Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Perly Quem Sou
 Perly Linha do Tempo
 Perly Textos e Reflexões
 Perly Banco de Dados
 Perly Áudios
 Perly Vídeos
 Perly Imagens
 ES Rede Capixaba DH
 ES Sociedade Civil
 ES Militantes
 ES Mídia
 ES Conselhos Direitos
 ES Executivo
 ES Legislativo
 ES Judiciário
 ES Ministério Público
 ES Linha do Tempo
 ES Memória Histórica
 ES Combatentes Sociais
 ES História do PT
 Rede DHnet
 Rede Brasil
 Redes Estaduais

Militantes Brasileiro(a)s dos  Direitos Humanos
Perly Cipriano

Depoimentos

Depoimento a Marina Kumon – História da Vida Depoimento de Perly Cipriano a Marina Kumon, para sua Tese de Mestrado

 

 

Inicial | Quem Sou | Linha do Tempo Perly | Banco de Dados | Imagens | Áudios | Vídeos | Contatos | Linha do Tempo ES | Memória Histórica Capixaba | Rede Capixaba DH | História PT ES

HISTÓRIAS DE VIDA: HISTÓRIAS DE “AMOR AO MUNDO”
“O centro da política é a preocupação com o mundo e a essência da vocação política é o amor ao mundo” (Hannah Arendt).

4.1. Perly

O sentido da vida foi aquele que nos levou à prisão. Imagine eu preso, condenado a noventa e tantos anos, chegar à conclusão que nada do que fiz valeu a pena. Se isso acontecesse eu me acabava, até fisicamente […]

Nasci em 10 de agosto de 1943, dia de São Lourenço, santo protetor dos queimados. Eu já tive o corpo queimado em 30% e sobrevivi. Acredito que o santo me protegeu.

Nasci em Aimorés, Minas Gerais, com um ano e meio fui para o Espírito Santo. Saí de uma região contestada, fui para uma região do Espírito Santo, Barra do São Francisco, uma região também contestada. De Minas para o Espírito Santo, de família pobre, rurais, ali cresci como outra criança qualquer.

Comecei a estudar com oito anos. Meus pais diziam que era melhor começar um pouco mais tarde, senão podia cansar e desistir. Portanto, estudei em escola pública, Grupo Escolar Gutenberg.

Não tinha nenhuma vontade de ir para escola, nem gostava de ficar na escola, não era um aluno muito esforçado. Sofria muito, achava que a escola me prendia, porque eu vivia solto, solto pelo mundo. E nessa escola, pela primeira vez, apanhei, fiquei de castigo, bolos e palmatória. Meus pais nunca me bateram, minha mãe só me deu três chineladas por erros meus (…) talvez as únicas merecidas. Uma vez a professora praticamente queria me chutar. Eu nunca contava nada em casa, pois meus pais sempre diziam: “Não me traga coisas da rua”. A única coisa que eu tive coragem de contar para o meu pai foi que a professora quis me chutar. Ele era um tropeiro, semi-analfabeto, mas nunca tinha dado-me um cocorote. Ele foi lá na escola, brigou com a professora, brigou com todo mundo e falou que se quisesse que o filho dele aprendesse a dar coice, ele deixava no pasto, com os burros, com os cavalos. Foi uma grosseria dele, mas só hoje entendo que aquela grosseria era alguma coisa até filosófica. Ele não queria que o filho dele apanhasse.

Eu estudei no grupo escolar, depois fui para o Ginásio Independência. Fiz o curso ginasial, que na época durava uns quatro anos. A gente fazia os quatro anos primários e depois ia para um curso de admissão, por dois meses, e só depois fazia o chamado curso ginasial que era de quatro anos. Eu sou da segunda turma desse colégio. Como não tinha mais jeito de continuar os estudos em Aymorés fui para Vitória estudar.

Já tinha as primeiras noções, muito distante, ainda, de política. Meu irmão era um militante comunista. Passava lá em casa de vez em quando e eu o escutava falando sobre política. Meu pai foi do PSD e falava muito que o Brasil precisava de uma guerra civil para acabar com os ladrões. Eu não entendia por que era isso, o que que tinha uma coisa a ver com a outra. O meu irmão, às vezes, lá em casa, sentado jogando cartas com a família, com as pessoas, com os amigos dele, falava do socialismo. Para mim, aquelas conversas não faziam muito sentido. De qualquer forma, foram as primeiras noções de política que meus ouvidos captaram.

A primeira manifestação de consciência política que me lembro, foi uma participação em um protesto lá no Ginásio Independência. Uma área da escola, que ficava bem ao lado do ginásio, era pouco iluminada e os jovens, alguns poucos, mais corajosos, mais aventureiros, às vezes se encostavam por ali e eventualmente se beijavam, o que era coisa rara. Naquele período, até beijar era uma coisa meio de audácia, um ato de coragem. Uma pessoa - não me lembro se era oficial de menor ou juiz de paz - foi ao diretor reclamar que os jovens estavam namorando naquele local. Eu senti indignação. Por conta disso, o diretor resolveu botar mais lâmpadas no local. Ficamos indignados com o diretor e protestamos.

A outra vez que eu senti indignação, imagino que já era um pequeno princípio de consciência, foi com relação a um fato que ocorreu ainda no Ginásio Independência com o professor Célio Magalhães, professor de matemática, muito rígido, e eu tinha uma dificuldade imensa de aprender matemática. Tinha não, continuo tendo. Eu chegava a ter pesadelo quando pensava no Célio, porque ele era disciplinado, rígido. Bom professor de matemática, naquela época, era aquele que fosse mais durão, que ameaçava reprovar a metade da classe. Mas ele era, de fato, um bom professor, eu é que não era um bom aluno. Ele resolveu ser candidato a vereador, pela UDN ou PSD, e o dono do colégio, que era do PTB, o afastou do colégio. Houve uma certa indignação entres os alunos, que protestaram. Participei do protesto, embora tivesse medo do Célio, porque achava que ele era um professor muito rígido. Achava que a atitude do diretor estava errada, mesmo não querendo o Célio como professor. Era uma contradição que já vivia naquela época.

Depois, já no final do curso ginasial, vi passar na minha casa muitas pessoas. Passavam alguns comunistas e eles dormiam lá. Eram viagens longas, ninguém tinha carro próprio. Chegavam de ônibus e alguns a cavalo. E eles dirigiam-se para cidade vizinha de Ecoporanga, onde havia uma grande luta dos posseiros. Inclusive há livros sobre essa região.

A história dessa região começa com a vinda de um beato chamado Udelino, da Bahia. Esse beato lidera um movimento de criação, em torno de Ecoporanga, de um novo Estado brasileiro – o Estado de União de Jeová. Depois a polícia reprime, massacra muita gente. Apesar de existir vários livros sobre a região, esse fato ainda é pouco conhecido. Acho que isso aconteceu em Cotaxé, Distrito de Ecoporanga, região onde viviam esses posseiros que tiveram confrontos com a polícia e que resultou na morte de muita gente.

Posteriormente, já em uma outra etapa, com o avanço da luta, o partido comunista começou a enviar pessoas para lá. Muitas pessoas lá viveram e ajudaram a organizar a resistência. Essas pessoas, para ir a Ecoporanga, passavam pela minha casa e eu acabava ouvindo muitas histórias, alguns falavam sobre a União Soviética, socialismo.

Meu pai era do PSD, mas achava que os comunistas estavam certos. Já em 1959, eu ouvi meu pai dizendo várias vezes: “Precisamos de um Fidel Castro para consertar esse país!”. A visão um pouco simples, mas na cabeça dele, tinha que ter uma revolução civil, uma guerra civil, para consertar o país da ladroagem. Na concepção dele, a ladroagem era o pior dos crimes. Os rurais quase sempre são muito radicais quanto ao roubo. Roubo é roubo de gado, de cavalo. Na cabeça deles roubar era até mais grave que matar. Matar poderia ser por uma briga de família, por desafeto, por vingança. Na minha casa vi passarem muitas pessoas que eram pistoleiros, que diziam: “Eu tive uma briga lá e matei dois em tal lugar”. Para mim, ele havia se vingado do cara que bateu nos pais dele. Eu não estranhava, achava plenamente normal, não achava errado.

Então, eu fui pra Vitória em 1960, mas já tinha alguns contatos. Tinha pouca leitura, pois, no interior não tinha jornal, só se ouvia o noticiário pelo rádio, o que me impressionava muito.

Eu vi quando chegou o primeiro rádio na minha casa. Era imenso, com uma bateria quase do tamanho do rádio, gigantesca. Veio até gente de fora para ver o rádio ser instalado. Tinha-se pouca informação do mundo que ouvíamos pelo rádio. Isso já no final de 1950. Não tinha televisão e o jornal era praticamente inexistente nessa região.

Quando fui para Vitória, em 1960, passo a ter um contato maior com os comunistas. Lá tinha um jornal chamado de “Folha Capixaba” e passei a freqüentar esse jornal que existia legalmente há muitos anos, dirigido por pessoas ligadas ao Partido Comunista Brasileiro, mas não era um jornal do Partido.

Tinha contato com pessoas que haviam passado na minha casa para ir para regiões de conflito. Na minha cidade, Barra de São Francisco, conhecia um vereador comunista, Nelson Fraga, que era farmacêutico e morava no Distrito de Cachoeirinha. Percebia que os comunistas eram pessoas um pouco diferentes dos outros, isso suscitava em mim uma certa curiosidade. Ao mesmo tempo em que tinha essa curiosidade, tinha também um certo pavor. Se hoje as pessoas falam mal dos comunistas, imagine naquele período. O pavor vinha da propaganda disseminada na sociedade de que os comunistas matavam, estupravam, matavam padres e freiras, comiam criancinhas e até faziam igrejas virarem armazéns. Mas, de qualquer maneira, talvez tenha sido esse espírito de contestação dos comunistas que me seduziu, mas sem ter pretensão de querer transformar igreja em armazém…

Apesar de toda essa propaganda contra o comunismo, isso era insuficiente para arrefecer a minha vontade de fazer alguma coisa, embora sem muita consciência. Então, em Vitória, comecei a ter contato, eu ia ao jornal, encontrava algumas dessas pessoas que eu conhecia e passei a ler mais. Lembro-me até hoje do Severino Bezerra, um estudante comunista, de uma família de comunistas e que lia muito, era um grande intelectual. Quando eu o conheci ele já lia muito, para mim era uma das pessoas que mais lia, sobre todas as coisas, ele sabia tudo. Eu ficava muito impressionado com a sua inteligência. Quando ele me chamou para entrar no partido, eu não aceitei.

Em Vitória, estudei no Colégio Americano Batista, no Colégio Estadual e depois fui para o Colégio Salesiano, quando já participava do movimento estudantil. Ajudei a fundar uma entidade – a União Espírito Santense de Estudantes Secundaristas. Existia uma entidade estadual – a União Capixaba dos Estudantes – e nós, por divergência, criamos uma outra entidade. Eu tinha pouco papel nessa entidade, era apenas um bom trabalhador e fazia parte da diretoria. Reconheço que era uma pessoa disposta, ia a todas as reuniões, mas a liderança maior desta entidade era o Leônidas de Souza.

Nesse período, eu já tinha uma noção da luta pelas Reformas de Base, isto é, tinha noção de um outro movimento que não era apenas estudantil. Na minha cabeça, parecia que essas Reformas tinham uma dimensão muito grande. As Reformas de Bases abrangiam a reforma agrária, bancária, urbana, estudantil, etc. Enfim, todas as reformas que ainda hoje são faladas, já naquela época eram discutidas. Tudo me parecia justo e eu sabia exatamente definir bem entre uma reforma e outra.

No Espírito Santo, ajudamos na criação dos sindicatos rurais. Na época, era o Guilherme Ataualpa de Montezuma Breder que estava na Superintendência de Reforma Agrária e foi a principal figura na organização do campesinato capixaba. Então, nós íamos ao interior ajudar a criar os sindicatos rurais. Era difícil explicar para o trabalhador rural qual era o papel do sindicato. Na cidade é mais fácil convencer os trabalhadores a entrarem para um sindicato. Pode-se falar em lutar por aumento de salário, aposentadoria, diminuição de jornada de trabalho, etc. No meio rural não tem nada disso. No Espírito Santo são muitos os pequenos proprietários e meeiros. Por exemplo, falar sobre a greve para esses trabalhadores não tinha sentido. É muito difícil para um meeiro entender o que é uma greve. A metade do café que colhe é dele. Como é que ele vai parar para fazer greve? Só se fizer contra ele mesmo. Depois, com a presença dos trabalhadores rurais e as lutas camponesas, a briga já começava a aparecer no cenário nacional. Começamos então a criação dos sindicatos.

Acompanhei boa parte da criação dos primeiro sindicatos rurais. Tinha uma pessoa, hoje já morto, que se chamava Enéas Pinheiro. Ele era comunista e tinha estado na União Soviética. Ficávamos encantados com ele por isso. Afinal, ir à União Soviética era quase um sonho irrealizável. Eu o acompanhei a vários lugares para criação dos sindicatos dos trabalhadores rurais. Nas reuniões, quando compareciam vinte pessoas a gente ficava numa alegria imensa. Vinte pessoas era muita gente, afinal aquelas pessoas tinham ido ali a despeito do que o padre tinha falado na Igreja Católica, que era muito conservadora. Na criação dos primeiros sindicatos no Espírito Santo, havia mais espíritas e evangélicos que católicos. Os padres eram muito conservadores. Muitos vinham da Espanha, de Portugal e da Itália e faziam uma propaganda intensa contra o comunismo. Os padres recebiam a revista conservadora do IBAD, o Reader’s Digest que era americana, além de outras de orientação anticomunista produzidas por umas agências americanas.

O Enéas Pinheiro, falava para os trabalhadores baseando-se na Bíblia. Como, no passado, ele tinha sido pregador evangélico, além de estar habituado a falar em público, conhecia bem a Bíblia. Então, ele explicava aos trabalhadores um pouco do que era o sindicato e o socialismo, tudo isso através da Bíblia. Eu assistia aquilo, mas não achava aquilo que ele estava achando na Bíblia. De qualquer maneira, era interessante a linguagem usada por ele, porque conseguia, usando passagens da Bíblia, fazer com que os trabalhadores entendessem o que era o socialismo e o sindicato.

Fazer com que os trabalhadores entendessem o papel do sindicato era difícil. Afinal, para criar um sindicato é preciso ter uma sede e para se filiar é preciso pagar. Como justificar uma sede se não havia nenhum grau de organização entre os trabalhadores? Tanto é que, as primeiras sedes eram quase sempre instaladas em uma saletinha pequenininha, cedida por alguém ao sindicato. Mas o que que o trabalhador ia fazer lá? Não tinha carteira assinada de trabalho, portanto, não tinha aposentadoria, não tinha férias e não tinha luta por salário. Meeiro, assim como o proprietário, não tem salário e não tem crédito bancário, o que torna difícil explicar os benefícios da criação de um sindicato.

Muita da atuação do sindicato foi centrada na orientação de como receber do governo benefícios para as famílias, instituído nos anos sessenta. Se uma família tivesse cinco filhos, com menos de doze ou treze anos, podia juntar as certidões de nascimento e dar entrada no cartório para receber uma pequena ajuda. Apesar de ser uma ajuda bem pequena, era muito importante para os trabalhadores uma vez que estes viviam no limite da sobrevivência. Lembro-me que ajudei muitos trabalhadores a dar entrada no pedido de benefícios. Alguns não receberam, havia a suspeita de que o cartório pegava um pouco daquele dinheiro quando chegava. Nunca soube a verdade, não houve uma investigação.

Com a criação dos sindicatos, antes de 1964, começa-se a vislumbrar certo grau de mobilização, incentivado pela Frente de Mobilização. Havia, também, a influência do Grupo dos 11 do Brizola. As pessoas mais esclarecidas, em alguns municípios, estavam ligadas ao Grupo dos 11. Era uma coisa ainda incipiente, mas já se percebia essa outra discussão.

O Partido Comunista também tinha presença no cenário nacional. Atuei no movimento estudantil para entrar no Partido Comunista. Marcamos uma reunião no jornal Folha Capixaba com um dirigente do Partidão. Fui eu, meus primos e uma outra pessoa, mas o dirigente não compareceu à reunião. Fomos lá para sermos “recrutados”, que era a expressão que se usava na época, e o dirigente não estava lá. Lembro-me, até hoje, meus primos dizendo: “Nunca mais quero ver esse pessoal. A gente vem aqui e o cara nem aparece”. Com isso meus primos desistiram, à exceção de um deles. Eu acabei ficando do mesmo jeito, junto com um dos primos e acabamos criando a chamada Base Secundarista. Literalmente, recrutei-me. Achava que era importante e entrei para o partido. Sem muita noção, sem muita compreensão, mas lendo muito. Fiz o cursinho oferecido pelo partido e líamos o material que nos forneciam. O Manifesto Comunista me impressionou muito pela linguagem, pelo texto. Parecia radical e, ao mesmo tempo, romântico. Era isso que me impressionava e atraía. Lia também os romances do povo. O partido tinha uma coleção de livros de muitos intelectuais de esquerda. Li Judeu sem Dinheiro, do Jacques Roumain, do Haiti, Senhor Deus dos Desgraçados, do Gondin da Fonseca, que falava do petróleo. Até hoje me lembro que, muitas vezes, quando eu queria atrair alguém para o partido não começava com um livro marxista. Pegava o livro do Gondin da Fonseca, que falava numa linguagem muito interessante sobre petróleo, riqueza e, sobretudo falava mal dos americanos, principalmente contra o Mr. Link, um americano que fez uma pesquisa no Brasil e que dizia que o Brasil não tinha petróleo. Eu cresci e militei falando mal desse Mr. Link. Falava também do imperialismo e das lutas que se travavam na África, uma coisa importantíssima, a ponto de a União Soviética criar a Universidade Patríce Lumumba.

Nesse período, o que é que ocorre? A nossa cabeça estava ocupada pelas reformas, que era uma coisa ampla, a presença dos trabalhadores rurais, que era uma coisa nova e também pela descoberta desse outro mundo, chamado mundo socialista. Cuba exercia uma influência imensa. A Revolução Cubana havia alfabetizado toda a população, aquilo era uma coisa fantástica para nossa cabeça.

Quando veio o Golpe em 1964, tínhamos montado um grupo para alfabetização de adultos. Nossa idéia era de, voluntariamente, ir para os bairros alfabetizar.

Antes, já tinha exercido, ilegalmente, a profissão de professor. Dei aula na Ilha do Príncipe, em Vitória, na época uma ilha bem pobre. Foi montado um cursinho, uma espécie de cursinho de admissão, onde eu dava aulas, junto com alguns amigos meus. A gente tinha que caminhar muito, ir a pé, voltar. E os alunos eram muito pobres, algumas traziam caixote para assistir às aulas. Acho que eu desisti da condição de professor porque os alunos, por serem pobres, não podiam comprar o caderno. Eu, que já não tinha dinheiro, de vez em quando tinha que comprar um caderno para um aluno. A situação era difícil. A gente deu aula lá por um período, mas eu sonhava com a alfabetização, tal como ocorrera em Cuba.

Cuba tinha uma influência grande. Uma ilha que havia feito uma revolução, isso é uma coisa muito romântica. Nós já tínhamos uma noção desse outro mundo. Havia modelos como Guevara, Fidel Castro, mas também Mao Tsé Tung. A China sempre foi um encanto para todo o mundo, independente do que pensem. A gente também acompanhava os acontecimentos na União Soviética, líamos tudo o que aparecia. Era como se fossem dois mundos divididos e a gente se posicionava em um desses mundos. Nesse período as pessoas procuravam se situar de um lado ou de outro. É como se o mundo tivesse dois pólos. Não digo que todo mundo pensasse assim, mas no caminho que a gente estava seguindo esses pólos existiam. O fato de ter dois pólos facilitava na comparação. Então, a gente falava: “Na Polônia estão produzindo tantos tratores”. “Não sei aonde acabou o analfabetismo”. “Em tal lugar foram produzidas tantas toneladas de trigo”. “Os Estados Unidos ajudou nos golpes militares na América do Sul”. Enfim, você ia fazendo uma contraposição entre um pólo e o outro.

Nesse período, até 1964, havia uma grande mobilização no Brasil, a gente sentia isso. As pessoas falavam mal do Lacerda. Eu lembro que em 1963, quando estudava em um colégio estadual, um grande amigo meu, que era líder da juventude, estava chamando as pessoas para recepcionar o Lacerda. Para mim, comunista, Lacerda era o contraponto do que havia de pior. Era direitista e seu apelido era “o corvo”. Fizemos uma agitação em nossa sala, a confusão foi tanta que acabamos com a mobilização do Lacerda. Acabou porque nós fizemos muita pressão, também promovemos muita discussão. E nesse mesmo período, surgiram notícias que o Lacerda havia matado uns mendigos, que foram jogados no Rio Guandu. Lacerda tinha tomado essas medidas para acabar com as favelas e “limpar a cidade” para os turistas.

Então já havia uma certa efervescência e nos localizávamos no mundo, devido a um certo conhecimento adquirido por meio de leitura e de discussões. A gente se localizava no Espírito Santo, se localizava no contexto do Brasil e se localizava no contexto do mundo. Tínhamos descoberto que o mundo era maior e que fazíamos parte de um projeto.

A nossa percepção, alimentada pelas leituras, era de que o socialismo seria uma coisa inevitável. Diziam que era inexorável. Eu ficava desesperado para entender o sentido dessa palavra. É quase como se você, querendo ou não querendo o socialismo, ele virá. Muito embora tivéssemos a consciência de que precisávamos fazer alguma coisa para que isso acontecesse. Nesse período, a gente sentia que a sociedade civil não era muito forte. A luta das mulheres, dos negros, dos índios, na nossa cabeça, seria mais bem equacionada quando o socialismo chegasse.

Quando veio o Golpe, foi um baque muito grande. Muitos, nem tomaram conhecimento da existência do Golpe, continuaram suas vidas do jeito de sempre. Às vezes, tem-se a impressão que todas as pessoas foram afetadas pelo Golpe, o que não corresponde à realidade. Para uma boa parte da população a vida continuou, dentro da mesma rotina.

A Igreja Católica teve um papel importante na mobilização e na complementação ideológica do Golpe Militar, inclusive junto à classe média promovendo as famosas Marchas da Família.

Naquele momento de grande ruptura, o ser humano continuou vivendo, mas em outras condições. Houve uma mudança profunda. Pessoas que você imaginava que se tornariam grandes diante dessa situação, às vezes desapareciam, reduziam de tamanho e praticamente passavam a justificar o contrário do que defendiam. Outras, que a gente via como apagadas - era a expressão que a gente usava - se tornavam um leão lá na frente. Isso me marcou muito.

Procurava, na minha cabeça, localizar as pessoas que conhecia e tentava pensar o que estaria se passando com elas. Algumas, eu percebia, continuavam no mesmo ritmo. Outros tinham avançado mais, agora estavam com mais fé, com mais fervor, com mais vontade de fazer alguma coisa. Vi gente que falava em dissidência no PCdoB, porque queriam ser mais alto que o PCdoB, isso em 1962. Eu era do Partido Comunista, mas tinha uma boa convivência com o pessoal do PCdoB. Muitos desses que queriam ser mais radicais do que o PCdoB da época, depois foram para a Arena, se beneficiando do governo e justificando essa mudança. Eu vi isso no parlamento, na área sindical e em outras áreas também. Muitas pessoas, que você achava que tinham um ideal, revelaram que esse ideal era, por assim dizer, fluido. Um ideal que no primeiro enfrentamento de fato, mudou. Não sei se poderia chamar isso exatamente de ideal. Outros que não estavam envolvidos na luta descobriram que era preciso resistir.

Com o Golpe, você começa a viver essa nova realidade. Muita gente desanimada e muita gente ressurgindo. Como encontrar um fio para conduzir isso? Para mim não foi muito complicado, porque eu era do Partido Comunista e não saí. Continuei acreditando que era preciso prosseguir, mas houve dissidência no próprio Partido Comunista. Essa dissidência aconteceu porque o Prestes, quinze dias ou um mês antes do Golpe, disse que se os gorilas - que era a expressão que se usava para os golpistas militares - tentassem o Golpe seriam enjaulados. Imagine o Prestes ter afirmado isso, ele era uma figura quase santa para nós.

Estive com ele em uma reunião em 1963, no Rio de Janeiro, representando os estudantes secundaristas capixabas. O mito era e é uma coisa muito forte no Brasil. Numa reunião, ou ativo comunista, como chamavam, que aconteceu em um prédio bem ao lado do famoso Hotel Serrador, que havia pegado fogo, o Prestes apareceu para conversar com a juventude. Nunca fui de pedir autógrafo, acho que foi o primeiro autógrafo que eu pedi na minha vida, até cometendo uma ilegalidade. No local da reunião havia uma bibliotecazinha, pegamos um livro e entregamos ao Prestes para que nos desse seu autógrafo. Portanto, a biblioteca da pessoa que havia emprestado o local foi desfalcada. Já cometemos algum deslize…

Antes do Golpe de 1964, fui participar daquele comício da Central do Brasil. Havia viajado de ônibus do Espírito Santo para o Rio. Os discursos nos deixavam entusiasmados e quando aplaudíamos o discurso de uma pessoa do Partido Comunista, chegam os petroleiros com faixas e tochas acesas. No instante seguinte, vimos tochas incendiando as faixas que caiam na multidão. Eram mais de cem mil pessoas, ou duzentas, não sei ao certo. Houve uma correria tremenda, as pessoas sendo arrastadas, foi um verdadeiro pavor. Foi a primeira vez que senti, no meio da multidão, um pavor assim. Fui arrastado, lembro-me que houve momentos que não sentia meus pés pisando no chão, parecia que eu estava sendo carregado, empurrado. Fiquei impressionado quando vi um carrinho de pipoca todo amassado no chão. É algo assombroso viver um momento como esse. O coração da gente dispara, são momentos que parecem séculos. Então, aquelas pessoas importantes gritavam lá do palanque “calma, calma” até que o tumulto cessou. Quando tudo parou, meu coração batia muito, foi uma sensação terrível. Ser carregado pela multidão é uma coisa assustadora. Eu respirava assim, meio desesperado, mas decidi ficar até o fim do Comício. Localizei uma árvore e pensei: “Eu vou assistir o comício junto a essa árvore. Se houver outro tumulto, vou me abraçar à árvore e ninguém vai me levar nessa onda de pavor”. Quer dizer, eu tinha elaborado toda uma estratégia para me proteger. Quando olho na minha frente, um novo choque. Vi uma senhora, já idosa, cabeça bem branquinha, de costas. Nas costas dessa mulher, tinha várias marcas de sapato. Possivelmente ela deve ter caído e foi pisada durante o tumulto. A despeito de tudo, ela gritava: “Manda brasa, Brizola!”. Ela era uma brizolista. Eu me senti um pouco humilhado. Jovem, eu só estava preocupado com a minha segurança e aquela senhora, embora tenha passado aquele aperto todo, lá estava com todo o seu entusiasmo. Então, a gente vai vendo, sentindo um pouco a dimensão humana. Eu estava com fé, mas estava preocupado em proteger-me, enquanto ela, possivelmente nem se lembrou disso.

No dia do Golpe, eu estava com a cabeça raspada, pois tinha entrado na faculdade de odontologia.

Fizemos a primeira marcha contra o Golpe. Saímos da União Estadual dos Estudantes, a reunião havia sido lá: descemos, percorremos um trecho em direção ao Palácio do Governador, cantamos o Hino Nacional - no meio do caminho esquecemos alguns trechos do hino - carregando uma bandeira e um quadro negro com palavras contra o Golpe. Sempre sonhei em um dia saber quem é que teve essa idéia e de onde apareceu esse quadro.

O Governador Francisco Lacerda Aguiar, conhecido como “Chiquinho”, era uma figura que não se definia, tanto é que as pessoas contavam uma piada em que os militares perguntavam a ele: “De que lado o senhor está, governador?” e ele respondia: “Eu estou do lado da Escola Maria Ortiz.”. Essa escola ficava bem do lado do Palácio… Ficamos em frente à porta do palácio, escolhemos uma comissão, com pessoas de maior representação, para conversar com o governador e eu e outros companheiros permanecemos no portão. Tenho na lembrança uma cena que me assustou muito e que, de vez em quando, vem à minha mente. Os soldados ganhavam muito mal e nós gritávamos: “Soldado é filho do povo, filho de soldado não pode entrar para a universidade”. Falávamos isso porque nós tínhamos tido a oportunidade de entrar na universidade, outros estavam próximos de entrar. Havia um soldado, desses mais antigos, vestindo uma calça cáqui, possivelmente já meio puída até, que respondeu: “Vocês têm razão, mas se mandar atirar, eu atiro”. Ele sabia que nós tínhamos razão, ele tinha consciência que soldado era filho do povo, mas se mandassem atirar ele atiraria. Nós estudantes estávamos vivendo um drama, mas esse soldado também vivia seu drama. Estou falando do drama humano, essa dimensão que é difícil de a gente localizar. Depois, saímos dessa atividade segurando um quadro negro onde estava escrito algo assim: ”O governador está ao lado do povo e contra o golpe”. Mas, já na saída, a polícia nos cercou dizendo: “Deixem esse quadro”, largamos nosso quadro para trás. Eu nunca soube como surgiu esse quadro, tinha vontade de um dia localizar esse quadro que deve ter virado pó…

O governador deu uma declaração de que estava ao lado do povo. Nunca vi alguém se declarar contra o povo. A ditadura dizia que estava com o povo e a favor da legalidade. O Brizola também era pela legalidade, todos estavam pela legalidade. Com a democracia é a mesma coisa. Nunca vi ninguém ser contra a democracia, nem a ditadura. Os militares sempre falavam: “Estamos mantendo o Congresso aberto, nós acreditamos que isso é o valor maior”. Então, o discurso do governador, de que estava ao lado do povo, serviu para o outro dia, quando já tinha praticamente acontecido o Golpe, e apareceu no jornal praticamente dizendo as mesmas palavras.

Então, fiquei na universidade, respondi ao Inquérito Policial Militar (IPM) ainda com a cabeça raspada, muitos professores me questionaram. Esse inquérito era organizado e conduzido por uma comissão de professores. Conversando com alunos de outras faculdades, percebi que em todas as faculdades, sem exceção, havia professores, funcionários e alunos que apoiavam o Golpe. Não só apoiavam, mas se prestavam a delatar. Lembro-me que a gente tinha um ódio muito grande daqueles delatores e suspeitávamos de colegas nossos, de alguns professores e de alguns funcionários.

O curso de odontologia, naquele tempo, tinha uma característica interessante de ser um curso procurado pelos pobres e durava quatro anos. Por coincidência, naquele período fizeram uma lei, que ainda hoje acho que está em vigor, que permitia a quem terminasse o curso de odontologia ingressar no Exército, Marinha, Aeronáutica e no Corpo de Bombeiros, com a patente de tenente. Assim, soldados, cabos e sargentos buscavam os cursos de odontologia para serem promovidos. Nossa faculdade tinha um número imenso de militares. As aulas eram dadas em período mais curto, não era o dia inteiro, o que dava possibilidade para a pessoa estudar e exercer a atividade militar.

Logo depois do Golpe, passados mais ou menos quinze dias, resolvemos fazer uma pichação. Procurei alguém da direção do partido e eles falaram “Não, vocês não devem fazer isso, porque vai chamar a atenção sobre nós”. Acabamos desobedecendo à orientação do partido e fizemos a pichação pouco tempo depois. Você começa a sentir uma certa decepção. Muitos daqueles dirigentes que você conhecia sumiram, evaporaram. Conversei com uma pessoa da direção do partido, do Comitê Central, mas que atuava no Espírito Santo. Era uma figura que havia participado do movimento de 1935, em Natal. Conversei com ele e ele me assegurou: “Esse Golpe não dura seis meses”. Saí de lá animado, afinal ele era uma pessoa da direção e, como tal, deveria ter informações privilegiadas. Só que a ditadura durou muito mais que os seis meses. Sendo uma pessoa digna, decente, imagino que deve ter ouvido esse comentário de alguém e, como eu, acreditou.

Depois do Golpe, começa no partido uma discussão meio sem pé nem cabeça. As antigas orientações deixaram de ter sentido. Nesse clima, começamos a ler material do Marighella, que passou a exercer uma grande influência sobre nós. A sua trajetória pessoal de luta, sua resistência à prisão, certamente nos seduziu. Lembro-me bem que já estavam preparando um congresso e começaram a chegar as teses. As de Marighella, Jacob Gorender e Mário Alves eram as que tinham, mais ou menos, uma formulação mais próxima do nosso grupo. Na época, eles apresentaram um documento chamado de Defesa das teses. Eles só queriam levar aquele único documento para discutir com os comunistas. Só que nós estávamos travando uma luta interna dentro do partido. Chegamos a organizar uma chapa para o sindicato dos metalúrgicos, que era um sindicato importante. Tinha uma chapa mais oficial do Partido Comunista, a nossa - constituída por dissidentes do Partido Comunista - e a do PC do B que era apoiada por um coronel interventor.

No movimento estudantil havia mais comunistas. Eu fazia parte do PCB, mas tinha gente do PC do B, da Ação Popular e da Juventude Universitária Católica. Estive no segundo congresso clandestino da UNE, que não foi aquele de Ibiúna, mas o de Valinhos, se não me engano. Eu fui a esse congresso clandestino, onde devia ter umas mil pessoas. Imagine clandestinidade com mil pessoas… Quando retornamos, eu já havia respondido a um Inquérito Policial Militar na escola, acabei sendo preso. Levaram-me para o Terceiro Batalhão de Caçadores. Fiquei lá três dias, sendo interrogado e com medo que pudesse ocorrer alguma coisa pior.

Nessa ocasião, vi uma coisa que me impressionou muito. Éramos três estudantes de odontologia presos. Na cela ao lado, uma pessoa chorava e eu o chamei: “Companheiro!”. Pensamos que devia ser alguém nosso que estava na cela ao lado. Então, a pessoa deu logo a entender que não era nem comunista, nem subversivo, nem nada. Disse que dera um cheque de valor bem baixinho e, como estava sem fundo, o haviam prendido. Depois, soubemos até que essa pessoa foi maltratada, até torturada. Na realidade, essa pessoa era um empresário que fazia obras para o Governador Chiquinho. Como os militares queriam cassar o Chiquinho, pressionavam o empresário para que confessasse alguma corrupção que comprometesse o governador. Percebi que tinha outro tipo de gente na prisão que não era da luta política.

Dentre nossas atividades, utilizávamos muito os trotes dos calouros para fazer luta política. O refrão da Odontologia era: “Abaixo a dentadura”. Os movimentos sociais e sindicais haviam sofrido um recuo muito grande com a repressão. O Parlamento se dobrou mais facilmente do que se imaginava. Depois participei de uma atividade de estudantes em Niterói e acabei sendo preso novamente. Levaram-me para o DOPS em Niterói. Não sei bem se era DOPS ou uma delegacia. Fiquei preso umas quatro ou cinco horas, fiquei até de madrugada. Apareceu um advogado que me defendeu. Eu nem sei quem é ele, mas devia ser uma figura muito boa. Eu tenho uma imensa gratidão por essa pessoa, não tenho nem como pagar. Comigo estava uma pessoa menos experiente e eu explicava a ele que não tinha que falar nada. Na cela ao lado, apareceu uma pessoa de um país da América Latina, de língua espanhola, que nos dizia: “Sou cubano, estou aqui porque trouxe umas armas, me prenderam e torturaram muito”, mostrando várias marcas pelo corpo. É bem provável que nem fosse cubano e foi preso por algum tipo de ilegalidade. Apesar de ter sido espancado, porque tinha marcas pelo corpo, ele se prestava àquele papel. Possivelmente, essa pessoa não tinha nenhuma identidade política. Comentei com meu colega que aquilo parecia muito estranho. Deveria ser mais um dos ardis da repressão para que falássemos.

Continuamos no Partido Comunista, mas já na luta interna, fazíamos reuniões separadas. Havia pouca atividade no movimento estudantil e o movimento sindical já estava muito fraco, acompanhávamos os acontecimentos, em nível nacional, através de jornais. Eu lembro das matérias do Cony no “Jornal da Manhã”. O jornal “Última Hora” era um dos poucos jornais onde se lia alguma crítica ao governo militar. A mídia, grosso modo, aderiu e ajudou na preparação do Golpe, no sentido preciso. Com a visão de hoje, percebe-se que muitas coisas que eram ditas e faladas não eram nem pedidos a donos dos jornais; eles se prestavam a isso voluntariamente. Então, quando se fala que a mídia sofreu censura, é preciso dizer que isso aconteceu em termos. Boa parte da mídia apoiou franca e abertamente o Golpe Militar. A perseguição era individual. Um ou outro jornalista sofreu perseguição. E muitas pessoas hoje no Brasil ainda confundem muito o que é que é a luta de um jornalista e o que é que é da empresa. É preciso deixar claro que a perseguição não era contra o jornal, era contra a pessoa.

Eu tenho muito medo quando as pessoas criam, isso eu já percebia na época, blocos sagrados. A imprensa e as universidades, como um todo, não foram vítimas da repressão. Alguns membros da universidade e da imprensa é que foram vítimas da repressão. Alguns, inclusive, perderam suas vidas na luta contra a repressão. Não se pode dizer que os reitores, que aplicavam decreto Lei 477, o AI-5 das universidades, foram perseguidos pelo regime militar. Esse resgate da verdade ainda não aconteceu. Devolver a cada um o mérito devido é importante para a memória brasileira.

É importante o registro das histórias individuais, não da instituição, mas dos indivíduos na instituição. Eu conheci uma pessoa no Espírito Santo que era funcionário da universidade: logo depois do Golpe Militar ele já tinha articulado um esquema de informação lá dentro, depois ele virou professor da universidade. Era temido por todos, porque ele delatava, denunciava. Por esta razão, acho que é importante resgatar a história da instituição, mas também das pessoas. Por conta desse funcionário que virou professor, muitos funcionários foram perseguidos. Se não tiver cuidado, esse funcionário, daqui a algum tempo, irá dizer: “Eu também estive contra a ditadura”. Como disse, havia não só funcionários delatores, mas também professores e reitores. Quando fui torturado em Pernambuco, fui torturado por um professor de odontologia que era também coronel e que depois virou reitor.

Por outro lado, quando falamos que apenas um grupo de pessoas foi à luta, isso não quer dizer que alguns estiveram mais à frente e que os outros não estivessem. Até certo ponto, havia muitos que davam uma certa cobertura, mas não se pode dizer que cem por cento das pessoas foram às ruas para protestar. Se em uma manifestação estudantil havia cem pessoas, na universidade havia cinco mil alunos ou muito mais. Pode ser que entre os estudantes que não participavam, havia mais uns mil que gostariam de estar ali, mas a sua própria história pessoal não os levou até lá. Havia pouco conhecimento, havia pouca informação ou a família não permitia que se envolvesse em manifestações. Quer dizer, temos que trabalhar com esse dado, porque, senão a gente cria um padrão, faz o McDonald da esquerda e o McDonald da direita. Não é assim. Eu vi gente que foi de direita e que foi da esquerda, que mudaram de posição. Teotônio Vilela visitou a gente no presídio e falou: “Eu apoiei o Golpe Militar, por convicção, por ideologia e por opção de classe. Hoje sou contra, por convicção, purgando meus pecados”.

Depois desse período da ditadura, quando já tinha sido preso por duas vezes, fui para a União Soviética, onde fiquei por um período de um ano e pouco. Pretendia retornar para entrar na guerrilha, junto com a ALN. Tentei contato com Cuba, com os cubanos, mas nesse período havia uma dificuldade de convivência com a União Soviética. Na Checoslováquia e em outros países do bloco soviético havia grupos de pessoas que estavam indo para a guerrilha, seguindo o exemplo de Cuba. Então, não consegui o que buscava. Fiquei lá, estudei direito internacional por um período. Vi a experiência dos sindicatos socialistas, que eram mais atrelados do que os nossos aqui, porque o sindicato era o instrumento do Estado e do partido. Então, o sindicato falava o que partido queria e não o que os trabalhadores pensavam. Depois, havia uma Federação de mulheres, que estava mais voltada para a defesa do partido e do governo que para a temática da mulher. Assuntos, como a exploração, a dor, a alegria e a sexualidade eram pouco discutidas. As mulheres eram tratadas assim, era como se fossem um exército do “nosso partido glorioso ou o nosso exército fantástico”. O exército era outra instituição sagrada, que exercia um papel muito importante para o fortalecimento do patriotismo na população. Você percebia uma burocracia muito grande, muito forte, muito difícil.

A gente fica um pouco decepcionado, porque as coisas na cabeça da gente eram muito idealizadas. Em 1963 ou 1964, caminhava com um amigo meu, hoje já morto, e que tinha um problema cardíaco. Disse-me um dia: “Estive na União Soviética”. Você tinha o Satanás, que era representado pelos Estados Unidos e você tinha o “Deus”, que era a União Soviética. Parecia que na cabeça da gente havia só dois mundos e nós aqui vivíamos numa espécie de “limbo”. Esse amigo contou-me que havia visitado o Clube de Oficiais em Moscou, a descrição que ele fez desse clube me deixou maravilhado.

Quando eu fui para a União Soviética, a primeira coisa que aconteceu comigo na chegada foi ser preso. Viajei com um passaporte que me levaria à França e de lá para a União Soviética. Na França me deram um visto solto, para não carimbar o passaporte de forma a evitar problemas futuros. Acabei perdendo esse visto, creio que isso aconteceu na entrada do aeroporto, onde embarcaria para Moscou. Matuto como era, não prestei atenção se na alfândega haviam devolvido meu visto. Coloquei o passaporte no bolso e fui embora. Quando chego ao aeroporto de Moscou, cadê meu visto? “Visa, visa”, diziam e eu não entendia nada, pois não falava o russo. Chegou um cara falando em alemão, que eu também não entendia. Então, eles me levaram para uma casa próxima ao aeroporto. Passei três dias numa casa cinzenta e pensei que eu estava preso, praticamente isolado. Via pessoas chegando. Havia uma mulher bem gordona, vestindo roupas pesadas e limpando o assoalho com panos. Essa mulher lavava e falava no corredor e eu sozinho naquele casarão imenso. Depois, localizei nessa casa uma pequena biblioteca. Lá havia livros em espanhol. O mundo é engraçado, você não sabe o que vai encontrar pela frente! Folheando o livro em espanhol - não lembro qual era o assunto, se era poesia, ou história - vi algo escrito em espanhol e fui ver o que é que era. Algum latino que, como eu, fora preso escreveu: “Estive aqui durante vários dias”. Pensei: “Quantos outros não passaram pela mesma situação que eu estou passando?”. Depois de três dias fui solto, imagino que eles devem ter feito contatos e constataram que, de fato, eu estava indo estudar pelo partido, embora a essa altura fizesse parte da dissidência.

A princípio, eu deveria ir para Universidade Patríce Lumumba, mas cheguei atrasado. Fiquei em Moscou um período junto com um grupo de cubanos que bebiam muito e conversavam lorotas. Um dia, um dos cubanos falou comigo: “Vamos lá ao Clube dos Oficiais?”. Então, pensei: “Não é possível, um mortal como eu conhecer o Clube dos Oficiais!” Era aquele mesmo clube que meu amigo havia descrito com tanta grandiosidade. Lá fui com os cubanos conhecer o Clube dos Oficiais. Era um clube grande, com duas ou três pistas de dança, mas não era uma “Brastemp”, como se diz. Concluí que a pessoa que havia me contado sobre o clube não devia ter conhecido nenhum outro clube. Por esta razão, na cabeça dele, esse clube parecia uma coisa gigantesca, que na minha cabeça, ficou maior ainda. Eu também não conhecia muitos clubes, morando em Vitória, mas de qualquer maneira, eu tinha uma idéia através leitura, tinha noção do mundo. São coisas que você vai percebendo no dia-a-dia.

Em Moscou, vi uns quatro jovens cabeludos, carregando algo nas costas, que poderia ser um violão. Na minha cabeça imaginava que não encontraria figuras assim. Os cubanos disseram: “Não, isso aqui é assim mesmo”. “Aqui ficam bêbados e viram hippies”. Os cubanos falavam mal dos russos e da União Soviética. Um deles me disse: “Olha, aqui se você tiver um disco dos Beatles, você fica quase rico”. Os russos queriam um Beatle de qualquer maneira. A proibição de ouvir músicas desse tipo gerava curiosidade nos jovens.

Outro fato que me impressionou, tenho isso na minha cabeça até hoje, foi quando o cubano me convidou para ver o museu do Lênin. Não era ver o museu, mas era ver o Lênin, que era uma espécie de santo para nós. A Igreja Católica tem hierarquias de santos, tem santos mais importantes que outros. Então, o Lênin era aquele santo maior, e eu quase não acreditei que iria vê-lo. Fomos para o museu, havia uma fila enorme, mas como éramos estrangeiros, podíamos passar na frente dos russos, que aceitavam sem reclamar. Lênin era considerado, literalmente, um santo. Lembro-me que, quando vi seu corpo, meu coração bateu forte, foi uma imensa emoção.

Como não tinha havia na Universidade Patríce Lumumba, fui para Kiev, capital da Ucrânia, onde eu fiquei um ano e pouco nessa cidade muito especial. Acho que o ucraniano é o povo, que eu conheço, que mais tem noção de amor à pátria, à terra. Na época, era um país muito camponês, não sei hoje. Mas, quando eles falavam das suas coisas, eu percebia que era mais forte que todos os povos que eu já vi. Tinha também os cubanos que diziam: “é nosso país”, “é nossa pátria”, “é nossa ilha”, “nossa revolução”, “é nosso ideal”. Mas, quando o ucraniano fala da terra, parece que fala da terra no sentido de terra roxa. É algo que eu não vi em lugar nenhum. Você percebia logo que o ucraniano se sentia meio excluído da União Soviética. Chamados de “pequeno russo”, se sentiam ofendidos, pois, isto soava como uma ofensa para eles.

Eu estudava em russo na Ucrânia. Visitei um dia um intelectual lá muito importante. Eu já tinha uma visão crítica, percebia como era a burocracia. Para falar com o professor, você tinha quase que pedir uma audiência. Quem é que trataria o professor de “tu”? Jamais. Era “vós, vós, vós”. Falar com o reitor era impossível. Então, fomos visitar esse intelectual, uma figura nacionalista, possivelmente, com muito prestígio e não sei por que nos levaram lá. Essa pessoa tinha pinturas, tinha tapetes, aquelas coisas belíssimas da Ucrânia. A Ucrânia é muito rica. E quando o intérprete saiu, que era o León, veio uma outra pessoa para conduzir a gente. Percebi que ele, além de nos conduzir, ele também nos acompanhava. Essa figura perguntou: “Vocês acham bonito o meu país?” “Claro, belíssimo! A Ucrânia é belíssima, estamos apaixonados” respondemos. Aí, ele perguntou: “Vocês estudam em que língua?” “Em russo” dissemos. Senti que nossa resposta tinha causado uma certa tristeza a essa pessoa, que devia ser nacionalista. Provavelmente pensou: “Por que não estudam em ucraniano”? Dava para perceber a força do nacionalismo e que o problema maior era das nacionalidades.

Stálin era um ucraniano, mas sufocava qualquer manifestação nacionalista e outros governos que o sucederam também faziam o mesmo. Percebi também que havia poucas instituições da sociedade civil. Uma vez, conversando com uma pessoa, perguntei: “Aqui, por acaso aqui tem homossexuais?”. Tinha uma certa curiosidade, porque havia aprendido, por meio de leituras, que aquilo era uma degeneração burguesa, capitalista. Ele me respondeu: “Aqui não tem, nenhum”. Eu disse: “Nenhum? O país tem 250 milhões de habitantes e não tem uma lésbica, um gay?” A resposta dele era que não tinha mesmo. Então, você vê a força de uma ideologia que impede a pessoa até de pensar por conta própria. Não é que a ideologia não possa ser positiva, mas precisa ter uma visão crítica. A mesma coisa aconteceu na Albânia, que declarou o fim da religião. Quando caíram aquelas pessoas que declararam o fim da religião, e os americanos chegaram, quase metade da Albânia saudou os americanos e a religião voltou a fazer parte da vida deles.

Uma vez estava em companhia do Carlos, daqui do Brasil, que falava bem russo e ucraniano, mas era enrolador, cascateiro e namorador como ninguém. Conversávamos com um russo, que nos disse: “Nossa língua não tem palavrão”. Achei aquilo encantador, o único país do mundo que não tinha palavrões. “Os palavrões que existem vêm do tártaro”, completou o russo. Você imagina, naquele país de 250 milhões, os tártaros que deviam ser uns cem mil, duzentos mil se muito, foram responsáveis pelos palavrões.

Um outro fato que me chamou muito a atenção foi com relação ao Vietnã. Um dia a gente foi fazer um trabalho voluntário, que era mais uma convocatória, pois eles chegavam à universidade e comunicavam: “No dia tal nós vamos trabalhar, arrancar beterraba”. Eram beterrabas enormes, uma coisa gigantesca. Tinha beterraba de mais de dez quilos, usadas para fazer açúcar. Fomos ao campo colher beterrabas para ajudar o Vietnã. Percebi que muitos dos estudantes russos e ucranianos ficavam com uma raiva desgraçada. Alguns diziam: “Por causa desses vietnamitas é que não temos bons sapatos, porque nós temos que ficar ajudando a eles”. Eles estavam em guerra contra os americanos. A gente fazia aquele sacrifício por algumas horas, mas eram eles é que estavam morrendo, portanto, fazendo um sacrifício muito maior. Então, você percebia que havia um certo egoísmo. Isso desmonta, também, um pouco da visão idílica que a gente tinha dessa gente. Então, isso foi uma experiência que permitiu que conhecêssemos um pouco mais os russos. Entretanto, o russo, de um modo geral, é uma figura muito boa. O ucraniano é uma figura impressionante. Você encontra uma pessoa, três minutos depois de conversa, ele já convida para ir à casa dele para comer e beber wodka. Eu não tenho coragem de convidar alguém, que acabei de encontrar na rua, para minha casa, conhecer minha família. Embora o brasileiro seja uma pessoa muito afetiva, também é muito desconfiado.

No período das férias, fui até a Checoslováquia e Alemanha e vi coisas que me impressionaram muito. Na Checoslováquia, conversei com muitos brasileiros que trabalhavam numa rádio, tinham um programa lá. Eles falavam do processo de democratização que estava havendo na Checoslováquia. Havia muita discussão, debates, muita criação artístico-cultural e contestação. Conversei também com alguns checos. Dois deles me impressionaram pelos argumentos que apresentavam. Um deles falou assim: “Nós temos desenvolvimento aqui na Checoslováquia, não é por causa do socialismo, porque antes disso já éramos desenvolvidos”. De fato, a Checoslováquia já tinha um certo grau de desenvolvimento industrial quando os russos chegaram com seus tanques. Ele dizia: “Boa parte do que nós temos aqui devemos ao que já éramos antes e ao nosso trabalho”. “Falam que nós somos trabalhadores, que nós estamos no poder. Aqui estamos no poder, mas preciso de 5 ou 6 anos para comprar um carro. Na Alemanha Ocidental (que era a grande referência para eles), que é capitalista, os trabalhadores não estão no poder, mas com menos de um mês de trabalho compram um carro. Qual é a vantagem do socialismo?”. Eram questionamentos de um operário que fazia suas comparações. Você pode fazer outras, utilizando outros parâmetros, mas o operário fazia a dele, de acordo com seus interesses e necessidades. Talvez isso tenha contribuído bastante para o desmonte do muro de Berlim.

Fomos à Alemanha Oriental, visitamos o muro de Berlim. Estava no coração da Alemanha Oriental. Todo mundo pensava, imaginava que o muro ficasse numa espécie de fronteira, mas localizava-se bem no coração da Alemanha Oriental. Entretanto, acordo de guerra é acordo de guerra, e a Alemanha Ocidental era uma espécie de uma vitrine do capitalismo. Mas não era apenas isso, na Alemanha Oriental a falta de liberdade era sentida por muitos. Dava para sentir o peso do partido, um certo temor do partido, um certo temor da máquina, um certo temor de falar. Isso, também, dava para perceber na União Soviética. Um mês depois, voltei da Alemanha, Checoslováquia e Polônia. Os soviéticos haviam entrado com seus tanques na Checoslováquia. Para justificar essa invasão, jornais soviéticos diziam: “Noventa e tantos comunistas pediram essa intervenção”. Como é possível que noventa e oito pessoas pedem para intervir em nome de toda a população? Que socialismo era aquele? Não havia nenhuma sustentação política ou ideológica que justificasse a invasão. Era apenas para manter o poder. Quer dizer, em nossa cabeça era um pouco assim: “Se o objetivo é implantar o socialismo no mundo, não vai haver guerra, todos os países serão irmãos. A guerra era capitalista, para vender, comprar, criar mercados e escravizar o outro”.

No período em que estava lá, houve choque nas fronteiras da União Soviética com a China. Soube que morreu muita gente, não sei se ocorreu próximo da Mongólia, mas era um lugar desses. Os jornais soviéticos, eu imagino que os chineses também, exaltavam o ódio contra os chineses. Era comum ouvir os russos dizendo: “Porcos chineses”. Perceber isso, meio que desmontava a gente que se perguntava: “Como um país pode atacar o outro?” Só não houve uma guerra de fato porque devem ter avaliado o estrago que causaria ao mundo socialista. Isto tudo faz com que a gente perceba que, independente da ditadura, do socialismo e do capitalismo, todo ser humano busca uma vida melhor.

Nessa época, eu já estava tentando voltar para o Brasil. Minha idéia inicial era passar por treinamento em Cuba e voltar para o Brasil, para formar o nosso exército popular. Mas como não consegui, decidi retornar por conta própria.

Porém, foi a maior dificuldade para retornar. Tive que ameaçar dizendo que não ia mais assistir às aulas, nem nada. Quando cheguei ao aeroporto, declarei que tinha quinze ou vinte dólares, uma coisa assim. Quase que os caras do aeroporto tomam meus dólares. Disseram-me que não podia voltar com dinheiro. Expliquei a eles que, quando cheguei, tinha cento e cinqüenta dólares e esses vinte dólares era o que tinha restado. Eles queriam que eu gastasse, mas falei que se eu gastasse, não teria como chegar ao Brasil e comprar uma passagem para minha casa, já que não tinha mais nada. Então, o burocrata acabou aceitando. Passei pela Argélia, pelo Senegal e voltava com a idéia de que iria encontrar com o pessoal do Marighella e entrar para ALN. Na minha cabeça, tudo estava esquematizado: voltaria, encontraria-me-ia com esse pessoal, faria treinamento e iria para a guerrilha.

Não tinha contato com o Marighella, mas com pessoas ligadas a ele aqui no Brasil. Em Moscou localizei uma pessoa, não me lembro seu nome agora, que tinha alguma ligação com a ALN. Li no jornal cubano do Partido Comunista “O Grama” um manifesto do Marighella, que não me lembro bem se era “A guerrilha é um foco” ou “Documento do Agrupamento Comunista”. Nesse manifesto, Marighella falava da coluna guerrilheira. Aquilo tudo ajudava um pouco. Nós já tínhamos lido o livro do Debret, que não nos seduziu muito. A maneira como falava, a linguagem era muito bonita, mas aquilo era pouco. Já Marighella tinha uma coluna guerrilheira, era uma coisa diferente e ainda dizia que em breve estaríamos marchando nesse país e tantas outras coisas… Ele era uma figura que tinha toda uma história de luta, quando deputado havia resistido à prisão, era uma espécie de herói. Então, eu voltei ao Brasil com a idéia de entrar para ALN.

Quando cheguei ao Rio de Janeiro, aconteceu uma coisa que me impressionou muito. Um dia, em Kiev, na Ucrânia, apareceu o cantor Jorge Goulart e a cantora Nora Ney. Devíamos fazer homenagem permanente a essas duas figuras. Como sou um cara meio cansativo, já tentei inúmeras vezes fazer essa homenagem a eles. Procurei várias revistas, mas ainda não consegui. Jorge Goulart e Nora Ney tiveram um papel importantíssimo na cultura brasileira, eles eram do partido comunista e os países socialistas os convidavam para cantar. Eram fantásticos, divulgavam nosso carnaval, nossa cultura, para muitos países. Bem, teve uma festa onde ele e sua troupe estaria se apresentando e lá fomos nós para assisti-los. Cantaram, foi muito bonito. Ele havia levado mulatas e negros para participarem das apresentações. Presenciei uma discriminação “braba”. Um negro, da troupe do Goulart, não me lembro o nome da pessoa, veio se queixar comigo. Ele tinha arrumado uma namorada russa e ela foi impedida de entrar no hotel para encontrar-se com ele, mesmo sendo parte do grupo do Jorge Goulart, que era comunista. Quer dizer, essa pessoa ficou marcada porque queria encontrar-se com um estrangeiro e negro.

Voltando à minha chegada ao Rio de Janeiro, fui à casa de um amigo que morava pertinho de um lugar que tinha o Angu do Gomes, em Copacabana. Minha desorganização era tal que eu não tinha a quem procurar no Rio. Conhecia duas pessoas e localizei uma delas. Ele morava em uma quitinete. Toquei a campainha, quando a porta se abriu, achei que estava sonhando. Na minha frente está a “Rolinha”, que havia visto em Moscou em uma circunstância bastante inusitada. Estávamos em um ônibus, lá em Moscou, quando uma daquelas mulatas bonitas do Goulart entrou no ônibus e o pessoal foi logo gritando: “Rolinha!”. Ela, muito descarada, fazia gestos obscenos e dizia: “Rolinha tá aqui!”, algo assim. Todo mundo ria e os russos horrorizados. Para eles, aquilo era o fim do mundo. Então, essa figura ficou marcada na minha cabeça por esse gesto, nada político. Encontrar essa pessoa na casa desse meu amigo foi incrível, parecia uma miragem. Ela só pode ter inventado um namoro com esse amigo meu, pois não morava na quitinete com ele. Levei um susto e pensei o quanto o mundo era imprevisível, uma coisa muito doida.

Daí, eu volto para o Espírito Santo, escondido, já com a idéia de localizar o pessoal da ALN para ir para a guerrilha. Não passei por Vitória, porque queriam prender-me. Fui por Valadares, estive na casa dos meus pais. Meu pai já numa cama, não se levantava mais. De lá fui para uma cidade do interior, depois para o Rio de Janeiro. Lá encontrei o Apolônio de Carvalho, que, na época, estava no PCBR e era o comandante político-militar do PCBR, depois foi substituído por outra pessoa. Eu queria ir para a ALN, mas as pessoas que estavam no Espírito Santo eram ligadas ao PCBR e não tinham contato com a ALN. Fui para o Rio tentar esse contato. Foi quando encontrei o Apolônio conversamos e o pessoal do PCBR queria que eu fizesse um curso de motorista, enquanto tentava o contato com a ALN. Como havia muitas ações, o motorista era uma peça muito importante. Numa operação de assalto a banco, são duas figuras importantes: o motorista e o cara que usa a metralhadora. Antigamente, metralhadora era coisa rara, hoje você compra na esquina.

Eu queria mesmo era ir para a guerrilha rural, era o que eu sonhava. Recusei a aprender a dirigir, porque senti que, se aprendesse, permaneceria na cidade. Deve ser por isso que até hoje eu não sei dirigir. Depois, consegui o contato com a ALN e acabei indo para o Nordeste, uma história mais complicada. Fiz levantamentos em regiões do Nordeste, com a idéia de implantar a guerrilha.

Qual a idéia que se tinha de guerrilha no Brasil? A guerrilha rural deveria se dar num lugar montanhoso, de difícil acesso para a repressão. A serra maior era aquela de Ibiapina, e eu, por meio de mapas, tentava localizar serras que pudessem abrigar guerrilhas. Andei pelo Maranhão, Piauí, por lugares difíceis de se imaginar. Fiz um pequeno relatório sobre as dificuldades de encontrar um local que preenchesse os requisitos para a instalação de guerrilhas. Cheguei a sugerir que pensássemos numa guerrilha com outras características. Percebi que minha sugestão não foi muito bem aceita. Tinha que encontrar um local de acordo com os padrões estabelecidos. Fizemos muito isso, mas a realidade era outra.

No Maranhão, conviver com o nosso povo foi um aprendizado importante. Eu passava nessa região e apresentava-me como sendo filho de fazendeiro. Meu nome era Pedro Ramos, vinha de Valadares, queria comprar terra e fazer criação de gado. Então, tinha que ter um discurso bem de acordo, mas como eu era do campo isso foi fácil. Visitei uma pessoa em Codó, que era bisneta de um grande fazendeiro da região. Codó é considerada a capital da macumba no Brasil. Creio que, proporcionalmente, Codó deve ter mais negros do que Salvador, uma coisa impressionante. A fazenda dessa pessoa era grande, tinha umas casas quase caindo. Diziam que antigamente era a sede da fazenda, onde também ficavam os escravos. Visitei a plantação de babaçu, para ver como funcionava. O valor da propriedade era pelo número de pessoas que trabalhavam na propriedade, não era pelo tamanho da terra. Porque, se eu tenho vinte pessoas morando na minha propriedade, eu recebo, de todo o babaçu, a metade. Então, a minha propriedade vale mais. E aquela outra metade fica com as famílias que são obrigadas a vender para o dono da terra. Então, a bisneta do fazendeiro tinha muitas pessoas em sua propriedade. Vi as pessoas quebrando babaçu, muita mulher, mulher é que sofre mais. Chamou-me a atenção a presença de um grande número de negros. Então, eu falei, disse para ela: “Se eu comprar essa terra, o que é que eu faço com essas pessoas? Preciso desocupar isso aqui!”. Filho de fazendeiro tem que falar assim, não pode ter bondade com ninguém. Ela disse: “Isso é fácil”. Em seguida, chamou um negro, acho que ele devia ter uns sessenta, setenta anos, forte, cabeça branca. Negro quando fica com a cabeça branca já está com quase cem anos. Eu também sou descendente de negros. Ele vem e ela pergunta: “Estou vendendo esta propriedade para o senhor Pedro Ramos, se ele comprar você sai logo?”. Ele respondeu: “Saio sim senhora”. Ele tinha nascido na propriedade, nasceu na propriedade colhendo coco e sairia prontamente se eu tivesse comprado à propriedade. Num primeiro momento, pensei que aquilo era muita aceitação. Mas, depois, soube que esses mesmos negros costumavam pegar uma briga de facão, amarrando a ponta da camisa um no outro, às vezes os dois morriam. Uma coragem que nenhum de nós tem. Se acontecesse isso comigo, cortaria a camisa e correria. Então, essa é uma contradição do ser humano. Se, por um lado, ele aceita coisas que para nós são inaceitáveis, por outro, tem uma coragem que não temos.

Depois de Codó, fui para outros lugares do Maranhão. Passei por uma cidade chamada Barra do Corda, que tem uma história muito interessante, singular. Se eu tivesse chance de fazer um filme, faria sobre essa cidade. Quando cheguei a Barra do Corda, ainda passando por fazendeiro, vi uma coisa que me impressionou muito. Na fachada da igreja havia figuras de padres e freiras, considerados “Mártires de Barra do Corda”. Contaram-me que, lá no comecinho do século passado, os fazendeiros queriam afastar os índios guajos, guajajaras e os canelas para expandir a criação de gado. Como não conseguiam expulsar os índios, principalmente os canelas, que eram mais guerreiros e resistiam. Então, os fazendeiros fizeram um acordo com os padres e freiras para que as crianças indígenas fossem levadas e mantidas num convento que havia na região. Sabendo que o índio tem um apego à criança, maior que o nosso, concluíram que os índios deixariam sua terras para ficar perto dos filhos. Contam que os índios e suas mulheres ficavam em volta do convento rezando, chorando, dançando e clamando pelos filhos. Lá pelas tantas, houve uma dissidência. Um índio caboré se rebela, alguns se juntam a ele e atacam o convento, matam os padres e as freiras e soltam as crianças. Policiais de Teresina e do Maranhão chegam e fazem um massacre contra esses índios. Sonho muito em um dia encontrar um material, que dizem ter sido escrito por alguém, em uma linguagem simples. O importante é que existe um registro.

Algum tempo depois, encontro uma pessoa que apontou para uma pessoa dizendo: “Aquele lá é um deles”. Era um índio, um guajajara. Ele estava de bicicleta e era professor de música. Fui conversar com ele, apresentando-me como um fazendeiro interessado em conhecer a história do lugar. Ele me conta que ele era neto desse tal Caboré e conta-me a história toda. Disse-me que tinha implicância com os católicos. Ele me levou à aldeia dos Guajos que viviam numa pobreza absoluta. A FUNAI os explorava alugando suas terras e, inclusive, estavam fazendo uma usina nessas terras, um negócio terrível.

Outra experiência interessante foi na região de Gilboés, no alto sertão do Piauí, quase no fim do mundo. Quando cheguei à cidade, vi pichado em um muro: “Viva Rev. Popular”. Meu coração bateu forte. Tanto o PCdoB como a AP e outras organizações falavam em revolução popular. Eu disse para mim mesmo: “Meu Deus do céu, onde é que eu me meti? Aqui já deve ter passado alguém do PCdoB, da AP, fazendo agitação. Passando por fazendeiro, tenho que tomar muito cuidado, posso correr risco de vida”. Havia uns quatro lugares pichados com a frase “Viva Rev. Popular”. Em cidade do interior ninguém picha e, menos ainda, no sertão do Piauí. Meu coração batia muito aflito, mas filho de fazendeiro tem que manter uma certa postura. Cheguei para o dono da pensão e perguntei: “Quem é que fez essa sujeira aí?”. Ele então respondeu: “Não, é porque expulsaram o padre da cidade e nóis gosta muito dele”. Para meu alívio, a frase dizia: “Viva o Reverendo Popular”, e eu pensando que era “Viva Revolução Popular”. Só para ver, quando você está tomado por uma idéia, vê o que não está escrito e faz uma outra leitura.

Nesse mesmo lugar, ouvi uma pessoa dizendo com orgulho: “Aqui é o primeiro aeroporto do Brasil dirigido por uma mulher”. De fato quem dirigia o aeroporto era uma mulher. Quando a região tinha muito diamante, havia muitos aviões que pousavam nesse aeroporto. Agora tudo estava na maior decadência, existia por existir.

Convivendo com esse povo, você vai aprendendo que a realidade é diferente daquela que você imaginava. Mas, em todo caso, você descobre a força do povo, sua maneira de se organizar, o orgulho que demonstra por suas coisas. Muitos contavam que próximo dali passou o Lampião, mais acima o Luís Carlos Prestes, e assim por diante. Então, eles têm memória e também sonhos. O que acontece é que a realidade que está na cabeça deles nem sempre é a mesma que está em nossa cabeça.

Depois dessas andanças, voltei para o Pernambuco e acabamos trazendo um grupo do PCBR para a ALN. Participamos de algumas ações, mas eu fui preso. Fui preso por acaso. Eu estava em Olinda, junto com uma pessoa que veio do Ceará, queria saber como estava a ALN. Tínhamos acabado de comer num boteco e eu fui preso e torturado.

Passei dez anos na cadeia e escrevi um livro onde falo sobre a vida na cadeia. Cadeia é cadeia. Na cadeia passei dez anos. Vi gente chegar preso, vi gente sair e gente voltar. Na cadeia a gente brigava por questões de comida, jornal, por tudo. No livro, vou contando as várias fases, na cadeia a gente passa por diferentes fases. São pequenas histórias, histórias simples. A ditadura também tem suas fases. Tem aquela fase de plena exceção e depois a fase mais frouxa, onde se pode ver a sociedade civil mais atuante, cobrando mais. Depois já tem gente como o Lula, Itamar Franco, Teotônio Vilela nos visitando.

Então, eu passo dez anos preso. É claro que para uma pessoa condenada a noventa e quatro anos a prisão é uma coisa terrível, desmonta muitas coisas que você imaginava. Mesmo quando se é movido por um ideal, a gente faz uma revisão do que aconteceu; “era assim, não era, devia ser”. Mas em momento nenhum perdi esse sonho, mesmo quando condenado a noventa e tantos anos.

Na cadeia, o tempo tem uma dimensão própria. Passar um ano, dois anos, cada ano na cadeia, cada dia é mais que uma semana, cada semana é mais que um mês, cada mês é mais que um ano. A despeito de todas as adversidades, a gente não deixava de cultivar a esperança, se apegava a alguma coisa distante, como por exemplo, a idéia de que as ditaduras passarão, assim como o fascismo passou. Esse tipo de exercício alimentava, nos dava esperança. Quando as pessoas deixavam de intervir nessa realidade dura, perdiam o sentido da vida. Porque o sentido da vida foi aquele que nos levou à prisão. Imagine, eu preso, condenado a noventa e tantos anos, chegar à conclusão que nada do que fiz valeu a pena. Se isso acontecesse, eu me acabava, até fisicamente. Vi gente acabar fisicamente. Então, eu alimentava o sonho, acompanhava a guerra do Vietnã, que era uma coisa importante para nós. Cada batalha ganha era como se fosse uma vitória nossa. Ouvir falar que houve uma manifestação pequenininha num lugar qualquer, já era importantíssimo. No jornal, um bispo qualquer daqueles, ou um intelectual, falando uma frasezinha suave que hoje em dia o pessoal ia até rir dela, para nós soava como uma coisa importantíssima. Fazíamos denúncia da situação carcerária, mandávamos mensagens que, às vezes, eram lidas na escola. Mas, não no primeiro momento, logo no comecinho isso não seria possível. Passei a década de setenta toda na prisão. Em 1975, 1976, ouvia falar de protesto, não sei de onde, luta pela anistia, a gente mandava carta para todo o mundo. No livro Fome de Liberdade faço esse relato.

Com as visitas, a gente recebia mais informações sobre o que estava ocorrendo lá fora e localizava os fatos importantes, principalmente para a área de esquerda.

Outra coisa é a família. Li um livro do Engels, super interessante, que fala da família, como se ela fosse se dissolver do dia para noite. A família é uma estrutura que vem sofrendo profunda alteração. Famílias de vinte ou trinta anos atrás não são iguais à de hoje. Alterou-se tudo. Hoje você encontra os mais variados tipos de família: marido casou com outra, mulher casou com outro, os filhos com pais diferentes, só se tem dois filhos, assim por diante. Então, é um outro tipo de família, um outro mundo. Mas, na cadeia, acontece o quê? Primeira coisa de que você se dá conta é que a família é a coisa mais importante que o sujeito tem. A mãe, o pai, que não têm ideologia, não têm consciência de classe, que era tratado como atrasado e reacionário, é quem vai atrás do filho. Vai ao quartel, sofre humilhação, às vezes numa hora difícil cria coragem para brigar. Briga, protesta, procura o filho, exige o corpo da filha, quer saber se o filho está vivo ou morto, quer visitar o filho. Quer dizer, a família é um elemento que é muito fantástico. É quase que uma descoberta para todos que estávamos na prisão. Quer dizer, todo mundo tinha sua relação familiar. Os meus companheiros ficavam com medo de ir lá e serem presos. Quem é que, em nome de uma amizade, vai lá e afronta um coronel? A mãe vai. A avó “aquela velhinha, aquela beata”, que só fica rezando, vai visitar o netinho dela preso. Isso não é ideologia, tem outro substrato, que chamo de “substrato da solidariedade”. É ela que leva comida, vai atrás do advogado, leva uma carta escondida no salto do sapato, dentro de uma bolsa. Uma bolsa leva tanta coisa que você nem imagina. Leva uma carta, um papel, uma informação, uma notícia lá de fora. Quer dizer, você começa a descobrir nessa outra estrutura, que você estava deixando meio de lado, essa coisa fantástica. Essa família que, às vezes, falava “Não vai, não vai meu filho, você tá errado”, é que permanecia ao nosso lado, solidária.

Por pior que seja o pai ou a mãe, eles são capazes de fazer coisas, que você não acredita, pelo filho. E você vai dizendo “Esse cara não faz nada, é um safado, bandido, assaltante, ladrão, estuprador”. Mas, depois você descobre ele carinhosinho com aquele filhinho no colo, andando. O ser humano é isso. Nós tratamos o ser humano de uma maneira muito superficial, diria até que trabalhamos com um ser humano fictício. O ser humano é capaz de grandes atos e de grandes canalhices. Contam que o Lênin não gostava muito de ouvir música clássica porque ele ficava muito sensível e com vontade de abraçar todo mundo. Como ele tinha que lembrar que podia levar uma mordida de alguém, evitava ouvir música para não amolecer.

A prisão também leva você a fazer muita reflexão. A prisão propicia momentos para reflexões profundas, dolorosas. É um pouco parecido com o hospital. No hospital, internado, o doente reflete muito, porque se vê diante da possibilidade concreta da morte. Eu me senti assim quando fiquei internado por um longo período. Um dia desses, viajei com uma pessoa que me disse que no convento, também, a gente reflete muito. Então, são três os lugares que levam a gente a refletir muito: a prisão, o hospital e o convento.

A cadeia é onde o ser humano se vê mais por inteiro, porque na cadeia você não tem como esconder muita coisa. Eu até brincava, dizendo que os presos tinham mais intimidade do que o marido com a mulher. Marido e mulher se encontram, vão para a cama, depois a mulher vai trabalhar em um lugar, ele em outro. Assim mesmo, brigam de vez em quando, ficam uma semana sem falar um com o outro. Mas, na prisão você está na mesma cela de manhã, de tarde e de noite. Se eu fizer um ruído qualquer, o cara já sabe, foi o Cipriano. Quer dizer, você sabe tudo sobre o outro, é uma intimidade terrível. O casal se suporta, porque de vez em quando vai um para um lado e o outro para o outro, porque se ficar o dia inteiro junto, não tem esse negócio de amor. Se ficarem os dois só no quarto, na primeira semana vai ser legal, as fantasias e tal… Na segunda, daqui a um mês os dois começam a se estranhar e acabam desejando sumir um do outro. Então, a cadeia tem essa intimidade que faz com que a pessoa pense muito. Eu vi pessoas que perderam o rumo da vida na cadeia. Ali é a pessoa e a grade. Tem quatro grades, fazer o quê? Só tem um raiozinho de sol passando e aquele raiozinho batendo bem na minha cara. Então, em cada lugar, a gente tem que ir tirando o que tem de melhor para ajudar a gente a preservar a integridade, a humanização. Todas as vezes o ser humano deixa de se humanizar, vai se brutalizando e desiste de lutar mais rápido. Então na prisão você tem que pensar muito, vi muita gente que dizia: “Olha, eu não posso pensar porque senão o ditador escuta o que eu tô falando”. Na cadeia, tinha aqueles que se arrependeram e aqueles que continuavam com disposição para luta. Quando eu falo de arrependimento, não é que as pessoas não possam rever suas vidas. Tem gente que dizia: “Eu fiz pouco, estou aqui, não sei se vou sair, mas de qualquer maneira continuo na luta”. Já o outro achava que não deveria ter feito nada, pois, estaria melhor. Esse se espelhava no irmão que, ao invés de ir pra luta, foi para os Estados Unidos, ficou rico, casou, constituiu família, comprou carro e tem até iate. Ele fica arrasado, porque estava entre quatro paredes, não sabia nem o que iria acontecer quando ele fosse solto. A prisão obriga a isso, a pensar muito. O ser humano dialoga consigo mesmo, dá um mergulho dentro de si mesmo, alguns mais, outros menos. A verdade é que o ser humano é insondável. Ninguém conhece a capacidade de resistência do ser humano. Nos momentos de grande tensão, ruptura, você se revela. Covarde fica forte e forte fica covarde. Acho que muito do que foi escrito sobre a prisão é um pouco superficial. Criaram-se super-homens e super-mulheres. Essa história de que os presos políticos enfrentavam seus algozes dizendo: “Não digo uma palavra, cuspo na cara do torturador”, é, em parte, um mito. O ser humano preso vive uma situação de muita fragilidade. Ao ser preso, o seu algoz bota suas mão para trás, tira sua roupa, tortura. O ser humano tem reações diferentes, por diferentes motivações. Então, tem aquele cara que diz: “Não vou falar nada, porque a minha mulher está grávida e, se entrego, ela pode morrer”. Mas outro, como o cabo Anselmo, diz: “Eu denuncio esse povo todo e em função disso eu me saio bem”. Às vezes faz isso voluntariamente, sem passar pela tortura, porque tinha muita gente que se prestava a passar para o outro lado, sem levar um tapa sequer.

A tortura é um momento sempre duro, de grande tensão. Você se pergunta: “O que vou manter de segredo? Você não sabe o que o outro sabe. “Conta, conta, onde é que você tem que encontrar alguém?”, pergunta o torturador. Às vezes você consegue sustentar uma história. Eu fiquei durante um período sustentando uma mentira. Inventei que vinha de outro estado. Interrogavam-me: “Você está morando aonde?”. Não podia falar a verdade, então eu respondia: “Eu estava na zona”. A pessoa não sustenta aquilo muito tempo. “Qual zona? Com qual mulher?” Você começa a ficar apertado, então você não se sustenta. Claro que você ganha tempo, pode ser que as pessoas que estavam no lugar que o torturador queria saber já tenham saído, mas isso nem sempre acontece.

Então, tem as chamadas circunstâncias. Às vezes a repressão pega uma pessoa que já está fragilizada e não tem nada para falar. Está no mesmo barco da tortura. Em Pernambuco, quando houve o golpe, prendiam todo mundo. Lá pelas tantas, prenderam umas pessoas. Nessas confusões, a polícia entra numa casa, encontra três pessoas juntas, mas pode ser que uma delas não saiba de nada, nem das atividades dos outros. Houve casos assim. Uma vez, pegaram um cara nessa situação e bateram nele. Bateram uma, duas vezes, e o cara não falava nada. Em um dado momento, o cara diz para o outro preso: “Fala, pelo amor de Deus, me fala qualquer coisa, porque senão eles me matam de bater e eu não sei de nada”. O cara não sabia de nada mesmo. Pode ser que um outro, que se segura durante três horas sob tortura, chega ao seu limite e acaba falando. Também pode acontecer que a pessoa já esteja muito fragilizada, desanimada da luta, pois, soube que sua mulher foi torturada até a morte. Sua única vontade é ir embora e, para isso, se dispõe a falar. Então, não se pode analisar essas pessoas, como é feito até hoje, como se houvesse um padrão de comportamento único. Alguns suportam torturas mais que outros, às vezes, até por raiva.

O que acontece? Quando se fala da resistência ao Golpe, dá a impressão que só estudante foi corajoso. Não é assim, porque se você for uma operária, como é que você vai justificar sua saída da fábrica, às duas horas da tarde, para entrar num quartel ou num banco? Se você é um estudante, deixar de ir à aula, não tem tanta implicação. E fora disso, se sou solteiro, estou disposto a lutar, posso ir embora. Uma mãe tem dois filhos, um é solteiro e revolucionário e o outro é pai de dois filhos. Esse, não é mais nem menos corajoso que o outro, mas tem uma responsabilidade que o outro não tem. O solteiro pode atender à convocação repentina de alguém que diz: “Vamos entrar aqui agora, vai ter uma operação agora, nós vamos precisar de você, você é um cara que tem alguma experiência”. Mas, agora, se você tem mulher, dois filhos, todos dependentes seus, não pode simplesmente dizer: “Eu vou embora pelo mundo e vocês se virem. Vou para o Maranhão e fazer aquilo que o Perly fez”. Quem é que vai cuidar da sua mulher e filhos? Eu não tinha que pensar nisso, era sozinho. Davam-me dinheiro para eu comer e estava acabado. Imagina um professor, na hora de aula dele, some e vai participar de uma ação. Como é que ele explica? Um dia é capaz de justificar: “Resolvi passar ali, tomar uma cervejinha com uns amigos num boteco”. Um dia vai, mas na semana vindoura, menos de um mês, está descoberto. Então, a pergunta é: ele tinha mais ou menos coragem? A questão não é se tinha mais ou menos coragem, mas, qual era sua possibilidade de ir para a luta. Isso ninguém gosta de tratar. Ninguém virou Mao Tse Tung por acaso, houve toda uma circunstância, um fato histórico por trás disso. A mesma coisa acontece com uma pessoa que se torna um grande pintor, um grande músico, ou mesmo um Pelé.

Eu tenho alguns amigos, uns caras chatos que chegavam, começavam a analisar conjuntura, você não agüentava eles. Depois de algum tempo, encontrei um deles, que havia sumido, e ele me disse: “Ô, Cipriano, eu arranjei uma namorada, tô vivendo um amor, tô fora daquilo”, meio na defensiva comigo. Então, eu disse: “Você tá fazendo a melhor coisa da sua vida, você está bem consigo mesmo, está apaixonado e sua contribuição maior é essa”. Mas na forma defensiva com que me falou, dava para perceber que ele já estava impregnado com a idéia de que só é bom quem estava na atividade política.

Uma amiga minha, espero encontrá-la novamente, jovem, simpática, gostava muito dela, ela acompanhava, participava dos movimentos, ajudava-me muito, uma figura muito alegre. Um dia fui ao hospital, levar uma pessoa que estava doente, e quando eu estava esperando na fila, vejo uns dois jovens e um monte de pobres sentados. Os dois jovens estavam distribuindo pão. De madrugada, distribuindo pão e uma xicrinha de café. E quem eu vejo? Essa amiga minha. Ela me olhou assim, meio que tentando justificar o que estava fazendo. Dei um imenso abraço nela, e disse: “O que você está fazendo é um dos gestos mais revolucionários”. Ela foi capaz de um desprendimento pessoal. Quem é que tem disposição de sair de madrugada para alimentar os pobres? Mas, se eu não tiver cuidado, posso dizer que, o que ela fazia era puro assistencialismo.

Um dia eu estava numa marcha da Igreja Católica, chamada de “Romaria da terra”, conduzida por um padre, o Padre Maurício. Devia ter umas quatro ou cinco mil pessoas, homens, mulheres e crianças que rezavam, uma coisa fantástica. Eu não era da Igreja, mas eu estava no meio. Estava lá também um companheiro nosso, que foi para a Bahia e fez um cursinho do MST, de uma semana, que comentou: “Alienado! Povo, parecendo um carneiro!”. A cerimônia já tinha começado e eu disse para esse companheiro: “Companheiro, você leva quantas pessoas para lutar pela terra? Os padres estão levando cinco mil. Não interessa se ele está rezando, se está cantando, isso eu não quero saber. Essas pessoas se moveram de suas casas por uma causa fantástica. Se eu pudesse levar esse povo todo, meu amigo, eu tenho a impressão que eu já tinha até tomado o poder”.

Então, eu acho, sempre achei, e estou cada vez mais convencido de que a gente precisa trabalhar mais com o ser humano. Nós trabalhamos muito com o santo, o herói. Isso torna mais difícil para o homem e a mulher simples se engajarem em uma luta. Quem é que vai ser um Che Guevara? Vai sair da Argentina, passar lá no México, subir a Sierra Maestra, virar comandante, ministro, querido, amado, idolatrado em outro país, depois larga tudo e morrer na Bolívia, como um soldado faminto? Não dá para fazer isso porque existem as circunstâncias. Mas, se eu me dedicar ao trabalho na universidade, na escola, na coluna de jornal, na associação de bairro, também não é importante?

Quanto a mim, tenho vários pecados. Nem sempre falo o que eu penso das pessoas, porque sei que posso “morder a língua”. Às vezes, com base em algum comentário feito por alguém, fazemos afirmações como: “Essa pessoa não vale nada, é um picareta”. Depois você descobre que essa pessoa é quase um santo. Então, a gente precisa trabalhar mais com esse dado. Quando se tem um pouco dessa visão crítica, a gente tem maiores possibilidades de continuar na luta. Você tem a história da instituição, do momento histórico e, por outro lado, tem as opções que o indivíduo faz e que são só dele.

A gente nem sempre leva em conta que as pessoas são também frutos das circunstâncias. Se eu não tivesse saído daquela cidadezinha do interior para Vitória, por uma montanha de razões, é bem provável que eu fosse hoje um pastor protestante. Digamos que eu não agüentasse muito a enxada, ser um pastor protestante talvez fosse uma opção. Quem disse que eu não podia ser um jagunço? Na minha região só havia jagunço. Na região onde eu nasci, jagunço ia visitar uma pessoa e chegava dizendo que matou um, matou dois, matou três, matou por causa de briga de família. Na época, parecia que eles eram heróis, quer dizer, um modelo a ser seguido.

Quanto à crise pela qual estamos passando, como eu já sou mais antigo, sempre digo que a crise e a purificação estão sempre juntas, eu acredito nisso. Todos nós já passamos por grandes momentos de crise familiar, pessoal. Depois de uma crise, você tem dois momentos: ou eu dou uma ajeitada e continuo a caminhada ou eu me afundo. Quando vem a crise familiar, a gente pensa que os conflitos não vão acabar. Com a crise pessoal ou financeira acontece a mesma coisa. Então, em relação à crise do partido, às vezes, a gente pensa: “Não devia ter acreditado tanto”. Eu sofri muito com tudo isso, sofri não, continuo sofrendo, mas eu tenho uma visão muito dura para isso que está acontecendo, porque acho que nós dormimos com o “ovo da serpente”.

Sonho é uma coisa que deve estar sempre sendo alimentado. Quando se tem um ideal, a gente olha para a frente. Acredito que o sonho é um pouco parecido com uma estrela. A pessoa está perdida em alto-mar, olha para uma estrela e vai remando, seguindo a estrela. Pode ser que ela o leve a aprofundar-se ainda mais no alto-mar, mas pode ser também que o conduza para um porto seguro…

 

Inicial | Quem Sou | Linha do Tempo Perly | Banco de Dados | Imagens | Áudios | Vídeos | Contatos | Linha do Tempo ES | Memória Histórica Capixaba | Rede Capixaba DH | História PT ES

^ Subir

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055-84-3221-5932 / 3211-5428 - Skype: direitoshumanos - dhnet@dhnet.org.br
Google
CEBs Capixaba Educação Popular ES
Notícias de Direitos Humanos
Áudios Perly Cipriano
Vídeos de Perly Cipriano
Bando de Dados de Perly Cipriano
Rede Capixaba de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
Memória Histórica Capixaba
Linha do Tempo Espírito Santo
Linha do Tempo Perly Cipriano
Combatentes Sociais do Espírito Santo
História do PT Espírito Santo
Livros de Perly Cipriano
Banco de Imagens Perly Cipriano
DHnet