
EXMA.
DRA. VILMA MAIA, DIGNISSIMA PREFEITA DA CIDADE DE NATAL,
EXMO. SR. PRESIDENTE
DA CAMARA DE VEREADORES DA CIDADE DE NATAL,
SRS. VEREADORES,
AUTORIDADES PRESENTES OU REPRESENTADAS, MINHAS SENHORAS E MEUS
SENHORES
Quantas e quantas mulheres morreram
no anonimato, em nome da causa da liberdade e da Justiça social
neste Brasil?
São essas mulheres que eu homenageio hoje, aqui em Natal, nesta
solenidade, com a permissão de vocês e a iluminação de NÌSIA
FLORESTA, na pessoa da brava pernambucana MARIA CELESTE VIDAL,
professora primária que se engajou na luta camponesa e tornou-se
líder em busca da liberdade, cuja coragem o destemor honra a
todas nós mulheres e cidadãs, mas cuja história, infelizmente,
não foi reconhecida pelas autoridades do meu Estado, permitindo-se
que a nossa Celeste, a Celeste que encampou a libertação política
como bandeira de vida, morresse praticamente à míngua, deixando
para nós a herança da dignidade e a lembrança de uma mulher
líder, barbaramente estuprada, violentada em todos as seus direitos,
pelo governo da repressão e do horror: porém uma mulher forte,
que enfrentou todas as dores daquela época com a determinação
de uma Nísia Floresta, de uma Clara Camarão, de uma Anatália
Melo Alves, e de milhares de mulheres que formaram o exército
da paz contra a guerra dos ditadores militares e dos repressores
sociais.
De logo, neste passo, evoco a sábia reflexão de Nísia sobre
liberdade e reforma social;
"Quantas somas de dinheiro, quantas vidas sacrificadas
para sustentar o que chamam de honra da Nação, enquanto a educação
dos povos, base principal do grande edifício social e da felicidade
pública e particular, fica de lado como coisa secundária!"
De todas as homenagens recebidas até hoje, a medalha Nísia Floresta
é uma das que mais me honra e me emociona. Honra-me pela muIher-cidadã,
que foram Dionísia Pinto Lisboa, Dionísia Gonçalves Pinto, Nísia
Floresta Brasileira Augusta, Nísia Floresta, a Nísia de muitos
nomes, que usou a poesia literária para espalhar idéias de liberdade
e plantar a semente da luta feminista no país; a Nísia reformadora,
que com sua luta e sua historia ajudou a mudar a realidade social
da mulher neste Brasil de tantas desigualdades.
Emociona-me receber esta medalha na data de hoje, na data que
é símbolo da resistência feminista e feminina, da resistência
contra o autoritarismo e o preconceito, da resistência pela
vida e pela igualdade.
E, então, não poderia deixar de fazer uma referência a uma potiguar
que no século XVII, no seu tempo, na sua comunidade, muito antes
de Nísia e de Celeste, contribuiu para a resistência da mulher
na luta pela liberdade de seu povo e de seu país contra os holandeses,
a nossa Clara Camarão, precursora do Feminismo do Brasil.
Não existe história neste país, não existem avanços sociais,
sem a participação da mulher.
Dois séculos depois de Clara, surge Nísia para continuar, no
seu tempo, entre a seu povo, a mesma luta de justiça e direitos
iguais, tão guerreira quanta Clara, revolucionária dos conceitos,
escrevendo suas idéias e defendendo suas bandeiras em diversas
línguas, do português ao francês e italiano, entre outras, expressando
em cada um de seus poemas, de seus artigos, a força da mulher
nordestina, da mulher potiguar, da descendente de Clara Camarão,
da militante do futuro, divulgando a dor do cotidiano da mulher
vítima da opressão e do atraso cultural nascido do autoritarismo.
Nísia, com sua sensibilidade, soube captar as emoções reprimidas
da mulher, soube enfrentar com determinação e coragem o machismo
de sua época, atraindo para si admiração e inveja, inimigos
e aliadas, cuja causa nunca temeu defender.
É por essa Nísia que a homenagem de hoje tanto me toca a alma.
Por ela, que percorreu o mundo segurando a bandeira da liberdade
e pelo fim das discriminações das minorias, em favor dos índios,
com o seu poema "A lágrima do caeté", espelhando a
realidade de uma comunidade forte, oprimida pelas desigualdades.
Nísia condenava a escravidão e defendia a liberdade dos negros,
encarnando versos populares, como um que diz:
"Feliz na minha cabana,
sombreada de palmeiras,
eu vivia em terra da África,
minha terra tão fagueira,
lá deixei mulher e filhos,
meu trabalho e meu porvir,
a esses bens me arrancaram,
para um mau senhor seguir!"
A época, Nísia contestava: "assim
canta o pobre escravo resignado a sua miséria no meio da magnificência
esplêndida desta riquíssima nobreza no seio de um grande povo
tão ufano de suas livres instituições".
E torcia: "Possam os governos de todos os países civilizados
escutarem os gritos da agonia prolongoda desses desgraçados,
oprimidos, brancos e negros, e que se faça a libertação no novo,
como no velho mundo".
Nísia era livre, defendeu a sua verdade, conquistando e ocupando
a seu espaço em uma época na qual a mulher era apenas um objeto.
Era anti-escravista, difundiu as idéias feministas no Brasil,
na Europa e na América, denunciou a discriminação social, a
opressão contra os mais fracas, todo tipo de abuso ou desrespeito
ao ser humano. Pedagoga, foi inovadora. Atuou na epidemia de
cólera, em 1852, no Rio de Janeiro como enfermeira voluntária.
Nísia, cidadã do mundo, não é apenas Rio Grandense do Norte,
é nordestina, mulher de muitas pátrias por adoção. Nísia, viajante
perene da liberalidade, par onde passou lançou a semente da
liberdade e da cidadania.
Não teve o reconhecimento em sua época, incompreendida, criticada
e isolada pela sua geraração.
Sofreu perseguição cerrada de Isabel Gondim, sua conterrânea,
também escritora e pedagoga, porém com talento inferior ao seu,
que estabeleceu uma campanha difamatória contra a nossa Dionísia
através de cartas. 0 professor Rodrigues Alves, comparava assim
as duas escritoras: "Nísia Floresta era gênio; Isabel Gondim,
geniosa".
Sobre o homem machista, dizia NISIA: "se este sexo altivo
quer fazer-nos acreditar que tem sobre nós um poder natural,
de superioridade, por que não nos prova o privilégio, que para
isso recebeu da natureza, servindo-se de sua razão para se convencer?
Tem por ventura, ele alguns títulos para justificar o direito
com que reclamam nossos serviços, que também não o tínhamos
contra ele?"
Nísia Floresta escandalizou o Brasil. Foi a primeira mulher
no país a usar a imprensa como ampliador de seus pensamentos
de liberdade.
E ao escandalizar a Nação fez nascer na mulher a sede da igualdade
de direitos, de felicidade, de liberdade, de consciência político-social.
Nísia casou-se aos 13 anos de idade, por imposição. Deram-lhe
um marido rico, proprietário de latifúndios aqui, no Rio Grande
do Norte. Nísia voltou para a casa de seus pais poucos meses
depois.
Mais tarde, casou-se com um advogado pernambucano, Manuel Augusto
de Farias Rocha, que faleceu após cinco anos de convivência
com ela.
Nísia é potiguar. Nasceu na Vila Imperial Papary - que significa
nascimento, berço da libertação da mulher brasileira. Podemos
dizer que parte, grande parte da luta feminista no Brasil ,
nasceu aqui, em Natal, nesta cidade, que vemos hoje governada
por uma mulher, Vilma Maia, cuja sensibilidade feminista é traduzida
nos detalhes de sua administração. Natal da luminosidade de
sol sempre posto, Natal das flores encantando cada canto da
cidade, Natal da história das mulheres destemidas, Natal que
elegeu a primeira prefeita do Brasil - Alzira Soriano; a primeira
deputada, Maria do Céu Fernandes, fundadora do Jornal "Galvanópolis".
Foi de Natal que surgiu a primeira eleitora, Celina Guimarães.
Destaque, também, para Clara de Castro, ligada ao movimento
revolucionário de 1817, apoiando Miguel Joaquim de Almeida Castro
- o Padre Miguelinho - seu irmão. Presa, posteriormente liberada,
sofreu a horror do julgamento e execução de Pe. Miguelinho;
Ritinha Coelho, ao avistar o cadáver do líder da revolução de
1817, André de Albuquerque Maranhão, despido, exposto à execração
pública, deteve a escolta e, num gesto de coragem e solidariedade,
aproximou-se do corpo e o cobriu. Louvores, também, para Ana
Floriano, que, liderando trezentas mulheres - as "trezentas
subversivas", avançou contra a Junta Militar instalada
na Igreja Paroquial de Mossoró, na defesa dos maridos, filhos
e parentes, que, vindos da Guerra do Paraguai, já se viam convocados
para novo embate.
Pois bem, a história tem mostrado que a mulher sempre lutou,
em cada um de seus tempos, de suas épocas, pela sua liberdade
e pelas transformações sociais. A história de Nísia é a prova
concreta de que se pode mudar através das idéias e dos conceitos,
viabilizando os sonhos de uma sociedade justa e igualitária
para ambos os sexos.
A final, o que difere o homem da mulher nos campos intelectual,
profissional e social? Nísia, Clara Camarão e Celeste Vidal,
cada uma no seu tempo, mostram claramente que todos nós, homens
e mulheres, podemos avançar juntos, crescer juntos, trabalhar
juntos por um mesmo objetivo.
Longo e difícil foi a caminhada até os dias atuais, na nossa
sociedade, para atingirmos o estágio duramente conquistado,
vindo a exercer, em diversos setores, direitos políticos e sociais
igualitariamente com os homens, podendo a mulher escolher o
seu status profissional, exercer a sua liberdade sexual e competir
normalmente no mercado de trabalho com o homem, dividindo com
o parceiro os seus sonhos e suas fantasias femininas, debatendo
as questões domésticas e políticas de igual para igual com o
homem. Na Roma antiga, a mulher era identificada pelo nome de
pai, sem direito a uma existência civil. Hoje, mesmo quando
casa, a mulher não é mais obrigada a usar o nome do marido como
um carimbo de propriedade.
Mas, para chegarmos aqui e seguir adiante, foi preciso um oito
de março trágico, foram necessárias prisões, torturas e mortes
de mulheres que usaram a sua coragem contra o autoritarismo,
a nazismo, a ditadura e a desigualdade imposta por uma sociedade
machista. Quantas lágrimas foram derramadas por mães e mulheres
em busca de filhos e maridos desaparecidos na ditadura militar?
Nos campos de concentração de Hitler? Quanta dor, quanto medo
e quanta resistência não precisamos passar, todos nós, participantes
e herdeiros das ditaduras políticas e socais, para que possamos
estar aqui, nesta solenidade, referenciando a coragem e a participação
da mulher ao longo dos tempos?
Quantas Claras, quantas Nísias, não existiram para que hoje
possamos manter a nossa bandeira de igualdade com o homem e
a nossa luta pelas transformações sociais?
E se formos enumerar nome por nome, mulher por mulher, que grande
exército de força e bravura não tivemos?
A nossa Maria Quitéria de Jesus Medeiros, a nossa Joana d'Arc
brasileira, que combateu a autoritarismo e as desmandas do General
Madeira; Sóror Joana Angélica, heroina baiana que enfrentou
os militares numa invasão ao seu convento; Anita Garibaldi,
heroína de duas pátrias, na defesa do Brasil e da unificação
da Itália; Carlota Corday, que libertou a França de Marat, apunhalando-o;
Públia Hortência de Bastabo, a portuguesa que vestiu-se de homem
para ingressar numa universidade, a nossa Leila Diniz que usou
a voz e a coragem para mostrar que homem e mulher não podem
ter direitos e deveres desiguais; Maria do Carmo Tomáz,
presa pelas militares, confundida com outra militante, aguentou
as dores e pancadarias em nome da causa e nunca delatou a companheira;
enfim, são milhares, milhões de mulheres que de uma maneira
ou de outra, estão aqui, neste espaço, mostrando que é possível
construir, que é possível mudar, que nós brasileiros, juntos,
poderemos refazer a nossa Nação sob o pálio da igualdade.
A mulher, ao longo do tempo, tem ensinado ao homem sonhar. E,
ao longo desse tempo, a mulher tem ajudado, participado e construído,
com a homem, a realidade da liberdade, da democracia, da cidadania,
da igualdade social.
Hoje, em nome de Maria Celeste Vidal, de Nísias e Claras, de
Leilas e Garibaldis, de Marias, Antônias, Joaquinas, qualquer
seja o nome de tantas conhecidas e também anônimas heroínas
brasileiras, agradeço o recebimento desta medalha, a carinho
desta homenagem, a hospitalidade com que Natal tem me recebido,
como mulher e como participante desta caminhada, que ainda é
longo, na defesa permanente dos direitos humanos, luta essa
em que, graças a Deus, tenho contato com centenas, milhares
de Nísias Florestas e Claras.
Muito obrigada..
Mércia Albuquerque Ferreira
Natal, 08 de março de 2002.