eu gastasse, não teria como
chegar ao Brasil e comprar uma passagem
para minha casa, já que não
tinha mais nada. Então, o burocrata
acabou aceitando. Passei pela Argélia,
pelo Senegal e voltava com a idéia
de que iria encontrar com o pessoal do Marighella
e entrar para ALN. Na minha cabeça,
tudo estava esquematizado: voltaria, encontraria-me-ia
com esse pessoal, faria treinamento e iria
para a guerrilha.
Não tinha contato com o Marighella,
mas com pessoas ligadas a ele aqui no Brasil.
Em Moscou localizei uma pessoa, não
me lembro seu nome agora, que tinha alguma
ligação com a ALN. Li no jornal
cubano do Partido Comunista “O Grama”
um manifesto do Marighella, que não
me lembro bem se era “A guerrilha
é um foco” ou “Documento
do Agrupamento Comunista”. Nesse manifesto,
Marighella falava da coluna guerrilheira.
Aquilo tudo ajudava um pouco. Nós
já tínhamos lido o livro do
Debret, que não nos seduziu muito.
A maneira como falava, a linguagem era muito
bonita, mas aquilo era pouco. Já
Marighella tinha uma coluna guerrilheira,
era uma coisa diferente e ainda dizia que
em breve estaríamos marchando nesse
país e tantas outras coisas…
Ele era uma figura que tinha toda uma história
de luta, quando deputado havia resistido
à prisão, era uma espécie
de herói. Então, eu voltei
ao Brasil com a idéia de entrar para
ALN.
Quando cheguei ao Rio de Janeiro, aconteceu
uma coisa que me impressionou muito. Um
dia, em Kiev, na Ucrânia, apareceu
o cantor Jorge Goulart e a cantora Nora
Ney. Devíamos fazer homenagem permanente
a essas duas figuras. Como sou um cara meio
cansativo, já tentei inúmeras
vezes fazer essa homenagem a eles. Procurei
várias revistas, mas ainda não
consegui. Jorge Goulart e Nora Ney tiveram
um papel importantíssimo na cultura
brasileira, eles eram do partido comunista
e os países socialistas os convidavam
para cantar. Eram fantásticos, divulgavam
nosso carnaval, nossa cultura, para muitos
países. Bem, teve uma festa onde
ele e sua troupe estaria se apresentando
e lá fomos nós para assisti-los.
Cantaram, foi muito bonito. Ele havia levado
mulatas e negros para participarem das apresentações.
Presenciei uma discriminação
“braba”. Um negro, da troupe
do Goulart, não me lembro o nome
da pessoa, veio se queixar comigo. Ele tinha
arrumado uma namorada russa e ela foi impedida
de entrar no hotel para encontrar-se com
ele, mesmo sendo parte do grupo do Jorge
Goulart, que era comunista. Quer dizer,
essa pessoa ficou marcada porque queria
encontrar-se com um estrangeiro e negro.
Voltando à minha chegada ao Rio de
Janeiro, fui à casa de um amigo que
morava pertinho de um lugar que tinha o
Angu do Gomes, em Copacabana. Minha desorganização
era tal que eu não tinha a quem procurar
no Rio. Conhecia duas pessoas e localizei
uma delas. Ele morava em uma quitinete.
Toquei a campainha, quando a porta se abriu,
achei que estava sonhando. Na minha frente
está a “Rolinha”, que
havia visto em Moscou em uma circunstância
bastante inusitada. Estávamos em
um ônibus, lá em Moscou, quando
uma daquelas mulatas bonitas do Goulart
entrou no ônibus e o pessoal foi logo
gritando: “Rolinha!”. Ela, muito
descarada, fazia gestos obscenos e dizia:
“Rolinha tá aqui!”, algo
assim. Todo mundo ria e os russos horrorizados.
Para eles, aquilo era o fim do mundo. Então,
essa figura ficou marcada na minha cabeça
por esse gesto, nada político. Encontrar
essa pessoa na casa desse meu amigo foi
incrível, parecia uma miragem. Ela
só pode ter inventado um namoro com
esse amigo meu, pois não morava na
quitinete com ele. Levei um susto e pensei
o quanto o mundo era imprevisível,
uma coisa muito doida.
Daí, eu volto para o Espírito
Santo, escondido, já com a idéia
de localizar o pessoal da ALN para ir para
a guerrilha. Não passei por Vitória,
porque queriam prender-me. Fui por Valadares,
estive na casa dos meus pais. Meu pai já
numa cama, não se levantava mais.
De lá fui para uma cidade do interior,
depois para o Rio de Janeiro. Lá
encontrei o Apolônio de Carvalho,
que, na época, estava no PCBR e era
o comandante político-militar do
PCBR, depois foi substituído por
outra pessoa. Eu queria ir para a ALN, mas
as pessoas que estavam no Espírito
Santo eram ligadas ao PCBR e não
tinham contato com a ALN. Fui para o Rio
tentar esse contato. Foi quando encontrei
o Apolônio conversamos e o pessoal
do PCBR queria que eu fizesse um curso de
motorista, enquanto tentava o contato com
a ALN. Como havia muitas ações,
o motorista era uma peça muito importante.
Numa operação de assalto a
banco, são duas figuras importantes:
o motorista e o cara que usa a metralhadora.
Antigamente, metralhadora era coisa rara,
hoje você compra na esquina.
Eu queria mesmo era ir para a guerrilha
rural, era o que eu sonhava. Recusei a aprender
a dirigir, porque senti que, se aprendesse,
permaneceria na cidade. Deve ser por isso
que até hoje eu não sei dirigir.
Depois, consegui o contato com a ALN e acabei
indo para o Nordeste, uma história
mais complicada. Fiz levantamentos em regiões
do Nordeste, com a idéia de implantar
a guerrilha.
Qual a idéia que se tinha de guerrilha
no Brasil? A guerrilha rural deveria se
dar num lugar montanhoso, de difícil
acesso para a repressão. A serra
maior era aquela de Ibiapina, e eu, por
meio de mapas, tentava localizar serras
que pudessem abrigar guerrilhas. Andei pelo
Maranhão, Piauí, por lugares
difíceis de se imaginar. Fiz um pequeno
relatório sobre as dificuldades de
encontrar um local que preenchesse os requisitos
para a instalação de guerrilhas.
Cheguei a sugerir que pensássemos
numa guerrilha com outras características.
Percebi que minha sugestão não
foi muito bem aceita. Tinha que encontrar
um local de acordo com os padrões
estabelecidos. Fizemos muito isso, mas a
realidade era outra.
No Maranhão, conviver com o nosso
povo foi um aprendizado importante. Eu passava
nessa região e apresentava-me como
sendo filho de fazendeiro. Meu nome era
Pedro Ramos, vinha de Valadares, queria
comprar terra e fazer criação
de gado. Então, tinha que ter um
discurso bem de acordo, mas como eu era
do campo isso foi fácil. Visitei
uma pessoa em Codó, que era bisneta
de um grande fazendeiro da região.
Codó é considerada a capital
da macumba no Brasil. Creio que, proporcionalmente,
Codó deve ter mais negros do que
Salvador, uma coisa impressionante. A fazenda
dessa pessoa era grande, tinha umas casas
quase caindo. Diziam que antigamente era
a sede da fazenda, onde também ficavam
os escravos. Visitei a plantação
de babaçu, para ver como funcionava.
O valor da propriedade era pelo número
de pessoas que trabalhavam na propriedade,
não era pelo tamanho da terra. Porque,
se eu tenho vinte pessoas morando na minha
propriedade, eu recebo, de todo o babaçu,
a metade. Então, a minha propriedade
vale mais. E aquela outra metade fica com
as famílias que são obrigadas
a vender para o dono da terra. Então,
a bisneta do fazendeiro tinha muitas pessoas
em sua propriedade. Vi as pessoas quebrando
babaçu, muita mulher, mulher é
que sofre mais. Chamou-me a atenção
a presença de um grande número
de negros. Então, eu falei, disse
para ela: “Se eu comprar essa terra,
o que é que eu faço com essas
pessoas? Preciso desocupar isso aqui!”.
Filho de fazendeiro tem que falar assim,
não pode ter bondade com ninguém.
Ela disse: “Isso é fácil”.
Em seguida, chamou um negro, acho que ele
devia ter uns sessenta, setenta anos, forte,
cabeça branca. Negro quando fica
com a cabeça branca já está
com quase cem anos. Eu também sou
descendente de negros. Ele vem e ela pergunta:
“Estou vendendo esta propriedade para
o senhor Pedro Ramos, se ele comprar você
sai logo?”. Ele respondeu: “Saio
sim senhora”. Ele tinha nascido na
propriedade, nasceu na propriedade colhendo
coco e sairia prontamente se eu tivesse
comprado à propriedade. Num primeiro
momento, pensei que aquilo era muita aceitação.
Mas, depois, soube que esses mesmos negros
costumavam pegar uma briga de facão,
amarrando a ponta da camisa um no outro,
às vezes os dois morriam. Uma coragem
que nenhum de nós tem. Se acontecesse
isso comigo, cortaria a camisa e correria.
Então, essa é uma contradição
do ser humano. Se, por um lado, ele aceita
coisas que para nós são inaceitáveis,
por outro, tem uma coragem que não
temos.
Depois de Codó, fui para outros lugares
do Maranhão. Passei por uma cidade
chamada Barra do Corda, que tem uma história
muito interessante, singular. Se eu tivesse
chance de fazer um filme, faria sobre essa
cidade. Quando cheguei a Barra do Corda,
ainda passando por fazendeiro, vi uma coisa
que me impressionou muito. Na fachada da
igreja havia figuras de padres e freiras,
considerados “Mártires de Barra
do Corda”. Contaram-me que, lá
no comecinho do século passado, os
fazendeiros queriam afastar os índios
guajos, guajajaras e os canelas para expandir
a criação de gado. Como não
conseguiam expulsar os índios, principalmente
os canelas, que eram mais guerreiros e resistiam.
Então, os fazendeiros fizeram um
acordo com os padres e freiras para que
as crianças indígenas fossem
levadas e mantidas num convento que havia
na região. Sabendo que o índio
tem um apego à criança, maior
que o nosso, concluíram que os índios
deixariam sua terras para ficar perto dos
filhos. Contam que os índios e suas
mulheres ficavam em volta do convento rezando,
chorando, dançando e clamando pelos
filhos. Lá pelas tantas, houve uma
dissidência. Um índio caboré
se rebela, alguns se juntam a ele e atacam
o convento, matam os padres e as freiras
e soltam as crianças. Policiais de
Teresina e do Maranhão chegam e fazem
um massacre contra esses índios.
Sonho muito em um dia encontrar um material,
que dizem ter sido escrito por alguém,
em uma linguagem simples. O importante é
que existe um registro.
Algum tempo depois, encontro uma pessoa
que apontou para uma pessoa dizendo: “Aquele
lá é um deles”. Era
um índio, um guajajara. Ele estava
de bicicleta e era professor de música.
Fui conversar com ele, apresentando-me como
um fazendeiro interessado em conhecer a
história do lugar. Ele me conta que
ele era neto desse tal Caboré e conta-me
a história toda. Disse-me que tinha
implicância com os católicos.
Ele me levou à aldeia dos Guajos
que viviam numa pobreza absoluta. A FUNAI
os explorava alugando suas terras e, inclusive,
estavam fazendo uma usina nessas terras,
um negócio terrível.
Outra experiência interessante foi
na região de Gilboés, no alto
sertão do Piauí, quase no
fim do mundo. Quando cheguei à cidade,
vi pichado em um muro: “Viva Rev.
Popular”. Meu coração
bateu forte. Tanto o PCdoB como a AP e outras
organizações falavam em revolução
popular. Eu disse para mim mesmo: “Meu
Deus do céu, onde é que eu
me meti? Aqui já deve ter passado
alguém do PCdoB, da AP, fazendo agitação.
Passando por fazendeiro, tenho que tomar
muito cuidado, posso correr risco de vida”.
Havia uns quatro lugares pichados com a
frase “Viva Rev. Popular”. Em
cidade do interior ninguém picha
e, menos ainda, no sertão do Piauí.
Meu coração batia muito aflito,
mas filho de fazendeiro tem que manter uma
certa postura. Cheguei para o dono da pensão
e perguntei: “Quem é que fez
essa sujeira aí?”. Ele então
respondeu: “Não, é porque
expulsaram o padre da cidade e nóis
gosta muito dele”. Para meu alívio,
a frase dizia: “Viva o Reverendo Popular”,
e eu pensando que era “Viva Revolução
Popular”. Só para ver, quando
você está tomado por uma idéia,
vê o que não está escrito
e faz uma outra leitura.
Nesse mesmo lugar, ouvi uma pessoa dizendo
com orgulho: “Aqui é o primeiro
aeroporto do Brasil dirigido por uma mulher”.
De fato quem dirigia o aeroporto era uma
mulher. Quando a região tinha muito
diamante, havia muitos aviões que
pousavam nesse aeroporto. Agora tudo estava
na maior decadência, existia por existir.
Convivendo com esse povo, você vai
aprendendo que a realidade é diferente
daquela que você imaginava. Mas, em
todo caso, você descobre a força
do povo, sua maneira de se organizar, o
orgulho que demonstra por suas coisas. Muitos
contavam que próximo dali passou
o Lampião, mais acima o Luís
Carlos Prestes, e assim por diante. Então,
eles têm memória e também
sonhos. O que acontece é que a realidade
que está na cabeça deles nem
sempre é a mesma que está
em nossa cabeça.
Depois dessas andanças, voltei para
o Pernambuco e acabamos trazendo um grupo
do PCBR para a ALN. Participamos de algumas
ações, mas eu fui preso. Fui
preso por acaso. Eu estava em Olinda, junto
com uma pessoa que veio do Ceará,
queria saber como estava a ALN. Tínhamos
acabado de comer num boteco e eu fui preso
e torturado.
Passei dez anos na cadeia e escrevi um livro
onde falo sobre a vida na cadeia. Cadeia
é cadeia. Na cadeia passei dez anos.
Vi gente chegar preso, vi gente sair e gente
voltar. Na cadeia a gente brigava por questões
de comida, jornal, por tudo. No livro, vou
contando as várias fases, na cadeia
a gente passa por diferentes fases. São
pequenas histórias, histórias
simples. A ditadura também tem suas
fases. Tem aquela fase de plena exceção
e depois a fase mais frouxa, onde se pode
ver a sociedade civil mais atuante, cobrando
mais. Depois já tem gente como o
Lula, Itamar Franco, Teotônio Vilela
nos visitando.
Então, eu passo dez anos preso. É
claro que para uma pessoa condenada a noventa
e quatro anos a prisão é uma
coisa terrível, desmonta muitas coisas
que você imaginava. Mesmo quando se
é movido por um ideal, a gente faz
uma revisão do que aconteceu; “era
assim, não era, devia ser”.
Mas em momento nenhum perdi esse sonho,
mesmo quando condenado a noventa e tantos
anos.
Na
cadeia, o tempo tem uma dimensão
própria. Passar um ano, dois anos,
cada ano na cadeia, cada dia é mais
que uma semana, cada semana é mais
que um mês, cada mês é
mais que um ano. A despeito de todas as
adversidades, a gente não deixava
de cultivar a esperança, se apegava
a alguma coisa distante, como por exemplo,
a idéia de que as ditaduras passarão,
assim como o fascismo passou. Esse tipo
de exercício alimentava, nos dava
esperança. Quando as pessoas deixavam
de intervir nessa realidade dura, perdiam
o sentido da vida. Porque o sentido da vida
foi aquele que nos levou à prisão.
Imagine, eu preso, condenado a noventa e
tantos anos, chegar à conclusão
que nada do que fiz valeu a pena. Se isso
acontecesse, eu me acabava, até fisicamente.
Vi gente acabar fisicamente. Então,
eu alimentava o sonho, acompanhava a guerra
do Vietnã, que era uma coisa importante
para nós. Cada batalha ganha era
como se fosse uma vitória nossa.
Ouvir falar que houve uma manifestação
pequenininha num lugar qualquer, já
era importantíssimo. No jornal, um
bispo qualquer daqueles, ou um intelectual,
falando uma frasezinha suave que hoje em
dia o pessoal ia até rir dela, para
nós soava como uma coisa importantíssima.
Fazíamos denúncia da situação
carcerária, mandávamos mensagens
que, às vezes, eram lidas na escola.
Mas, não no primeiro momento, logo
no comecinho isso não seria possível.
Passei a década de setenta toda na
prisão. Em 1975, 1976, ouvia falar
de protesto, não sei de onde, luta
pela anistia, a gente mandava carta para
todo o mundo. No livro Fome de Liberdade
faço esse relato.
Com as visitas, a gente recebia mais informações
sobre o que estava ocorrendo lá fora
e localizava os fatos importantes, principalmente
para a área de esquerda.
Outra coisa é a família. Li
um livro do Engels, super interessante,
que fala da família, como se ela
fosse se dissolver do dia para noite. A
família é uma estrutura que
vem sofrendo profunda alteração.
Famílias de vinte ou trinta anos
atrás não são iguais
à de hoje. Alterou-se tudo. Hoje
você encontra os mais variados tipos
de família: marido casou com outra,
mulher casou com outro, os filhos com pais
diferentes, só se tem dois filhos,
assim por diante. Então, é
um outro tipo de família, um outro
mundo. Mas, na cadeia, acontece o quê?
Primeira coisa de que você se dá
conta é que a família é
a coisa mais importante que o sujeito tem.
A mãe, o pai, que não têm
ideologia, não têm consciência
de classe, que era tratado como atrasado
e reacionário, é quem vai
atrás do filho. Vai ao quartel, sofre
humilhação, às vezes
numa hora difícil cria coragem para
brigar. Briga, protesta, procura o filho,
exige o corpo da filha, quer saber se o
filho está vivo ou morto, quer visitar
o filho. Quer dizer, a família é
um elemento que é muito fantástico.
É quase que uma descoberta para todos
que estávamos na prisão. Quer
dizer, todo mundo tinha sua relação
familiar. Os meus companheiros ficavam com
medo de ir lá e serem presos. Quem
é que, em nome de uma amizade, vai
lá e afronta um coronel? A mãe
vai. A avó “aquela velhinha,
aquela beata”, que só fica
rezando, vai visitar o netinho dela preso.
Isso não é ideologia, tem
outro substrato, que chamo de “substrato
da solidariedade”. É ela que
leva comida, vai atrás do advogado,
leva uma carta escondida no salto do sapato,
dentro de uma bolsa. Uma bolsa leva tanta
coisa que você nem imagina. Leva uma
carta, um papel, uma informação,
uma notícia lá de fora. Quer
dizer, você começa a descobrir
nessa outra estrutura, que você estava
deixando meio de lado, essa coisa fantástica.
Essa família que, às vezes,
falava “Não vai, não
vai meu filho, você tá errado”,
é que permanecia ao nosso lado, solidária.
Por
pior que seja o pai ou a mãe, eles
são capazes de fazer coisas, que
você não acredita, pelo filho.
E você vai dizendo “Esse cara
não faz nada, é um safado,
bandido, assaltante, ladrão, estuprador”.
Mas, depois você descobre ele carinhosinho
com aquele filhinho no colo, andando. O
ser humano é isso. Nós tratamos
o ser humano de uma maneira muito superficial,
diria até que trabalhamos com um
ser humano fictício. O ser humano
é capaz de grandes atos e de grandes
canalhices. Contam que o Lênin não
gostava muito de ouvir música clássica
porque ele ficava muito sensível
e com vontade de abraçar todo mundo.
Como ele tinha que lembrar que podia levar
uma mordida de alguém, evitava ouvir
música para não amolecer.
A prisão também leva você
a fazer muita reflexão. A prisão
propicia momentos para reflexões
profundas, dolorosas. É um pouco
parecido com o hospital. No hospital, internado,
o doente reflete muito, porque se vê
diante da possibilidade concreta da morte.
Eu me senti assim quando fiquei internado
por um longo período. Um dia desses,
viajei com uma pessoa que me disse que no
convento, também, a gente reflete
muito. Então, são três
os lugares que levam a gente a refletir
muito: a prisão, o hospital e o convento.
A cadeia é onde o ser humano se vê
mais por inteiro, porque na cadeia você
não tem como esconder muita coisa.
Eu até brincava, dizendo que os presos
tinham mais intimidade do que o marido com
a mulher. Marido e mulher se encontram,
vão para a cama, depois a mulher
vai trabalhar em um lugar, ele em outro.
Assim mesmo, brigam de vez em quando, ficam
uma semana sem falar um com o outro. Mas,
na prisão você está
na mesma cela de manhã, de tarde
e de noite. Se eu fizer um ruído
qualquer, o cara já sabe, foi o Cipriano.
Quer dizer, você sabe tudo sobre o
outro, é uma intimidade terrível.
O casal se suporta, porque de vez em quando
vai um para um lado e o outro para o outro,
porque se ficar o dia inteiro junto, não
tem esse negócio de amor. Se ficarem
os dois só no quarto, na primeira
semana vai ser legal, as fantasias e tal…
Na segunda, daqui a um mês os dois
começam a se estranhar e acabam desejando
sumir um do outro. Então, a cadeia
tem essa intimidade que faz com que a pessoa
pense muito. Eu vi pessoas que perderam
o rumo da vida na cadeia. Ali é a
pessoa e a grade. Tem quatro grades, fazer
o quê? Só tem um raiozinho
de sol passando e aquele raiozinho batendo
bem na minha cara. Então, em cada
lugar, a gente tem que ir tirando o que
tem de melhor para ajudar a gente a preservar
a integridade, a humanização.
Todas as vezes o ser humano deixa de se
humanizar, vai se brutalizando e desiste
de lutar mais rápido. Então
na prisão você tem que pensar
muito, vi muita gente que dizia: “Olha,
eu não posso pensar porque senão
o ditador escuta o que eu tô falando”.
Na cadeia, tinha aqueles que se arrependeram
e aqueles que continuavam com disposição
para luta. Quando eu falo de arrependimento,
não é que as pessoas não
possam rever suas vidas. Tem gente que dizia:
“Eu fiz pouco, estou aqui, não
sei se vou sair, mas de qualquer maneira
continuo na luta”. Já o outro
achava que não deveria ter feito
nada, pois, estaria melhor. Esse se espelhava
no irmão que, ao invés de
ir pra luta, foi para os Estados Unidos,
ficou rico, casou, constituiu família,
comprou carro e tem até iate. Ele
fica arrasado, porque estava entre quatro
paredes, não sabia nem o que iria
acontecer quando ele fosse solto. A prisão
obriga a isso, a pensar muito. O ser humano
dialoga consigo mesmo, dá um mergulho
dentro de si mesmo, alguns mais, outros
menos. A verdade é que o ser humano
é insondável. Ninguém
conhece a capacidade de resistência
do ser humano. Nos momentos de grande tensão,
ruptura, você se revela. Covarde fica
forte e forte fica covarde. Acho que muito
do que foi escrito sobre a prisão
é um pouco superficial. Criaram-se
super-homens e super-mulheres. Essa história
de que os presos políticos enfrentavam
seus algozes dizendo: “Não
digo uma palavra, cuspo na cara do torturador”,
é, em parte, um mito. O ser humano
preso vive uma situação de
muita fragilidade. Ao ser preso, o seu algoz
bota suas mão para trás, tira
sua roupa, tortura. O ser humano tem reações
diferentes, por diferentes motivações.
Então, tem aquele cara que diz: “Não
vou falar nada, porque a minha mulher está
grávida e, se entrego, ela pode morrer”.
Mas outro, como o cabo Anselmo, diz: “Eu
denuncio esse povo todo e em função
disso eu me saio bem”. Às vezes
faz isso voluntariamente, sem passar pela
tortura, porque tinha muita gente que se
prestava a passar para o outro lado, sem
levar um tapa sequer.
A tortura é um momento sempre duro,
de grande tensão. Você se pergunta:
“O que vou manter de segredo? Você
não sabe o que o outro sabe. “Conta,
conta, onde é que você tem
que encontrar alguém?”, pergunta
o torturador. Às vezes você
consegue sustentar uma história.
Eu fiquei durante um período sustentando
uma mentira. Inventei que vinha de outro
estado. Interrogavam-me: “Você
está morando aonde?”. Não
podia falar a verdade, então eu respondia:
“Eu estava na zona”. A pessoa
não sustenta aquilo muito tempo.
“Qual zona? Com qual mulher?”
Você começa a ficar apertado,
então você não se sustenta.
Claro que você ganha tempo, pode ser
que as pessoas que estavam no lugar que
o torturador queria saber já tenham
saído, mas isso nem sempre acontece.
Então,
tem as chamadas circunstâncias. Às
vezes a repressão pega uma pessoa
que já está fragilizada e
não tem nada para falar. Está
no mesmo barco da tortura. Em Pernambuco,
quando houve o golpe, prendiam todo mundo.
Lá pelas tantas, prenderam umas pessoas.
Nessas confusões, a polícia
entra numa casa, encontra três pessoas
juntas, mas pode ser que uma delas não
saiba de nada, nem das atividades dos outros.
Houve casos assim. Uma vez, pegaram um cara
nessa situação e bateram nele.
Bateram uma, duas vezes, e o cara não
falava nada. Em um dado momento, o cara
diz para o outro preso: “Fala, pelo
amor de Deus, me fala qualquer coisa, porque
senão eles me matam de bater e eu
não sei de nada”. O cara não
sabia de nada mesmo. Pode ser que um outro,
que se segura durante três horas sob
tortura, chega ao seu limite e acaba falando.
Também pode acontecer que a pessoa
já esteja muito fragilizada, desanimada
da luta, pois, soube que sua mulher foi
torturada até a morte. Sua única
vontade é ir embora e, para isso,
se dispõe a falar. Então,
não se pode analisar essas pessoas,
como é feito até hoje, como
se houvesse um padrão de comportamento
único. Alguns suportam torturas mais
que outros, às vezes, até
por raiva.
O
que acontece? Quando se fala da resistência
ao Golpe, dá a impressão que
só estudante foi corajoso. Não
é assim, porque se você for
uma operária, como é que você
vai justificar sua saída da fábrica,
às duas horas da tarde, para entrar
num quartel ou num banco? Se você
é um estudante, deixar de ir à
aula, não tem tanta implicação.
E fora disso, se sou solteiro, estou disposto
a lutar, posso ir embora. Uma mãe
tem dois filhos, um é solteiro e
revolucionário e o outro é
pai de dois filhos. Esse, não é
mais nem menos corajoso que o outro, mas
tem uma responsabilidade que o outro não
tem. O solteiro pode atender à convocação
repentina de alguém que diz: “Vamos
entrar aqui agora, vai ter uma operação
agora, nós vamos precisar de você,
você é um cara que tem alguma
experiência”. Mas, agora, se
você tem mulher, dois filhos, todos
dependentes seus, não pode simplesmente
dizer: “Eu vou embora pelo mundo e
vocês se virem. Vou para o Maranhão
e fazer aquilo que o Perly fez”. Quem
é que vai cuidar da sua mulher e
filhos? Eu não tinha que pensar nisso,
era sozinho. Davam-me dinheiro para eu comer
e estava acabado. Imagina um professor,
na hora de aula dele, some e vai participar
de uma ação. Como é
que ele explica? Um dia é capaz de
justificar: “Resolvi passar ali, tomar
uma cervejinha com uns amigos num boteco”.
Um dia vai, mas na semana vindoura, menos
de um mês, está descoberto.
Então, a pergunta é: ele tinha
mais ou menos coragem? A questão
não é se tinha mais ou menos
coragem, mas, qual era sua possibilidade
de ir para a luta. Isso ninguém gosta
de tratar. Ninguém virou Mao Tse
Tung por acaso, houve toda uma circunstância,
um fato histórico por trás
disso. A mesma coisa acontece com uma pessoa
que se torna um grande pintor, um grande
músico, ou mesmo um Pelé.
Eu
tenho alguns amigos, uns caras chatos que
chegavam, começavam a analisar conjuntura,
você não agüentava eles.
Depois de algum tempo, encontrei um deles,
que havia sumido, e ele me disse: “Ô,
Cipriano, eu arranjei uma namorada, tô
vivendo um amor, tô fora daquilo”,
meio na defensiva comigo. Então,
eu disse: “Você tá fazendo
a melhor coisa da sua vida, você está
bem consigo mesmo, está apaixonado
e sua contribuição maior é
essa”. Mas na forma defensiva com
que me falou, dava para perceber que ele
já estava impregnado com a idéia
de que só é bom quem estava
na atividade política.
Uma amiga minha, espero encontrá-la
novamente, jovem, simpática, gostava
muito dela, ela acompanhava, participava
dos movimentos, ajudava-me muito, uma figura
muito alegre. Um dia fui ao hospital, levar
uma pessoa que estava doente, e quando eu
estava esperando na fila, vejo uns dois
jovens e um monte de pobres sentados. Os
dois jovens estavam distribuindo pão.
De madrugada, distribuindo pão e
uma xicrinha de café. E quem eu vejo?
Essa amiga minha. Ela me olhou assim, meio
que tentando justificar o que estava fazendo.
Dei um imenso abraço nela, e disse:
“O que você está fazendo
é um dos gestos mais revolucionários”.
Ela foi capaz de um desprendimento pessoal.
Quem é que tem disposição
de sair de madrugada para alimentar os pobres?
Mas, se eu não tiver cuidado, posso
dizer que, o que ela fazia era puro assistencialismo.
Um
dia eu estava numa marcha da Igreja Católica,
chamada de “Romaria da terra”,
conduzida por um padre, o Padre Maurício.
Devia ter umas quatro ou cinco mil pessoas,
homens, mulheres e crianças que rezavam,
uma coisa fantástica. Eu não
era da Igreja, mas eu estava no meio. Estava
lá também um companheiro nosso,
que foi para a Bahia e fez um cursinho do
MST, de uma semana, que comentou: “Alienado!
Povo, parecendo um carneiro!”. A cerimônia
já tinha começado e eu disse
para esse companheiro: “Companheiro,
você leva quantas pessoas para lutar
pela terra? Os padres estão levando
cinco mil. Não interessa se ele está
rezando, se está cantando, isso eu
não quero saber. Essas pessoas se
moveram de suas casas por uma causa fantástica.
Se eu pudesse levar esse povo todo, meu
amigo, eu tenho a impressão que eu
já tinha até tomado o poder”.
Então, eu acho, sempre achei, e estou
cada vez mais convencido de que a gente
precisa trabalhar mais com o ser humano.
Nós trabalhamos muito com o santo,
o herói. Isso torna mais difícil
para o homem e a mulher simples se engajarem
em uma luta. Quem é que vai ser um
Che Guevara? Vai sair da Argentina, passar
lá no México, subir a Sierra
Maestra, virar comandante, ministro, querido,
amado, idolatrado em outro país,
depois larga tudo e morrer na Bolívia,
como um soldado faminto? Não dá
para fazer isso porque existem as circunstâncias.
Mas, se eu me dedicar ao trabalho na universidade,
na escola, na coluna de jornal, na associação
de bairro, também não é
importante?
Quanto
a mim, tenho vários pecados. Nem
sempre falo o que eu penso das pessoas,
porque sei que posso “morder a língua”.
Às vezes, com base em algum comentário
feito por alguém, fazemos afirmações
como: “Essa pessoa não vale
nada, é um picareta”. Depois
você descobre que essa pessoa é
quase um santo. Então, a gente precisa
trabalhar mais com esse dado. Quando se
tem um pouco dessa visão crítica,
a gente tem maiores possibilidades de continuar
na luta. Você tem a história
da instituição, do momento
histórico e, por outro lado, tem
as opções que o indivíduo
faz e que são só dele.
A gente nem sempre leva em conta que as
pessoas são também frutos
das circunstâncias. Se eu não
tivesse saído daquela cidadezinha
do interior para Vitória, por uma
montanha de razões, é bem
provável que eu fosse hoje um pastor
protestante. Digamos que eu não agüentasse
muito a enxada, ser um pastor protestante
talvez fosse uma opção. Quem
disse que eu não podia ser um jagunço?
Na minha região só havia jagunço.
Na região onde eu nasci, jagunço
ia visitar uma pessoa e chegava dizendo
que matou um, matou dois, matou três,
matou por causa de briga de família.
Na época, parecia que eles eram heróis,
quer dizer, um modelo a ser seguido.
Quanto à crise pela qual estamos
passando, como eu já sou mais antigo,
sempre digo que a crise e a purificação
estão sempre juntas, eu acredito
nisso. Todos nós já passamos
por grandes momentos de crise familiar,
pessoal. Depois de uma crise, você
tem dois momentos: ou eu dou uma ajeitada
e continuo a caminhada ou eu me afundo.
Quando vem a crise familiar, a gente pensa
que os conflitos não vão acabar.
Com a crise pessoal ou financeira acontece
a mesma coisa. Então, em relação
à crise do partido, às vezes,
a gente pensa: “Não devia ter
acreditado tanto”. Eu sofri muito
com tudo isso, sofri não, continuo
sofrendo, mas eu tenho uma visão
muito dura para isso que está acontecendo,
porque acho que nós dormimos com
o “ovo da serpente”.
Sonho é uma coisa que deve estar
sempre sendo alimentado. Quando se tem um
ideal, a gente olha para a frente. Acredito
que o sonho é um pouco parecido com
uma estrela. A pessoa está perdida
em alto-mar, olha para uma estrela e vai
remando, seguindo a estrela. Pode ser que
ela o leve a aprofundar-se ainda mais no
alto-mar, mas pode ser também que
o conduza para um porto seguro…
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