Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Acervo Impresso
Moacyr de Góes
De
Pé no Chão: Escola Pública e Educação
Popular
Moacyr de Góes (1)
Seminário Educação e Movimentos Sociais no
Rio Grande do Norte na Década de 60
Natal RN, 25 a 29 de Abril de 1983
A Campanha de Pé no Chão Também se Aprende
a Ler – Mesa Redonda
I
– Introdução
Neste Encontro, o Seminário “Educação
e Movimentos Sociais no Rio Grande do Norte na década de
60” em boa hora promovido pelos Mestrados e Departamentos
de Ciências Sociais e Educação da UFRN, ADURN
e Faculdade de Ciências Sociais da PUC de São Paulo
no qual resgatamos a memória e estudamos os movimentos sociais
do Rio Grande do Norte no início dos anos 60, esta Mesa,
responsável pela comunicação sobre a Campanha
de Pé no Chão também se Aprende a Ler,
divide as suas tarefas da seguinte forma:
O Professor José
Willington Germano, da UFRN, informará a moldura histórica
do período, ressaltando os movimentos de cultura popular
ou de educação popular.
O líder sindical
Pretextato José da Cruz situará as alianças
políticas do período, no Rio Grande do Norte, destacando
o contexto no qual se desenvolveu a proposta política do
Prefeito Djalma Maranhão.
O
Dr. Hélio Xavier de Vasconcelos, da UFRN, falará sobre
o movimento estudantil da época, enfatizando o Centro de
Cultura Popular, ligado ao CPC da UNE, um dos projetos de cultura
popular que, tanto quanto o Movimento de Cultura Popular –
MCP - de Pernambuco, se aproximou bastante da Campanha de Pé
no Chão também se Aprende a Ler.
A
mim caberá, nesta Mesa, a informação sobre
o específico da Campanha, o seu fatual, encerrando com alguns
questionamentos que nos levem – a todos, a reflexão
e ao debate. A projeção do filme que documentou para
o MEC o movimento De Pé no Chão, ajudará
a resgatar o visual do que se perdeu há 19 anos passados.
Estas
são as tarefas com as quais nos apresentamos e que expressam
o melhor ânimo de servir ao Rio Grande do Norte.
II – História Fatual
(2)
1.
DA ORIGEM DO MOVIMENTO
A Campanha de Pé no Chão também se Aprende
a Ler, desenvolvida em Natal, RN, pela Prefeitura Municipal,
de 23 de fevereiro de 1961 a 1º de abril de 1964, nasceu na
burocracia de uma Secretaria de Educação, nem no pedagogismo
de uma sala de aula, nem nos “laboratórios” dos
PHDs.
De
Pé no Chão nasceu nas ruas.
É conseqüência da campanha política de
1960, reivindicada pela população pobre organizada
nos Comitês Nacionalistas-também chamados de Comitês
de Rua ou Comitês Populares, ao lado dos Comitês femininos.
É
portanto, a partir desse marco organizacional que será possível
visibilizar a origem de De Pé no Chão e sua
gestação no bojo do movimento popular de então.
1.1
AS ELEIÇÕES DE 1960, OS COMITÊS E O PROGRAMA
DO CANDITATO A PREFEITO.
A campanha política de 1960 desenvolveu-se num terreno ambíguo
e contraditório. Pairavam sobre todos as sombras da ameaça
do Fundo Monetário Internacional, da inflação
e as lembranças das tentativas de golpe de Estado de 54,
55, 56 e 59.
Enquanto Jânio
visitava Fidel Castro e tinha um discurso terceiro-mundista, Lott
reiterava as posições anticomunistas; não queria
nem saber de reatar relações com a URSS. Jânio
esgrimava de florete, Lott vinha de tacape. A esquerda, no entanto,
dessa vez, não se equivocou. Apontou a candidatura de Lott.
O importante, no momento, era preservar a continuidade das instituições
democráticas e assegurar a defesa das riquezas nacionais.
A História provou que a esquerda estava certa. O que não
quer dizer a campanha tenha sido fácil – tanto é
assim que, no resultado final, Lott não vai chegar nem aos
35% dos votos computados no Brasil.
Em
Natal, a esquerda nacionalista deu vida ao frágil PTB e ao
velho PSD: Lott obteve 65,16% dos votos computados. Jânio,
candidato apoiado pelo Governo de Dinarte Mariz e pela dissidência
udenista de Aluízio Alves, ficou com 27,66% dos votos, e
Adhemar não passou de 7,16%. Aluízio Alves e Djalma
Maranhão vão alcançar 68 e 66% dos votos para
governador do Estado e prefeito de Natal, respectivamente. Uma vitória
inequívoca da coligação oposicionista a nível
do Rio Grande do Norte, respaldando uma posição nacionalista
e popular: para vice-presidente, Jango obtinha 60,75% enquanto Milton
Campos e Ferrari ficavam com 21,95% e 17,29%, respectivamente. Esses
os resultados eleitorais de Natal, em outubro de 1960.
1.1.1. OS COMITÊS
O Partido do candidato
Djalma Maranhão era o PTN, que, em termos de legenda, não
existia. O que existia era uma tendência de oposição
e de esquerda no eleitorado de Natal, que se aglutinava em torno
de Djalma Maranhão. Assim, a organização da
campanha se fez em função dos Comitês Nacionalistas.
Entre janeiro e fins de setembro, foram organizados e funcionaram
240 Comitês Nacionalistas. Esse número ganha maior
expressão quando situado numa cidade de cerca de 160 mil
habitantes, a época, tendo tido um comparecimento eleitoral
de pouco mais de 36 mil votantes. O Comitê era constituído
de uma diretoria com 13 pessoas e um número ilimitado de
membros.
O Jornal “A Folha
da Tarde”, de 19 de janeiro de 1960, noticia a constituição
do Comitê Central, que assumiu a responsabilidade pela campanha
Lott-Jango e Maranhão-Gonzaga, e era integrado dos seguintes
nomes: professores Moacyr de Góes e Luiz Ignácio Maranhão
Filho, Dr. Ticiano Duarte, jornalista Oliveira Júnior, líder
sindical Pretextado José da Cruz e vereadores Helion Ramalho,
Francisco Sales da Cunha, Antonio Cortez e Caubi Barroca.
Em
1960, em Natal, o discurso político muitas vezes nasce de
baixa prá cima, a partir das classes subalternas. Os quadros
políticos que integravam a equipe de Djalma Maranhão
(já aí apoiando para o Governo do Estado Aluízio-Walfredo),
vão levar para os Comitês, que se fundam, principalmente,
na periferia da cidade, a discussão nacional dos problemas
brasileiros (o imperialismo, a dependência político-econômica,
a SUDENE, o latifúndio, a oligarquia, o colonialismo cultural)
e vão receber dos integrantes dos Comitês as lições
das realidades das coisas (a falta de água, de escolas, de
hospitais, de emprego, de transporte, de garantias de direitos,
etc.). Esses dois discursos se somam e, pouco a pouco, vão
constituindo a plataforma política.
Quando, no final da campanha,
os 240 Comitês se reúnem, setorialmente, em Convenções
de Bairros, discutem e aprovam o programa político-administrativo
do futuro Prefeito. Os jornais da época guardam as notícias
dessas Convenções de Bairro, quando foi possível
à população propor e organizar um programa
de governo para o Município. De janeiro, a outubro, profundo
trabalho de conscientização política havia
frutificado. Esse será o programa colocado nas mãos
do Prefeito, diretamente pelo povo, sem eufemismos nem intermediações.
Somente compreendendo
essa ampla e profunda estratégia e tática políticas
é possível entender a construção da
Campanha de Pé no Chão Também se Aprende a
Ler: a reivindicação da escola emerge em todas as
Convenções de Bairros; em geral, encabeçando
as listagens elaboradas a partir dos Comitês.
Assim, quando no início
do ano de 1961 o Secretariado Municipal, presidido pelo Prefeito
Djalma Maranhão, decide definir a educação
e a cultura como a meta número um do Governo, não
está fazendo nada mais nada menos que começar a executar
um programa nascido nos Comitês Nacionalistas, discutido nos
comícios de janeiro a outubro de 1960, homologado pelas Convenções
de Bairros, em setembro, e consagrado pelo eleitorado nas urnas
de 3 de outubro.
Assegurar a escola para
todos era a tarefa. E os meios? Como é possível romper
o ciclo de ferro pauperismo-analfabetismo-pauperismo?
1.1.2. QUE FAZER?
Essa
histórica pergunta é, realmente a indagação
a ser feita, em termos políticos, quando ocorre uma encruzilhada.
Em Natal, em 1961, tivemos o bom senso de respondê-la com
o que nos pareceu a melhor solução:
- Voltar ao povo!
Durante a campanha, o
candidato Djalma Maranhão prometera governar, quando Prefeito,
com os Comitês Nacionalistas. Aí estaria, então,
a oportunidade de voltar ao povo através de seu conduto natural.
Discutir com os propositores da erradicação do analfabetismo
em Natal os meios de fazê-lo. Como o prefeito já definira
um plano-piloto de erradicação do analfabetismo no
bairro proletário das Rocas, reunimo-nos com o principal
Comitê Nacionalista das Rocas para o estudo da questão.
Aqui não há
como fugir a um depoimento pessoal. O documento é meu testemunho
vivo; a lembrança, meu instrumental de trabalho.
De volta aos moradores
das Rocas, representados por sua organização política
mais simples – o Comitê Nacionalista -, expus o problema.
A discussão foi
longa. Por mais de duas horas, ficamos em torno das mesmas questões:
era preciso acabar com o analfabetismo – o povo queria, o
prefeito também. Mas como acabar com o analfabetismo sem
dinheiro para construir escolas?
Não
sei, realmente, de quem veio a proposta, naquela reunião
de 40 a 50 homens e mulheres:
- Faça uma escola de palha!
Confesso que a proposta
me pegou desprevenido. Meus pruridos de pedagogo se arrepiaram.
De palha? . . . E o ambiente escolar, como assegurar a sua sacralidade
em face dos cânones da sã pedagogia? Vivi um conflito.
Mas respeitei as palavras dos companheiros do Comitê.
Aí,
quase que todos começaram a falar ao mesmo tempo: as sugestões
surgiam, uma atrás da outra:
- Um galpão coberto de palha de coqueiro.
- Não precisa fechar os lados, para não escurecer.
- O chão pode ser de barro batido.
- Faça nas Rocas de Cima.
- Não precisa comprar terrenos; constrói num terreno,
nas dunas, onde a Prefeitura diz que vai construir um cemitério,
mas até agora não levantou nem o muro!
A discussão prosseguiu,
animada. No final, os companheiros votaram: o Comitê Nacionalista
das Rocas apoiava o Prefeito Djalma Maranhão na campanha
de erradicação ao analfabetismo e, na falta de recursos
financeiros para construir escolas de alvenaria, propunha que a
Prefeitura ampliasse o programa já existente das escolinhas
e, nas Rocas de Cima, construísse escolas cobertas com palha
de coqueiro.
Comuniquei a proposta
ao Prefeito. Ele aceitou e passou a defender, ardorosamente, a idéia.
No dia 23 de fevereiro de 1961, Djalma Maranhão, pessoalmente,
recrutava alunos para a escola de palha construída nas Rocas
de Cima. Também não sei quem deu o nome que “pegou”:
Acampamento Escolar das Rocas.
O Comitê Nacionalista
das Rocas, segundo jornais da época em depoimento do professor
José Fernandes Machado, foi fundado em 27 de abril de 1960.
Sua diretoria é
predominantemente de modestos funcionários públicos
de uma repartição que, à época, vivia
um intenso processo de politização: o Departamento
de Correios e Telégrafos, o DCT. Apenas um é pedagogo.
Todos são homens comuns, de baixa classe média e de
segmentos do proletariado, o que, aliás, deveria ser um corte
social autêntico do bairro das Rocas – berço
político de Café Filho, como ele mesmo confessa. O
presidente do Comitê era José Fernandes Machado, diácono
da Igreja Presbiteriana Independente, então; repórter,
funcionário público, carteiro (DCT). Instrução:
nível médio.
2.
DA ESPECIFICIDADE DO MOVIMENTO
“. . . o processo
educativo (em Natal) entrara em verdadeiro retrocesso. Vinte anos
atrás funcionavam na cidade 11 Grupos Escolares, hoje reduzidos
a 10. Enquanto isso, a população cresceu, multiplicada
por quatro, aproximadamente. A educação pública
primária passou, assim, por verdadeiro colapso”.
Essa denúncia
da Secretaria Municipal de Educação de Natal, em 1963,
integra a comunicação ao I Congresso Nacional de Alfabetização
e Cultura Popular (Recife) e o documento brasileiro à Conferência
Interamericana de Ministros de Educação (Bogotá).
Esses dois documentos (o primeiro, mais detalhado do que o segundo)
são as fontes primárias pelas quais será possível
reconstruir o fatual da Campanha.
O
índice de analfabetismo na população acima
de 14 anos, o mais alto era o do Nordeste (59,97%) e, em Natal,
o Censo de 1960 revelara a existência de 60.254 analfabetos,
cifra possível de ser decomposta em 35.810 crianças
e 24.444 adultos. Para responder a este desafio foi criado o grupo
de trabalho de Educação Popular para o Planejamento/Execução/Avaliação
de uma política educacional que assegurasse escola para todos.
Este GT da Secretaria Municipal de Educação (que mais
tarde, seria sua espinha dorsal) articulava-se com os Comitês
Nacionalistas e lideranças dos bairros e, inicialmente, em
1961, foi constituído das seguintes pessoas: Omar Fernandes
Pimenta, diretor do Ensino; Ivis Bezerra, presidente da União
Estadual dos Estudantes; Edísio Pereira, presidente do Diretório
Acadêmico de Medicina; Alberto Pinheiro do Medeiros, presidente
do Diretório Acadêmico de Filosofia; professor Severino
Fernandes de Oliveira; diretor do Ginásio Municipal; professoras
Isabel Alves da Rocha e Ilsa Brilhante; Moacyr de Góes, secretário
de Educação.
2.1.
DE PÉ NO CHÃO EM OITO FASES
2.1.1.
AS ESCOLINHAS – A primeira fase do ensino municipal
de alfabetização data da primeira administração
de Djalma Maranhão (1956-1959) e foi retomada logo em 1961,
com o Curso de Emergência preparando um professorado leigo
de 250 monitores. Esta é a fase em que a Prefeitura utiliza
salas cedidas pela comunidade, gratuitamente, e aí instala
uma classe de alfabetização. As despesas da Prefeitura
são: um pequeno pro labore para a monitora; material didático
doado aos alunos; toscas carteiras fabricadas na carpintaria municipal
e utensílios para servir a merenda que é fornecida
pelo UNICEF. Salas, água e energia elétrica são
contribuições de sindicatos, igrejas, clubes, associações
de bairros, de folclore e até residências particulares
e cinemas que abrigam essas classes de alfabetização.
Em
meados de 1963, estão em funcionamento 271 Escolinhas.
2.1.2.
O ACAMPAMENTO ESCOLAR – Esta segunda fase é
a da escola de palha de coqueiro e de chão de barro batido,
identificada como a do Acampamento Escolar – proposta do Comitê
Nacionalista das Rocas. É quando surge, também, a
legenda de Pé no Chão Também se Aprende a Ler.
A
expressão advém de uma reportagem do jornalista Expedito
Silva sobre a democratização do ensino municipal.
Relatando o que vira nas Rocas – a escola de palha de coqueiro
e de chão de barro batido, sem exigências de farda
nem sapatos -, o jornalista escreveu que, agora, em Natal, até
de pé no chão se aprenderia a ler...
O Prefeito Djalma Maranhão
percebeu o apelo da expressão e adotou-a para a Campanha
Municipal de Erradicação do Analfabetismo: ter os
pés no chão significava conhecer a realidade e a dimensão
do desafio.
Um Acampamento Escolar
é integrado de vários galpões de 30m x 8m.
nesse conjunto há, sempre, um galpão circular destinado
às festividades do bairro, às reuniões do círculo
de pais e professores, à recreação infantil,
e funciona como uma espécie de teatro de arena para exibições
de autos folclóricos.
Os galpões destinados
às salas de aulas, em forma retangular, eram divididos internamente
em quatro partes, através de pranchas, utilizadas como quadro-de-giz
e quadro mural. Essas pranchas não atingem o teto nem o solo,
nem fecham lateralmente a classe. Não existindo paredes externas,
também não se colocavam problemas de acústica,
e a visão espacial do recinto escolar/meio ambiente do Acampamento
era total.
As únicas dependências
construídas em alvenaria eram uma pequena sala (que funcionava
como diretoria, secretaria, almoxarifado e local de guarda de caixas
da biblioteca e de utensílios da merenda escolar) e os sanitários.
Hortas, aviários
e parque de recreação compunham, finalmente, a paisagem
do Acampamento Escolar, que regulava os seus horários, liturgicamente,
através de um sino de bronze, e ecologicamente, se harmonizava
com os largos espaços abertos da pequena cidade e com a pobreza
de seus moradores – a quem servia.
Em 1961, construíram-se
dois Acampamentos: os dos bairros de Rocas e de Carrasco. Em 1962,
o número cresceu para nove, situados nos seguintes bairros
periféricos: Quintas, Conceição, Granja, Nova
Descoberta, Nordeste, Aparecida e Igapó. Com os dois anteriores,
cobriam-se os limites da cidade.
O funcionamento se fazia em três turnos.
a) - RH do Acampamento Escolar
A equipe que assegurava
a operacionalização de um Acampamento era integrada
de um diretor (professor titulado pela Escola Normal de Natal e
que acumulava suas funções de gestor administrativo
com as de orientador educacional e supervisor pedagógico);
regentes de classes ou monitoras, em número suficiente ao
atendimento dos três turnos; recreadoras (professoras diplomadas
e recicladas em técnicas de recreação através
dos Cursos de Emergências da Campanha); merendeiras (monitoras
recicladas em nutrição pelos Cursos de Emergências
já referidos, que eram responsáveis, ainda, pela supervisão
de aviários e hortas); secretária do Acampamento,
responsável por tarefas inerentes à função,
acrescidas às de biblioteca, estoque e distribuição
aos alunos do material escolar, guarda e zelo pelo material pedagógico
em geral; serventes e vigias.
A
essa equipe fixa, o Grupo de Trabalho de Educação
Popular, da Diretoria do Ensino, oferecia o apoio necessário
ao seu funcionamento eficiente, como, por exemplo: a pesquisa domiciliar
para o combate à evasão de alunos; os estudos (tabulações
e representações gráficas) do setor de Pesquisas
e Medidas sobre provas e testes aplicados; a dinamização
das bibliotecas e círculos de leitura; a participação
e animação dos círculos de pais e professores.
b) – Política Cultural
Era política expressa da Secretaria Municipal de Educação
vincular o Acampamento às organizações populares
e lideranças culturais mais expressivas do bairro onde se
localizava. Assim, pouco a pouco, surgiam iniciativas comuns entre
o Acampamento das Rocas e a Sociedade Araruna de Danças Antigas;
entre o Acampamento de Aparecida e o fazedor de imagens Chico Santeiro;
entre o Acampamento de Conceição e o Bambelô
Asa Branca; entre o Acampamento do Carrasco e os Congos e/ou o Boi-Calemba.
Fazendo da escola o centro
de desenvolvimento da vida da comunidade, foi fácil trazer
os responsáveis e participantes dos conjuntos folclóricos
para ministrar a recreação infantil, nos Acampamentos,
à base dos autos populares.
Isso
se fazia sem se gastar um tostão, e, principalmente, preservando
a pureza do folclore, que vinha da fonte, diretamente, para o patrimônio
cultural das crianças.
2.1.3. – O ENSINO MÚTUO – A terceira fase
só é compreensível a partir do dado de que
a Campanha já criara um alto clima de mobilização
popular para a erradicação do analfabetismo.
O ano de 1961 foi vivido
sob um clima emocional muito grande, quando a Campanha procurou
ganhar a cidade, mobilizando a opinião publica, a partir
das Rocas.
O ano de 1962 começa
com as classes de aula cheias de alunos, mas – a pesquisa
informa – nas Rocas existe um resíduo de adultos analfabetos
com resistência em ir à escola. Ainda não chegara
a hora do Sistema Paulo Freire, dirigido, especificamente, à
cultura do adulto; nem a Campanha criara, ainda, o seu Livro de
leitura para adultos, que somente seria lançado em abril
de 1963.
Assim, era plenamente
justificado que adultos idosos não aceitassem sentar em bancos
escolares para soletrar “Eva viu a uva”...
a)
– RH do Ensino Mútuo – O desafio então
colocado foi respondido de uma forma até certo ponto ingênua:
se o adulto não quer ir à escola, a escola vai ao
adulto, em sua casa! Como? Os estudantes secundaristas entram em
cena: reduzida equipe, previamente treinada, professores-meninos-voluntários,
indo de casa em casa, de porta em porta, alfabetizavam pequenos
grupos daqueles adultos. Funcionava a escola a domicilio.
Em
1962, 22 núcleos prestaram esse serviço, sob a supervisão
de Antonio Campos e Silva, então concluinte da Faculdade
de Filosofia de Natal.
Dirá Pierre Furter:
“Por falta de monitores e de pessoal qualificado, a Campanha
fez apelo à ajuda voluntária ou pouco remunerada,
e uma vez que isso ainda não era suficiente, muito naturalmente,
chegou-se a introduzir, sem o saber, o método de ensino mútuo
que o padre Girard, há mais de cem anos, havia imaginado
para resolver uma situação igualmente desfavorável”.
A emulação
foi inevitável. A cada resultado da pesquisa, as ruas das
Rocas exibiam faixas em que comunicavam que o índice do resíduo
de analfabetos estava baixando.
As
próprias classes subalternas se convertiam em grupos de pressão,
fazendo da luta pela educação, sua luta.
2.1.4.
– As PRAÇAS DE CULTURA – A quarta fase
é de 1962 e revela, em sua formulação, o intercâmbio
que a Campanha vinha mantendo com o MCP do Recife. Foi no MCP –
administração do Prefeito Miguel Arraes – que
a Secretaria Municipal de Educação do Natal estudou
a proposta recifense das Praças de Cultura. A adaptação
se fez a nível das possibilidades de Natal.
Basicamente, uma Praça
de Cultura, em Natal, era constituída de parque infantil,
quadras de esporte (vôlei, futebol de salão e basquete)
e uma biblioteca.
Em 1962, apesar de 10
praças construídas, somente duas estavam dotadas de
bibliotecas (postos de empréstimo de livros). Em 1963, a
praça principal da cidade foi convertida em Praça
de Cultura, aí já integrada de concha acústica,
biblioteca, discoteca e galeria de arte.
a)
Funcionalidade – o importante numa Praça de
Cultura não é o seu equipamento. É a sua funcionalidade.
Numa Praça de Cultura, é possível um espaço
de conveniência (parque infantil e esporte); fontes de informação
(bibliotecas, jornais murais, exposições de artes
plásticas, etc.) e uma oportunidade para organizar debates
de interesse da comunidade, a partir do discurso político,
quando a quadra de esporte e seus degraus de arquibancadas se convertem
em fórum de discussão dos mais variados temas, com
a participação das organizações do bairro.
A Praça de Cultura
é, em última instância, a complementação
das Escolinhas e dos Acampamentos, que se localizam próximos.
Sua
programação diária era coordenada pela Diretoria
de Documentação e Cultura da Secretaria de Educação
e se encontrava sempre aberta aos interesses da comunidade.
2.1.5.
– O CENTRO DE FORMAÇÃO DE PROFESSORES
– Esta é a quinta fase da Campanha.
O poderoso impulso das
classes subalternas, encontrando um aliado no Governo Djalma Maranhão,
que se oferecia para ser o seu conduto de expressão, criou
uma pressão incontrolável para os quadros dirigentes
e a máquina burocrática da Prefeitura, que não
estavam habituados a tão forte demanda educacional.
A matrícula, de
março a outubro de 1961, crescera em 300%, dobrando, ainda,
em 1962.
O
programa do Prefeito Maranhão não era desaquecer a
Campanha. Nem mesmo estabilizar. A palavra de ordem era ampliar
serviços e aumentar a mobilização. Isso colocava
em risco a qualidade do terreno conquistado, se a Secretaria não
se instrumentalizasse adequadamente. A solução foi
a criação do Centro de Formação de Professores,
no final do 1962, partindo da experiência acumulada da Coordenação
Técnico-Pedagógica, em funcionamento desde outubro
de 1961.
a) Funcionalidade – Confiado à direção
da professora Margarida de Jesus Cortez, o CFP funcionava em três
níveis: a) Curso de Emergência para treinamento de
monitores da Campanha, preparando em três meses, pessoal leigo;
b) Curso Normal de grau ginasial, preparando em quatro anos as regentes
de classes; com ingresso mediante exame de admissão; c) Curso
normal de grau colegial, preparando professores com mais de três
anos de escolaridade.
Ainda era atribuição
do CFP fazer a coordenação técnico-pedagógica
da Campanha e manter uma Escola de Demonstração (de
nível primário) como laboratório.
O CFP desempenhou um
papel de primordial importância em De Pé no Chão.
Na área docente, treinando e reciclando, periodicamente,
professores, monitores e regentes de classes. No campo discente,
assegurando o rendimento da aprendizagem.
Papéis polivalentes
foram desempenhados pelo CFP que, no dizer da época, era
o “cérebro da Campanha”... Em depoimento que
nos prestou Margarida de Jesus Cortez, ela relembra alguns momentos
significativos, entre os quais a experiência de medir o tempo
necessário à alfabetização de crianças
pelo “método analítico ou global”. Duas
classes, no CFP, dirigidas por professoras diplomadas, com curso
de especialização, demonstraram a possibilidade de
alfabetizar crianças sem qualquer vivência de pré-escolar
em menos de nove meses.
Assim,
não era só na área de alfabetização
de adultos que os experimentos eram feitos, objetivando a redução
do tempo de alfabetização, como o Sistema Paulo Freire,
que estava em andamento. Também na alfabetização
infantil se pesquisava e se inovava.
2.1.6. – CAMPANHA DE PÉ NO CHÃO TAMBÉM
SE APRENDE UMA PROFISSÃO – Esta sexta fase é
a evolução da educação acadêmica
para a educação para o trabalho.
Com oito cursos iniciados
em fevereiro de 1963, já em agosto De Pé no Chão
também se Aprende uma Profissão entregava os primeiros
certificados, em número de 148, correspondentes aos seguintes
cursos: corte e costura, enfermagem de urgência, sapataria,
marcenaria, barbearia, datilografia, artesanato e encadernação.
Em
setembro do mesmo ano, 17 cursos estavam em funcionamento, divididos
em três turnos e distribuídos através de cinco
Acampamentos: Rocas – corte e costura, alfaiataria, marcenaria,
sapataria, telegrafia, elementos de eletricidade, barbearia, bordado
a mão; Carrasco – barbearia, corte de cabelo (feminino),
enfermagem de urgência, datilografia, taquigrafia, encadernação
e corte e costura; Nova Descoberta – artesanato, bordado a
máquina, cerâmica e bordado a mão; Nordeste
– corte e costura; Quintas – em fase de instalação.
A nova Campanha se instalava em um dos galpões do Acampamento
da antiga, integrando-se com essa no programa educacional do Município.
Era sua parte complementar. Atendida da criança ao adulto.
E sua matrícula, em setembro de 1963, era de 700 alunos.
a) – Paulo Freire em De Pé no Chão – Nesta
fase, há referências à aplicação
do Sistema Paulo Freire por De Pé no Chão, de acordo
com os documentos referidos.
Se
comparada todavia, com o volume global das duas campanhas, os resultados,
em matrícula, da aplicação do Sistema Paulo
Freire para adultos da Campanha De Pé no Chão Também
se Aprende a Ler, foram relativamente modestos.
Após um curso
de preparação de “animadores”, ministrado
pelo próprio Paulo Freire, em Natal, De Pé no Chão
abriu dois Círculos de Cultura nas Rocas, dois em Nova Descoberta
e um no Carrasco, com um número de classes que não
deve ter excedido a uma dezena.
Nessas
turmas, operavam parte dos melhores quadros técnicos da Campanha,
universitários e secundaristas, bastando citar, como exemplo,
os nomes de José Fernandes Machado e Josemá Azevedo,
presidentes do Comitê Nacionalista das Rocas e do Diretório
Acadêmico de Engenharia, respectivamente.
2.1.7.
– A INTERIORIZAÇÃO DA CAMPANHA –
Esta fase, a sétima, indica que em Natal a Campanha já
estava consolidada e ampliava espaços. É evidente
que os acontecimentos que ocorrem em Natal tendem a ter repercussão
nos demais Municípios do Estado. Principalmente se esses
eventos trazem em si o impacto com que estava sendo colocada a Campanha
e sua proposta de resolver com baixos custos o desafio do ensino
municipal.
Assim, vários
prefeitos do interior se aproximaram do Prefeito de Natal, tentando
um estudo conjunto do problema em suas áreas, ainda mais
carentes do que as da capital do Estado.
Inicialmente, a Secretaria
deslocou equipes do CFP que ministraram Cursos de Emergência
no interior (três semanas). A própria diretora do CFP
participou de algumas dessas missões pedagógicas.
a)
– RH para o interior – Depois, em face da demanda,
abriu-se um programa de bolsas de estudo nos Cursos de Emergência
de preparação de monitores da Campanha no próprio
Centro de Formação de Professores. Assim, junto às
natalenses, algumas dezenas de moças do interior do Estado
se preparavam para o exercício do magistério leigo,
em suas cidades de origem.
Avaliando esse programa como insuficiente, o Centro de Formação
de Professores passou a prestar assistência técnico-pedagógica
in loco às Prefeituras que encaminhavam bolsistas pedagógicas
vai até cada cidade, onde supervisiona classes, reúne-se
com professores e apresenta sugestões para uma programação
quinzenal”. Josemá Azevedo, presidente do Diretório
Acadêmico da Escola de Engenharia, coordenava esse programa
de interiorização.
b) – Frente de Educação Popular do Rio Grande
do Norte.
Em setembro de 1963, já haviam assinado convênios de
assistência técnico-pedagógica com a Prefeitura
do Natal os seguintes municípios: São Tomé,
São Paulo do Potengi, Afonso Bezerra, Açu, Currais
Novos, São Gonçalo e Macau, este através de
vários sindicatos operários.
Em
janeiro de 1964, cerca de 40 prefeitos, ou seus representantes,
reuniram-se no Centro de Formação de Professores da
Campanha para a adoção de um planejamento comum. Aí
foi lançada a semente da Frente de Educação
Popular do Rio Grande do Norte, que foi ceifada pelo golpe de Estado
em abril.
2.1.8.-
A ESCOLA BRASILEIRA CONSTRUÍDA COM DINHEIRO BRASILEIRO
– A oitava fase de que falam os dois documentos que estão
embasando estas notas se refere à tentativa de a Campanha
superar o seu plano de emergência e começar a edificar,
de forma mais definitiva, a sua rede escolar. Isso só poderia
ocorrer com a ajuda do Governo Federal. O município já
dera provas de confiabilidade para a execução de um
programa de educação. Restava, então, ao Governo
Federal, se associar para implementar esse programa.
A ajuda foi propiciada
pelo Ministro Paulo de Tarso em meados de 1963, Cr$ 50 mil.
A partir desses recursos,
a Prefeitura vai começar a abrigar parte das escolas em salas
pré-fabricadas, beneficiando também dessa maneira
o Centro de Formação de Professores, o Colégio
Municipal e a Escola Técnica de Comércio do Município,
que se encontravam em prédios alugados.
Sem substituir a escola
de palha, a Prefeitura colocava, assim, na paisagem da cidade, pequenas
salas de aula de alvenaria, partindo de estruturas metálicas
pré-fabricadas, adquiridas com os recursos liberados pelo
MEC.
Nesse programa, a Prefeitura,
em 1963, inaugurou três pequenas escolas em agosto, duas em
setembro, e a partir de outubro, até dezembro, mais 14 unidades.
Nessa época, a
frontalização em face da Aliança Para o Progresso
ganhava um espaço político maior, e o Prefeito Djalma
Maranhão, no propósito de diferenciar o seu Governo
do de Aluízio Alves (que se apoiava em recursos norte-americanos),
denominou essa etapa de Campanha de “Escola Brasileira Construída
com Dinheiro Brasileiro”.
Cada
inauguração de escola era uma festa, com exibições
de autos populares e folclóricos (principalmente de bambelô)
e discursos políticos das lideranças locais.
2.2 - DA DESTRUIÇÃO DO MOVIMENTO
A destruição
da Campanha De Pé no Chão Também se Aprende
a Ler se insere no quadro geral criado pelo golpe de estado de 1964,
e na implantação do projeto educacional-ideológico
do IPES.
Numerosas são
as análises do período e não valeria a pena
repeti-las. Convém, todavia, destacar:
2.2.1. A interpretação
de José Willington Germano (in “Lendo e Aprendendo-
a Campanha De Pé no Chão”, Cortez Editora, São
Paulo, 1982) e
2.2.2.
A repressão desencadeada em 1964, no Rio Grande do Norte,
identificou como um dos seus alvos preferenciais a administração
do Prefeito Djalma Maranhão; nesta esclusivamente, a Secretaria
Municipal de Educação; e, nesta, preferencialmente,
a sua Campanha De Pé no Chão também se Aprende
a Ler.
III – Uma Interpretação:
De Pé no Chão – Escola Pública e Educação
Popular
Entre as reflexões que tenho ultimamente feito, com mais
freqüência, está a pergunta se valeria a pena
continuar a definir De Pé no Chão apenas como
um dos movimentos pioneiros de educação popular dos
anos 60 – ao lado do MCP de Pernambuco, do MEB da Igreja Católica,
do CPC da UNE, da CEPLAR da Paraíba? Ou De Pé no
Chão se situaria também – e principalmente
- numa moldura histórica mais ampla, que seria a da retomada
da bandeira da escola pública e da laicidade do ensino no
Brasil? Agora não mais como uma proposta teórica e
ideológica – e sim como uma inquestionável prática.
Através
desta última vertente De Pé no Chão
não seria, somente, a resposta do poder público municipal
à reivindicação política do movimento
popular gerado pela campanha eleitoral de 1960 – seria, também,
a extensão dos anseios das lideranças brasileiras
que buscam para a Educação uma postura coetânea
ao Século XX: isto é, a cobrança à responsabilidade
do Estado pelo ensino universal, gratuito e laico.
Se
assim for, De Pé no Chão seria a continuidade,
coerente e histórica, de momentos significativos da educação
neste país, quando se reafirma a defesa da escola pública,
como:
• A criação da ABE (Associação
Brasileira da Educação) de 1924;
• A IV Conferência Nacional de Educação,
Rio, 1931;
• O Manifesto dos Pioneiros da Educação Nova,
de 1932;
• O I Congresso Brasileiro de Escritores, São Paulo,
1945;
• O IX Congresso Brasileiro da Educação, Rio,
1945;
• A Universidade do Povo e os Comitês Democráticos,
criados pelo PCB no Distrito Federal, 1945-47;
Seria,
assim, De Pé no Chão alinhado politicamente
aos movimentos de sua época:
• À defesa da escola pública, gratuita e laica,
quando da discussão da Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (LBD) – fiel à melhor vertente do pensamento
de Anísio Teixeira;
• À posição da UNE, de 1960 a 1964;
• Às conclusões das I e II Convenções
Operárias em Defesa da Escola Pública, Sindicato dos
Metalúrgicos, São Paulo, 1961 etc.
E
mais: pelo papel histórico que desempenhou de 1961 a 1964
e por ser a antípoda ao projeto ideológico do IPES,
implantado pelo Estado autoritário de 1964, De Pé
no Chão pode, também ser considerado o elo para o
futuro, quando emergirão os mais importantes movimentos pela
redemocratização da educação, como por
exemplo:
• A SBPC, a partir de 1970;
• A criação e/ou ressurreição
de organizações de professores como o CEPRS (Centro
Estadual de Professores do Rio Grande do Sul), CEPRJ (Centro Estadual
de Professores do Rio de Janeiro), ANDES, CEDES, ANPED etc.
• O fórum “Ciência e Educação
para uma sociedade democrática”, SBPC, Rio, 1980;
• As I e II Conferências Brasileiras de Educação,
(CBEs) São Paulo e Minas Gerais, 1980 e 82, respectivamente;
• E, finalmente, o XVI Congresso Nacional de Professores,
promovido pela Confederação dos Professores do Brasil
– (CPB), Natal, 1983.
Esta ótica não invalida o movimento de De Pé
No Chão ser situado e datado no Nordeste do início
dos anos 60 e através desse contexto ser compreendido e explicado
como um dos movimentos pioneiros da educação popular.
Esta é uma questão histórica e, portanto, transcende
às interpretações episódicas.
O
que eu quero dizer é que De Pé no Chão
é mais que isso – ele, como campanha regional, se insere
na participação de uma luta maior e mais antiga que
é a do movimento pela educação pública.
Esta, ganha força no Brasil a partir dos anos 20, esvazia-se
nas fases ditatoriais de nossa História e, agora, acumula
forças para ampliar os seus espaços – principalmente,
junto aos governos estaduais nascidos de novas alianças das
eleições de 15 de novembro último.
Esta discussão
é aqui colocada porque, ultimamente, muito se tem falado
da impossibilidade de se desenvolver um programa de educação
popular no âmbito das instituições e/ou do Estado.
Esta é a discussão preferida dos anos 70 – quando
algumas interpretações mecanicistas das teorias da
reprodução e dos aparelhos ideológicos do Estado
jogaram o pêndulo da avaliação do papel da educação
na sociedade para o outro extremo daquela posição
registrada nos anos 60 – quando, então se dizia que
a educação era o motor da transformação
social e os educadores os seus timoneiros.
Acredito que os anos
80 irão corrigir o pêndulo em seus extremos. Os educadores
dos anos 60 terão melhor visibilidade do que é uma
sociedade dividida na classe, os educadores dos anos 70 enxergarão
na escola publica, desde que democraticamente arejada pela sociedade
civil, algum espaço de luta pela transformação
social, apesar do peso institucional.
Por
isso transcrevo, apesar de longa, uma lição de Guiomar
Namo de Mello, ministrada no I Encontro de Supervisores da Educação,
realizado em outubro último, no Rio de Janeiro, quando discute
“o popular” em educação:
“Alguns educadores têm insistido que, para ser popular,
a educação deve estar a serviço da organização
política das classes populares. Na realidade, desse ponto
de vista, educação popular seria a dimensão
educativa dos movimentos sociais e políticos. Ela se definiria
neste caso, menos por seus destinatários e mais pelo seu
conteúdo e objetivos. A educação elementar
promovida pelo Estado não se aplicaria, portanto, o qualificativo
popular, apesar de ser destinada às classes populares e de
atingir grande contingente de crianças e jovens originários
dessas classes.
Minha posição
é diferente dessa que acabei de expor. Começo por
afirmar que não me parece produtivo discutir o que é
e o que não é autenticamente popular, e muito menos
reivindicar “a priori” esse qualificativo para a educação
escolar ministrada pelo poder público.
De meu ponto de vista
o critério para qualificar o que é e o que não
é popular, deve ser sobretudo prático, e portanto,
histórico. Será pelo resultado concreto das diferentes
práticas educativas – tanto as que aconteceram dentro
do ensino formal como as que se colocaram fora ou alternativamente
a ele – que se poderá decidir até que ponto
determinada forma do processo educacional se realizou mais ou menos
favoravelmente às necessidades e interesses do povo.
Tentando,
desse modo, escapar de uma polêmica que não julgo produtiva
quero remeter as reflexões que vamos fazer (...) à
escola existente hoje. Esta escola, onde trabalhamos, e que há
algumas décadas vem recebendo entre seus alunos, parcelas
ano a ano maiores dos filhos das classes populares, especialmente
em seus graus e séries iniciais. Uma escola onde a representatividade
dessas classes está portanto aumentando, exatamente por ser
gratuita e mantida pelo poder público”.
Alinho-me a esta posição
de Guiomar Namo de Mello e vejo que suas palavras caem como uma
luva no estudo de De Pé no Chão. Repito o que diz
a educadora paulista”...o critério para qualificar
o que é e o que não é popular deve ser sobretudo
prático”.
Se,
antes da administração de Djalma Maranhão não
havia ensino municipal em Natal; se de 1961 a 63, quando existiam
60.000 analfabetos, mais de 17.000 alunos oriundos das classes subalternas
receberam a escolaridade fundamental (ou parte dela); se em 1963
e 64 soma-se a De Pé no Chão a contribuição
de Paulo Freire na educação de adultos e no discurso
político; se a proposta da Campanha afina e se alia ao MCP
de Pernambuco e ao CPC da UNE; se depois de 1964 os índices
de escolaridade caíram no Brasil (e em Natal) porque a escola
pública perdeu o seu impulso (como demonstram os estudos
de Vanilda Paiva e Luis Antonio Cunha) – então, De
Pé no Chão, “esse processo educacional,
se realizou mais ou menos favoravelmente às necessidades
e interesses do povo”.
Portanto
vejo em De Pé no Chão duas vertentes que o
alimentam – permeando o impulso das classes subalternas já
mencionado: o caráter de um movimento prático e teórico
de implantação e implementação da escola
pública; o caráter de educação popular
– este, presente, no princípio, em função
dos destinatários de sua proposta, depois, evoluindo para
se colocar à serviço da organização
política das classes populares (veja-se, por exemplo, a experiência
dos Círculos de Pais e Professores, a conquista, por sua
organização e intermediação, da extensão
de água encanada e serviços de eletricidade aos bairros
periféricos; leia-se, também, o documento apresentado
por De Pé no Chão ao I Encontro Nacional de
Alfabetização e Cultura Popular, realizado em setembro-
1963, no Recife).
Se
esta reflexão estiver correta cabe, então a pergunta:
- por que essa especificidade em De Pé no Chão
ter se convertido em leito único de duas vertentes: a de
escola pública, gratuita e laica e a de movimento de educação
popular dos anos 60?
A reflexão se
abre, também, em outras dimensões. Por exemplo: os
chamados movimentos de cultura popular e de educação
popular dos anos 60 contaram em seus quadros com grandes componentes
de esquerda cristã – originaria da JUC, participante
da UNE e formadora da AP. Por outro lado a defesa da escola pública,
gratuita e laica sempre foi bandeira dos segmentos mais progressistas
de sociedade brasileira, na busca de tornar coetânea ao Século
XX a educação – e nestes segmentos situam-se,
evidentemente, os marxistas.
Ora,
já demonstrei em meu livro (“De Pé no Chão
Também se Aprende a Ler” – uma escola democrática)
que o movimento De Pé no Chão se converteu,
numa frente ampla de marxistas e cristãos, (estes de confissão
católica e não-católica) num trabalho em comum
que não impedia, todavia, de cada um preservar a sua identidade
ideológica, sem tensões nem agravos. Das vertentes
cristãs de esquerda vieram os impulsos para transformar a
educação em Natal numa proposta de educação
popular (a influência de Paulo Freire, e da AP por exemplo);
das vertentes marxistas vieram os impulsos para exercitar-se a educação
em Natal, com dimensões de transformação social,
mas, no âmbito do poder público, mantendo-a gratuita
e laica sob a direção de uma Secretaria de Estado
(influências de Djalma Maranhão, Luiz Ignácio
Maranhão Filho, por exemplo).
Porque marxistas e cristãos
se mantiveram aliados na mesma proposta educacional De Pé
no Chão resultou com as características de prática
e de defesa da escola pública, gratuita e laica e de movimento
de educação popular. Esta é uma reflexão
que poderá explicar porque, em De Pé no Chão
uma categoria não exclui a outra. Pelo contrário:
as duas se somam, se completam e fazem crescer o movimento.
Estas
são algumas questões que alimentam a reflexão
e a discussão, sem esgotá-las, evidentemente.
IV
– Conclusões
Para os limites de uma comunicação numa mesa redonda
já fui longo demais. Preciso concluir.
Esta
minha conclusão se dividirá em dois tempos: o primeiro
indicando, na minha ótica, onde identificar o caráter
inovador em De Pé no Chão; o segundo tempo: a tentativa
de visibilizar as grandes linhas da possível contribuição
deixada pelo movimento e que mereceria ser conhecida e incorporada
ao patrimônio cultural do povo brasileiro.
1. Primeiro tempo: As inovações.
Identifico em De Pé no Chão as seguintes conquistas
inovadoras:
1.1. A Campanha gerou os seus próprios recursos humanos,
não dependendo de instituições tradicionais
(respeitáveis, mas, tradicionais) como Escola Normal e/ou
Universidade).
1.2. A escola começou pela práxis, construindo a sua
proposta teórica a partir do conhecimento e a análise
de uma realidade vivida (o Conselho Estadual de Educação
só vai reconhecer De Pé no Chão em setembro
de 1963).
1.3. O movimento não confundiu escola com prédio escolar
(ver o partido arquitetônico do Acampamento Escolar)
1.4. A Campanha estruturou-se de forma não convencional,
com a participação dos monitores, contribuindo, quinzenalmente,
para a definição dos conteúdos integradores
de programas e currículos, estes, posteriormente, indicados
pelos professores e técnicos do Centro de Formação
de Professores.
1.5. Os convênios celebrados entre De Pé no Chão
e a ... UFRN (testagem no Acampamento das Rocas de exame de fezes,
levantamento estatístico, a aplicação de vermífugos
pelos acadêmicos da Faculdade de Farmácia; serviços
de odontologia, idem; orientação dos círculos
de pais e professores pelos acadêmicos de medicina em todas
as áreas da Campanha etc.) e a participação
das mais importantes lideranças universitárias no
GT de Educação Popular – estes convênios
e esta participação podem ser considerados como um
momento significativo de apoio da instituição universitária
(administração do Reitor Onofre Lopes) e do movimento
universitário (administração de Francisco Floripe
Ginani, presidente do DCE) ao movimento popular, liderado pelo Prefeito
Djalma Maranhão.
1.6. De Pé no Chão, antes da grande crise do
capitalismo dos anos 70 já adotara a tecnologia da escassez
(custo-aluno da escola primária era cerca de dois dólares).
1.7. De Pé no Chão, antes da intervenção
americana no processo educacional brasileiro (acordos MEC-USAID,
a partir de 26 de junho de 1964) já denunciara esta agressão
embutida na Aliança para o Progresso.
1.8. Os Círculos de Pais e Professores do movimento evoluíram
de uma postura acadêmica para a etapa da organização
das comunidades na luta pelos seus direitos.
1.9. De Pé no Chão, à exemplo do método
Paulo Freire, diversificou a sua proposta educacional quando esta
remetia ao mundo do adulto.
1.10. De Pé no Chão criou uma “nova mentalidade”,
como escreveu Pierre Furter.
2.
Segundo tempo: a herança.
Identifico em De Pé no Chão duas contribuições,
que, independentemente da época em que se processaram podem
e devem – ser apropriadas pela sociedade brasileira.
2.1. A Campanha demonstrou a viabilidade de um projeto educacional
ser proposto, executado e avaliado (avaliação parcial,
face às circunstâncias) pelas classes subalternas.
2.2. Um processo educacional que se apóia na práxis,
poderá evoluir de uma simples etapa de reprodução
do sistema para uma fase superior de questionamento de uma realidade
e buscar formas concretas e alianças políticas que
levem à transformação da sociedade.
3.
– Finalizo esta comunicação homenageado a argúcia
do educador Jose Willington Germano que em sua tese na UNICAMP (op.cit)
bem percebeu os andaimes humanos utilizados na engenharia de construção
da Campanha. Identificou ele os equívocos e debilidades do
movimento, próprios de uma época de fortes tendências
culturalistas e de otimismo pedagógicos, além das
limitações do nacionalismo que privilegiava a luta
imperialista em detrimento à denúncia da luta de classes
no âmbito da sociedade.
E vai mais fundo na sua análise quando afirma:
“De um movimento que, de início, pretendia, simplesmente
oferecer educação para todos, De Pé no Chão
avança conceptualmente e passa a encarar a educação
e a cultura como instrumentos de libertação. Não
se tratava, pois, de um projeto que tivesse em vista integrar os
marginalizados à sociedade, fornecendo aos indivíduos
escolarizados a possibilidade de ascensão social. Tratava-se,
isto sim, de transformar essa mesma sociedade e a educação
e a cultura exerceriam um papel preponderante nesse processo”.
_______________________
(1) MOACYR DE GÓES, AUTOR DE “DE PÉ NO CHÃO
TAMBÉM SE APRENDE A LER – UMA ESCOLA DEMOCRÁTICA”
– ED. CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, Rio, 1980, FOI
SECRETÁRIO DE EDUCAÇÃO DO MUNICÍPIO
DE NATAL DE 1960 a 1964 (ADMINISTRAÇÃO DO PREFEITO
DJALMA MARANHÃO).
_______________________
(2) As informações e os dados deste capítulo
estão documentados in GÓES, Moacyr de. “De Pé
no Chão também se Aprende a Ler – uma escola
democrática” – Ed. Civilização
Brasileira, Rio, 1980.
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