Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Moacyr de Góes
DVD Multímidia
Textos
de Moacyr de Góes
Bira e um tempo no qual a indignação era uma
virtude cívica
... e lá fora se falava em liberdade
Ubirajara Macedo, Sebo Vermelho 2001, Prefácio de Moacyr
de Góes
Este é
um livro de punho cerrado no ar, em protesto. É um livro
de ira bíblica. É um livro de vômito e nojo.
É um livro de ironia fia que entreabre os lábios em
sorriso discreto. É um livro de risada aberta, em cascata,
que lembra a gargalhada de nosso comum amigo Luiz Maranhão.
É um livro terno e amoroso, lírico e telúrico.
É um livro de arqueologia, pois traz para a luz do dia expressões
já sepultadas na memória como Bob Fields (Roberto
Campos) e lacaios do imperialismo. É um livro de memórias
e documentos de Ubirajara Macedo- bravo Bira - no qual ele dá
o testemunho de que houve um tempo em que neste país em que
a indignação era uma virtude cívica.
...E LÁ
FORA SE FALAVA EM LIBERDADE é formado de vários módulos-
por isso é um livro múltiplo, calidoscópio,
daí a abordagem que é possível dos mais diversos
ângulos, como foi dito acima.
Os textos falam
de prisões, exílios e perseguições mesquinhas;
de denúncias de pequenos dedos-duros e de grandes vendilhões
da pátria; de questões políticas e do nacionalismo;
de poesia (“Natal que glorificou e foi glorificado por Djalma
Maranhão/Natal que aprendeu a ler mesmo de “pé
no chão”/e que cumpre o seu destino/com a firmeza de
cidade heroica/Natal: 400 anos de lutas, somando mais vitórias
que derrotas”.); de ternura pela mulher amada, Lourdinha;
de carinho pelo Potengi amado, o rio; é um livro musical:
lembra de uma viagem ao interior do Rio de Janeiro quando conheceu
as ruas sonoras da cidade de Conservatória; de comunhão
e fraterna amizade aos companheiros de jornada pelos cárceres
da reação, como gostava de dizer Eurico Reis.
O eixo do livro
é, evidentemente, o Golpe de Estado de 1964. E, curiosamente,
o autor escreve de trás pra frente: primeiro as consequências
e depois as causas de todo um processo político equivocado
que levou o país e seus cidadãos para a margem da
História. Explico: o começo (que está no segundo
bloco), isto é, a causa, está no exercício
do jornalismo exercido por Bira nos anos 50 e 60 no jornal Folha
da Tarde, em Natal. A consequência (que está no primeiro
bloco) é toda a via crucis de prisões, interrogatórios,
exílios – desdobramentos políticos de sua prática
independente de jornalismo. Satisfeita esta minha mania cartesiana
aos fatos.
Na segunda
metade dos anos 50 e primeira dos anos 60 nenhum jornalista de Natal
oi mais corajoso, bravo e provocador do que Bira em sua Coluna Nacionalista
no jornal de Djalma Maranhão. Indignação à
flor da pele, ele denunciou todos os crimes de lesa-pátria
neste país ao mesmo tempo em que defendia uma política
nacionalista para o Brasil. Estudioso, ia ao âmago das questões
e desvelava os porões de políticas miúdas e
graúdas. No livro há uma pequena amostragem disso
e foi muito bom que ele não revisasse, hoje, nenhum texto.
Assim, a Coluna Nacionalista tem cheiro, sabor e cor de uma época.
Se o Brasil ainda hoje se sustenta nas pernas, visível internacionalmente
na sua identificação cultural de povo d de nação,
deve muito a esse tempo de defesa as soberania e do nacionalismo.
As alavancas desse luta são simbolicamente visíveis:
em nível de país por Barbosa Lima Sobrinho (Jornal
do Brasil) e aqui, no Rio Grande do Norte, por Ubirajara Macedo
(Folha da Tarde).
O Golpe de
64, forjado na Guerra Fria e manipulado no Brasil por civis e militares
apátridas e oportunistas (quando não, ignorantes),
não poderia conviver com a escrita de Bira. O arbítrio
começou com sua prisão, já no dia sete de abril,
em dependências de seu outro trabalho, o Departamento de Correios
e Telégrafos, reduto de nacionalistas e covil de dedos-duros.
Por onze meses sofrerá prisão carcerária, transformada
esta em prisão-domiciliar que duraria mais dois anos, com
a obrigação de se apresentar aos quartéis militares,
semanalmente. Nesse meio tempo, por perseguições mesquinhas,
será transferido pelo DCT para São Paulo e depois
para Cáceres, na fronteira da Bolívia. Ainda mais:
foi condenado a um ano de prisão pela 7ª Região
Militar, no Recife, mas, como já tirara cadeia por mais tempo,
foi considerado homem livre pela Ditadura. Essa época de
sombras, esses tempos de chumbo são revelados por Bira no
início do seu livro. Ele não esconde os gemidos dos
torturados nem o riso dos companheiros criado nas celas. Aos primeiros
trata com indignação e ao segundo com afeto. Sua narração
do alto astral dos presos é tão límpida que
ouso dizer que enquanto lá fora predominava a traição
e o medo (e, também, a resistência), entre os presos
políticos era dominante a discussão aberta da história,
de política, de economia, de ética, de cultura, em
aulas e palestras organizadas, nas quais quem sabia alguma coisa
ensinava aos outros. Assim, consequentemente, lá dentro também
se falava em Liberdade...
Nos seis meses
e pouco nos quais vivi a experiência de preso político,
em 1964, seguramente convivi uns cinco meses na mesma cela com Bira,
no 16º RI. Dele tenho as melhores recordações,
apesar das circunstâncias, e dou o testemunho de sua grandeza
humana. Lembro que, muitas vezes, em autodefesa, recitava na memória
(como faço agora) os versos de Bandeira:
Mas, por que
tanto sofrimento,
Se o meu pensamento é livre na noite?
Essa magia
me transportava além das grades e eu vivia, livre, no território
da memória e nos campos de minha utopia, um tempo de libertação
e de afirmação do meu eu. Era um exercício
espiritual. Assim, nas longas noites, convivia com minha mulher
e meus filhos, lia meus livros, sentia o mar, a música e
a presença de amigos, ensinava na minha escola e me juntava
ao meu povo quando idealizava grandes manifestações
políticas de punhos cerrados ao ar, em protesto e em defesa
de justiça e liberdade.E mais: nem só para isso me
serviam os versos de Bandeira. Sobre eles fazia reflexões
críticas. É que sabia, por experiência própria
que, logo pela manhã, aquelas dezenas de homens confinados
naquela cela voltariam a conversar, a discutir, a reafirmar suas
convicções políticas e, então, as grades
estariam superadas. Então, por que tanto sofrimento?
Isso me veio
à memória com a lição que Bira nos dá
em seu livro. Depois de cinco anos de exílio em São
Paulo, já aposentado do DCT, ele volta a Natal e retoma a
pena de jornalista. O tema é o mesmo: a defesa do nacionalismo.
E ganha a medalha Euzébio Rocha, prêmio oferecido à
melhor reportagem sobre a Petrobrás, concorrendo com 22 jornalistas
do país todo. Era ao coroamento à sua fidelidade à
campanha do Petróleo é Nosso, à sua fidelidade
aos ideais políticos de democracia, de soberania e de cidadania.
Prisões, exílios, arbítrio, passaram. Restou
o Homem, intangível. Restou, também, minha pergunta
que é uma corruptela ao verso de Bandeira:
Por que tanto
sofrimento,
Se o homem, como Homem, é indestrutível?
Rio de Janeiro, 13 de maio (viva a Lei Áurea!) de 2001.
Moacyr de Góes
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