

Vídeo Mércia 3
Discurso Integral de Mércia
7,79 MB 13:09'
Saudação
inicial
EXMO. SR.
PRESIDENTE DA ASSEMBLÉIA LEGISLATIVA DO ESTADO DO RIO GRANDE
DO NORTE,
SRS.
DEPUTADOS,
EXMO.
SR. PRESIDENTE DA CÂMARA DE VEREADORES DA CIDADE DE NATAL,
SRS.
VEREADORES,
SR.
PRESIDENTE DO CONSELHO ESTADUAL DOS DIREITOS HUMANOS,
AUTORIDADES
PRESENTES OU REPRESENTADAS, MINHAS SENHORAS E MEUS SENHORES.
Inicialmente, desejo dividir esta homenagem com alguns
familiares. Assim, com o meu marido Otávio
Clementino de Albuquerque,
que sempre me apoiou; com minha mãe Luzinete
Albuquerque,
que discordava da minha atuação em defesa dos presos políticos,
mas nunca deixou de estar ao meu lado quando precisei, e com
os meus irmãos Pedro
e Sandino,
este último perseguido, preso e torturado para delatar-me. A
Maria
José Batista de Menezes
que, nas minhas ausências, substituiu-me junto a Aradin,
com carinho e muita dedicação.
Peço, neste momento, perdão ao meu filho Aradin,
por não lhe haver dedicado horas preciosas quando mais necessitava,
ocupadas com o patrocínio da defesa dos perseguidos políticos.
Não desconheço que a minha ausência
deixou marcas no seu mundo afetivo, que nunca pude compensar,
somente restando pedir a sua compreensão para a excepcionalidade
daquele tempo e do desafio enfrentado.
SENHORAS
E SENHORES:
As honrarias alimentam o espírito, fazem bem a alma,
quando não se deixam enganar os contemplados pelo auto engrandecimento
da personalidade.
Imbuída desse sentimento, as minhas primeiras palavras
são para expressar ao Poder Legislativo do legendário Estado
do Rio Grande do Norte, e à Câmara de Vereadores da histórica
cidade de Natal, que me adotam, o reconhecimento ao seu significado
histórico. As Casas de José Augusto e de Frei Miguelinho tem
sido palco de memoráveis eventos cívicos em defesa da liberdade
política, da cidadania e das causas sociais do povo potiguar.
No Rio Grande do Norte e na cidade de Natal, vislumbro, ao lado
do meu Pernambuco, o berço da nacionalidade e do patriotismo
brasileiros, afirmados na resistência ao invasor holandês. Que
o exemplo desse passado glorioso, na afirmação do sentimento
nativista, de exaltação à independência e à liberdade, na integração
patriótica do branco, do negro e do índio, este representado
na figura histórica do índio Poti Felipe
Camarão, seja o padrão de quantos venham a exercer, ungidos
pelo voto, a representação popular.
A essa solenidade
conjunta se associa também o Centro de Direitos Humanos e Memória
Popular e o Conselho
Estadual de Direitos Humanos, aqui representados pelo seu
Presidente, ROBERTO MONTE,
ameaçado de morte por grupos de extermínio, a quem presto, neste
ato, a minha irrestrita solidariedade.
A concessão à minha pessoa do título estadual de “Defensor
dos Direitos Humanos”, neste ato conjunto, assume para mim a
conotação de uma inédita tripla cidadania: de Natal, do Rio
Grande do Norte e do mundo, pois não tem fronteiras a luta em
defesa dos direitos humanos e a sua dimensão é internacional.
II
A minha vida tem sido marcada pela força da emoção, literalmente,
desde quando nasci, em situação emergencial. Em 23 de dezembro
de 1934, minha mãe, ao visitar uma cunhada em Jaboatão dos Guararapes,
na região metropolitana de Recife, deparou-se com uma situação
de conflito social na estação ferroviária da antiga Great Western,
com tiroteio e prisões. Impedida de retornar a Recife, minha
querida genitora me deu à luz na madrugada do dia 23 daquele
mesmo mês e ano, enquanto os ferroviários ainda resistiam.
Pouco depois, minha família, por circunstâncias da vida,
mudou-se para São José da Laje, Alagoas. Naquela cidade alagoana
fui criada no ambiente de uma família conservadora, para a qual
medo era uma palavra que não existia, sendo esta uma característica
de minha educação que considero positiva.
Aos nove anos sofri um grande golpe ao ficar órfã de
pai, e quinze dias depois fui internada no Colégio Santíssimo
Sacramento, onde recebi excelente orientação para a vida.
No internato, apesar de ser a mais jovem, junto com uma
colega, EDNA
PINTO, criamos
um grupo com a sigla UPT/TPU, significando “uma por todas, todas
por uma”, expressando uma forte rebeldia quanto ao rígido regulamento
do Colégio. A repressão foi cerrada, com o apoio de minha mãe,
trazendo a perda das férias da Semana Santa e da Semana da Pátria.
Aos poucos, fui amansando... Muitas vezes, porém, subia nas
árvores, somente pelo prazer de deixar as freiras me procurando.
Depois... vinha o castigo.
Conclui o curso científico e o pedagógico. A minha família
desejava que cursasse Medicina, daí vindo eu a freqüentar durante
um ano o respectivo curso preparatório. No entanto prestei vestibular
para a Faculdade de Direito, mais uma vez reafirmando o meu
espírito rebelde.
Vivi no interior de minha família aceso conflito político.
Meu avô, do PSD, era da escola dos coronéis. Convivi com pistoleiros.
Meu pai, udenista preconceituoso, valente, fiel aos amigos –
nós nos amávamos. Nos comícios era comum as luzes serem apagadas
pelos adversários, e o tiroteio irromper.
Cedo me ensinaram a atirar. Ganhei uma arma mas felizmente
nunca precisei usá-la. Anos depois destinei o revólver às águas
quase sempre serenas do
Rio Capibaribe.
Na Faculdade de Direito do Recife era tímida e arredia,
mas sempre procurei ser cordial com os colegas . Estudava à
noite e trabalhava durante o dia como bancária e professora
primária, concluindo o curso com muito esforço, sem destaques
e sem estrelismos, o que é comum entre os alunos que estudam
à noite, após trabalhar durante todo o dia. A minha vocação
maior, porém, era o magistério, notadamente voltado às crianças
excepcionais e aos menores carentes. Esse trabalho me deixava
especialmente feliz, incentivando o meu aperfeiçoamento profissional
através de cursos nessa área.
III
No dia 2 de abril de 1964 um acontecimento me marcou
definitivamente a alma, provocando uma enorme reviravolta na
minha vida. Não há como não recordá-lo, pois o papel que assumi
depois, sem dúvida, é responsável por essa tripla honraria que o povo do Rio Grande do Norte me concede.
Por volta das 13 horas daquela data indelével, o Tenente
Coronel Darcy Vilocque Viana,
comandante do Quartel de Motomecanização do bairro de Casa Forte,
em Recife, promoveu um espetáculo vergonhoso para os foros de
civilidade da minha cidade legendária.
Preso no interior do estado, o velho líder comunista
GREGÓRIO LOURENÇO BEZERRA foi arrastado pelas ruas do bairro de Casa
Forte, amarrado por cordas a um carro de combate do exército
brasileiro. Gregório,
vestindo apenas um calção preto, com uma corda de três pontas
amarrada no pescoço, com os pés, que haviam sido mergulhados
em soda cáustica, sangrando, banhado de suor, ainda assim mantinha
no semblante uma altivez inquebrantável. O Coronel
Vilocque, ensandecido, gritava, apoplético, injúrias contra
o velho militante comunista, seu prisioneiro, acrescentando
à tortura física a agressão psicológica, na verdade ultrajando
o povo estupefato e as forças armadas, com o barbarismo dos
seus atos contra um ancião indefeso. O Coronel, como se fora
um Torquemada da Inquisição, concitava o povo atônito a apoiar
o enforcamento de Gregório,
somente não o fazendo devido à pronta iniciativa de uma freira,
que acionou o Bispo Auxiliar, Dom José Lamartine, ensejando a que este, por sua vez, intercedesse
junto ao General Justino
Alves, que determinou a suspensão daquele festival sangrento.
Traumatizada por aquele espetáculo dantesco, contrário
à civilização, à formação cristã do nosso povo e aos princípios
que aprendi na Faculdade do Direito do Recife, a velha rebeldia
juvenil se reacendeu em meu espírito, levando-me à decisão de
fazer alguma coisa por aquele velho guerreiro torturado. E fiz,
assumindo resolutamente a sua defesa.
Em uma das defesas apresentadas na época, disse:
“Peço
aos ilustrados membros do Conselho Permanente de Justiça, que
levem em conta a bravura moral deste homem, digno do nosso maior
respeito. Hoje injustiçado; amanhã, quem sabe, glorificado.
A um homem desses não se deve apontar as grades da prisão. Nela
o homem poderá fisicamente tombar, mas o ideal do homem ressurgirá
por cima de suas fraquezas materiais, contingentes”.
E
encerrei afirmando:
“...peço
a absolvição de Gregório Lourenço Bezerra. E o faço como mulher,
como mãe e como advogada consciente do meu dever perante a civilização
humana”.
Em artigo publicado no Jornal do Brasil de 28 de março
de 1967, intitulado “Arma
Secreta”, o jornalista Antonio
Callado
se reportou ao julgamento de Gregório
asseverando:
“Em
Pernambuco, outro dia, o bravo comunista Gregório Bezerra foi
julgado e condenado a 19 anos de prisão. Sua advogada, Mércia
de Albuquerque, que acabou presa também, foi citar o Profeta
Isaías e ouviu do Promotor que, como marxista, ela não tinha
o direito de mencionar a Bíblia, principalmente nos seus trechos
mais subversivos. E quando a advogada, exercendo agora um direito
de marxista, quis saber onde é que o Promotor tinha encontrado
umas duvidosas frases de Marx, Lenine, Mao e Fidel Castro, o
Promotor respondeu, soberbo, que citava de araque, pois “nunca
tive tempo de ler essa gente”. Mas o julgamento valeu.“
Homem velho, mas dotado da têmpera nordestina de que
falou Euclides
da Cunha,
só por esse fato, acredito, Gregório
não sucumbiu naquele hediondo 2 de abril de 1964.
Como era de se esperar, passei a ser perseguida, mergulhei
no crepúsculo da desconfiança, da angústia. É terrível ver o
outro com a trave da desconfiança no olhar. Instalou-se no Brasil
a síndrome de CAIM,
com a delação e traição levando pessoas à tortura e à morte.
Em 1965, quando redigia um memorial de defesa, enquanto
dormia o meu filho, então com poucos meses de idade, recebi
um telefonema do advogado Boris
Trindade,
avisando-me que soubera de uma ordem de prisão contra mim. Mal
conclui a ligação e a polícia já se apresentava à minha porta.
Antes que falassem, disse-lhes que iria trocar de roupas, ao
que aquiesceram. Escrevi rapidamente um bilhete para uma querida
vizinha de prédio, Dona
Pepe, mãe
do militante comunista Ivo
Carneiro Valença,
colocando-o em uma garrafa estrategicamente pendurada em um
cordão, que mantinha na varanda, entregando-lhe o meu filho.
Retirei o cortinado e o lençol para que meu bebê não corresse
o risco de sufocar. Voltando à sala, acompanhei os policiais,
após encostar a porta de entrada. Depois de rodarem algumas
horas, como se quizessem despistar, entregaram-me na Secretaria
de Segurança, mas não fui torturada. Depois de três dias, apareceu
o Dr.
Moacir Sales, Delegado
do DOPS, que me liberou com um seco “pode ir”. Sai, como é natural,
com muita raiva.
Continuei meu trabalho, sem falsa modéstia, com muita
garra, junto aos colegas Varela
Barca, Nizi
Marinheiro, Antonio de Brito Alves, Boris Trindade, Fernando
Tasso, Roberto
Furtado e João Fonseca,
dentre outros. Destaco também o apoio prestado pelo saudoso
Prof.
Rui da Costa Antunes,
a quem importunei muitas vezes, na sua Granja Santa Felicidade,
tarde da noite, em companhia do estudante de Direito e hoje
Prof.
Cláudio
Cesar de Andrade,
em busca dos seus sábios ensinamentos.
IV
SENHORAS
E SENHORES:
Peço um minuto de silêncio em memória de todos quantos,
no valoroso Estado do Rio Grande do Norte, tombaram em defesa
da democracia, personalizando essa homenagem na pessoa de meus
clientes
EMANUEL BEZERRA
DOS SANTOS,
ANATÁLIA
MELO ALVES
JOSÉ
SILTON PINHEIRO
Emanuel, meu cliente
e do Dr. Varela Barca,
nascido na tranqüila Caiçara, filho de José
Elias dos Santos, homem afeito à imprevisibilidade do mar,
e de Joana Bezerra Elias,
uma mulher forte, nordestina da estirpe da baiana
Maria Quitéria de Jesus Medeiros, contestadora social consciente de
seu papel de mãe de um autêntico guerreiro.
Logo cedo, Emanuel
manifestou o seu inconformismo diante da selvageria de nossa
sociedade, da miséria, das injustiças e da opressão que se abatem
sobre o povo.
Não tardou a ser perseguido pela repressão. Líder estudantil,
estudou no Colégio Atheneu, da Fundação José Augusto. Presidente
da Casa dos Estudantes de Natal e estudante de Sociologia, participou
do famoso Congresso da União Nacional dos Estudantes (UNE),
em 1968, em Ibiúna, São Paulo, onde sofreu uma de suas inúmeras
prisões, sendo finalmente expulso da Universidade, cassado pelo
famigerado Decreto Lei nº 477, réplica de decreto editado por
Adolf Hitler na Alemanha nazista, utilizado
para perseguir e expulsar das escolas a juventude idealista
do nosso país, fechando todos os canais democráticos de expressão
legítima do idealismo dos jovens, induzindo-os à resistência
armada.
Emanuel foi
um dos fundadores do Partido Comunista Revolucionário - o PCR,
que se orgulhava de proclamar ser o único partido genuinamente
nordestino.
Por determinação do PCR saiu do país com destino à Argentina
e ao Chile, em 1973, vindo a ser preso na fronteira em meados
de agosto pela Operação Condor, em trabalho conjunto
com a Interpol, conduzido em seguida para Recife e assassinado
nas dependências do DOI-CODI com requintes da mais extrema perversidade,
tendo a pele que lhe envolvia o corpo retirada com cortes de
tesoura. O seu corpo foi trasladado para São Paulo, montando-se
a farsa de que o guerreiro potiguar teria sido morto em um conflito
armado naquele Estado.
A mãe de Emanuel
não aceitava falar sobre a morte do filho. Certa vez, ao insistir
no assunto, ela fitou-me e sentenciou:
“Eu
não lhe disse que procuro meu filho vivo; eu procuro completar
a história de Emanuel; eu tenho o começo e vou encontrar o fim
”.
E entregou-me a seguinte poesia dela, Joana,
para o filho martirizado:
“POESIA DE UMA MÃE AFLITA
Meu filho, eu me encontro a ti procurar
Com a notícia que estás na prisão.
O coração de mãe quase não resiste
Em saber que sofres nesta solidão.
Só a lembrança de Cristo no Calvário
É que me faz não desfalecer.
Que ele tenha compaixão de ti,
Que no sofrimento não venhas perecer.
O coração de mãe continua aflito
Só em pensar nos teus sofrimentos,
Relembrando um filho como tu és,
Viver sofrendo tamanho tormentos.
Confiando em Deus que não desampara
Todos aqueles que amam seus irmãos,
Pois cumprindo o teu dever de humanidade
Jesus há de ter de ti compaixão” .
Emanuel reunia a intrepidez de Felipe Camarão, a resistência obstinada de Ferreiro Torto, a consciência
política de Dr. Vulpiano
Cavalcanti e o desprendimento de Miguel Joaquim de Almeida Castro, o Frei
Miguelinho, herói da Revolução de 1817, executado na
Bahia pelo Conde D´Arcos,
cumpridor das ordens de D.
João VI.
Conversávamos na quietude dos cemitérios, igrejas, cinemas
e na minha própria casa. Pequenas informações e mensagens foram
deixadas nos túmulos da matriz da Boa Vista. Emanuel
tinha plena consciência de que seria assassinado se viesse a
ser preso. Parecia um tigre, astuto, rápido e desconfiado. Costumava
dizer:
“Eu
vos contemplo
Gerações futuras,
Herdeiros da paz e do trabalho.
As grades esmaecem
Ante o meu contemplar” .
Falava-me de um amor, da sua musa potiguar, musa
do missionário da liberdade, o clima ficava cinzento.
Às vezes, dizia-lhe:
“Depois
voltei-me, e atentei para todas as opressões que se fazem debaixo
do sol: e eis que vi as lágrimas dos que foram oprimidos e dos
que não têm consolador; e a força estava da banda dos seus opressores,
mas eles não tinham nenhum consolador”. [Eclesiastes, cap. 4]
Ele
ria e dizia: “Eu não sou
Deus”.
Acredito que Emanuel,
ao ser torturado, deva ter pensado como Ho-chi-min:
“Que
crime cometi, afinal ? O crime de ser devotado ao meu povo”
.
O sacrifício de Emanuel
foi cruento; todo o seu sangue, as células, a sua vida, enfim,
resultaram doados pela liberdade do seu povo, por esse verdadeiro
apóstolo. Talvez seja destino dos Emanuéis se sacrificarem pelo
povo, embora Cristo numa dimensão infinita.
Anatália Melo Alves
foi presa de madrugada, com o seu esposo Luiz
Alves de Melo, em Gravatá, cidade serrana do interior de
Pernambuco. Conduzida para Recife, durante a viagem já teve
início dilacerante tortura, ao ponto de Anatália
desfalecer com hemorragia.
Possuía apenas 27 anos de idade e já era militante do
Partido Comunista Revolucionário. Levada para o DOI-CODI e,
posteriormente, para a Secretaria de Segurança Pública, pude
vê-la, muito machucada, profundamente deprimida.
No dia 22 de janeiro de 1973, atendendo a um chamado
de Anatália, fui ao
DOPS. Pálida, debilitada, mostrou-me os seios e as coxas queimados
por cigarros, narrando haver sido vítima de violências sexuais
no DOI-CODI, me pedindo ajuda. Saí aproximadamente às 15 horas
para os contactos, retornando por volta das 17:50 horas, mas
já era tarde demais para a doce e meiga Anatália.
Pescoço com várias marcas de fios, manchas roxas nos braços
e pernas, um pouco de sangue no nariz e na boca, jazia morta.
Policiais e jornalistas falavam em suicídio. Retirei-me. Sentei-me
às margens do Capibaribe, profundamente solitária. Naquele momento
lembrei-me de Mahatma
Gandhi
“Estou
convencido das minhas próprias limitações – e esta convicção
é minha força”.
JOSÉ
SILTON PINHEIRO foi também estudante do Atheneu, aqui
em Natal, muito cedo militante do Partido Comunista Revolucionário,
assassinado brutalmente em 29 de dezembro de 1972, no DOI-CODI
do Rio de Janeiro.
Silton era
um militante alegre, disposto a cumprir as determinações do
Partido, me chamava de “madrinha”.
Certa feita, me encontrava
lecionando no Liceu de Artes e Ofícios, no Recife, quando
me aparece Silton e sorrindo disse-me:
“- A polícia está
na minha cola !”
Confundiu-se com os alunos e consegui escondê-lo naquele
educandário. Em seguida, uma prostituta deu-lhe abrigo. Arranjei
dinheiro, roupas e ele me enganou dizendo que iria para o exterior,
rumando no entanto para o Rio de Janeiro.
No Rio, Silton
foi preso, e para revelar os pontos supostamente marcados, as
unhas lhes foram arrancadas, sofreu choques elétricos e foi
empalado. Depois de morto, o seu corpo foi colocado em um automóvel,
explodindo-se o veículo.
Senti ódio. Despertava em mim um sentimento menor de
destruição, a vontade de matar, depois aflorava a consciência
de minha fragilidade e a minha alma sangrava. Questionava então:
e depois desta luta virá a paz ?
Comecei, porém, a meditar, o tempo estava maduro para
a anistia.. Projeto
pioneiro do deputado
Sérgio Murilo, de
Pernambuco, em favor do ex-Presidente
Juscelino Kubistchek, apontava esse rumo, tendo sido bem
acolhido até por alguns setores ligados ao regime. Tratava-se
de alargar o caminho, pois a anistia haveria de ser ampla, geral
e irrestrita.
Ao me referir especialmente aos meus clientes do valoroso
Estado do Rio Grande do Norte, não posso deixar de homenagear
as notáveis figuras de Ligia
Rhute Salgado Nóbrega, assassinada pela polícia no Estado
do Rio de Janeiro, aos vinte quatro anos de idade, em plena
marcha ascensional da vida; Luiz
Inácio Maranhão Filho, desaparecido até esta data, provavelmente
assassinado; Virgílio
Gomes da Silva, morto pela Operação Bandeirante no DOI-CODI
de São Paulo; Hiram de
Lima Pereira, dirigente do Partido Comunista Brasileiro,
executado pela repressão, e Djalma
Maranhão, ex-Prefeito de Natal, falecido no exílio em Montevidéu;
e do ex-Sargento da Marinha, expulso após o golpe de 1964, Edson
Quaresma, participante do seqüestro do Embaixador norte-americano
Burke Elbrick, assassinado
na Praça Santa Rita de Cássia, na cidade de São Paulo.
V
Uma das maiores barbaridades que testemunhei, praticadas
pelo aparato brutal da repressão, foi o episódio do desvendamento
da morte dos estudantes José Carlos Novais da Mata Machado
e Gildo
Macedo.
Fui procurado pelo advogado pernambucano e ex-Ministro
Oswaldo
Lima Filho,
que me apresentou aos Drs. José Henrique
e José Rodrigues, médicos ortopedistas, catedráticos e tios de José
Carlos Novais da Mata Machado,
acompanhados ainda de um terceiro ortopedista. O estudante,
filho do ex-deputado Edgar da Mata Machado,
fora assassinado nos porões da ditadura, nas dependências do
DOI-CODI. Nos jornais fora plantada a notícia de que José
Carlos falecera
em meio a um tiroteio na Av. Caxangá, em Recife, quando reagira
a um cerco policial.
As tarefas foram divididas. Enquanto o Dr. Oswaldo Lima Filho
iria pesquisar toda a Av. Caxangá sobre o suposto tiroteio,
tarefa que cumpriu palmo a palmo, restando comprovada a farsa
do inventado tiroteio, negado definitivamente por moradores
e vigilantes, a mim coube vasculhar os cemitérios em busca do
corpo do estudante, que o DOI-CODI não queria entregar à família.
Percorri os cemitérios de Jaboatão, do Barro, de Olinda,
Santo Amaro, quando então recebi a informação de que deveria
proceder as buscas no cemitério da Várzea. Rumando para lá,
um coveiro me relatou que dois corpos haviam sido sepultados
em caixões sem tampa, e eram jovens.
De posse das fotografias pude identificar, apesar do
início da decomposição, o corpo barbarizado de José
Carlos da Mata Machado.
A família de Gildo
Macedo,
pressionada e atemorizada, não reinvindicou a exumação.
Fui ao IV Exército falar com o Cel.
Cúrcio Neto,
que colocou toda a sorte de obstáculos. Mostrei-lhe as fotografias
das covas. O Coronel, com semblante de ódio, disse-me apenas
que voltasse depois. Perguntei-lhe quando. Ele então fitou-me,
impaciente, e disse: ӎ
uma pena que a senhora, tão jovem, defenda terroristas”.
Perguntei, nesta ocasião, se poderia sentar. Diante de sua anuência,
respirei fundo e comecei: “enterrar
os mortos é um direito sagrado, coronel”.
“Como
o senhor sabe, até na guerra os exércitos concedem sempre uma
trégua, respeitando o inimigo, e entregando os corpos para sepultamento”.
“Zé Carlos está morto e a família chora o seu corpo”. “O
exército brasileiro quer agora torturar a família pelo resto
da vida”. Visivelmente abalado, o Cel.
Cursio terminou
por concordar em liberar o corpo, desde que não houvesse aviso
fúnebre e a imprensa ficasse longe.
Exumamos o corpo com muita dificuldade. O Dr.
Lourenço Ipiranga de Souza
recusou-se a assinar o laudo que atestava a morte em tiroteio,
protestando veementemente. No dia seguinte, o Dr.
Nivaldo Ribeiro,
patologista, assinou o laudo.
Quanto a mim, a represália não se fez por tardar. Fui
seqüestrada e abandonada na zona do baixo meretrício, bairro
do Recife Antigo, às três horas da manhã, depois de vagar sem
destino, no interior de um automóvel em velocidade, sofrendo
ameaças de ser jogada na via pública por quatro homens armados,
dentre eles por Francisco Antonio de Almeida
Monteiro,
vulgo “Chico
Monteiro”,
dono da Padaria SION, e o empresário de transportes Edson
Souto, que
me injuriou fortemente com palavras de baixo calão e gestos
obscenos. Fui socorrida por uma prostituta apelidada “BISCUÍ”,
que surgiu à minha frente qual uma nova Maria
Madalena,
confortando-me e enxugando as minhas lágrimas.
A
opressão, o arbítrio e a prepotência não davam trégua.
VI
Foi um tempo verdadeiramente incrível, mas que não conseguiu
abafar por completo o senso de humor do nosso povo. O Auditor
Militar, Dr.
Antonio Carlos Seixas Teles,
condenou um réu nos seguintes termos:
“Por
todas essas razões... resolve o Conselho de Justiça da Aeronáutica...
julgar procedente a denúncia contra os acusados Carlos Alberto
Soares... e o acusado que atende pelo codinome de “JACARÉ” à
pena de prisão perpétua, na conformidade do artigo 28 do Decreto-Lei
898/69” (Processo nº 93/70, sentença prolatada em 30 de maio
de 1972 – Auditoria da 7ª CJM).
Conta-se no Cenóbio português que os padres condenaram
formigas por dizimarem hortaliças. Não perdi, evidentemente,
a oportunidade, e no recurso de apelação, lembrei que o réu,
deste modo insólita e grotescamente qualificado, somente poderia
cumprir a exacerbada pena de prisão perpétua em algum igarapé
da Amazônia. Lembrei, finalmente, que todo o brasileiro apelidado
de “JACARÉ” passava
a correr o sério risco de terminar sua existência nos Igarapés.
O chiste valeu-me a inimizade do Juiz Auditor, que pelo
seu servilismo chegou a ser Ministro Presidente do STM.
O caso, porém, não foi único, pois no processo a que
responderam Alvamar
Costa Queiroz,
Lindemberg Silva, Irapuam Fernandes
Rocha, Maurílio Anísio de Araújo, Luíza Maria Nóbrega e
José Silton Pinheiro,
o Dr.
Antonio Carlos Seixa Teles
condenou um réu que também fez parte de processo sem a devida
identificação e qualificação, atendendo pelos codinomes de “João
Raul” e
“Rubens”,
e da mesma maneira aberrante um glutão alcunhado de “Gordo”,
em sentenças extraordinariamente ineptas, contrariando os mais
elementares princípios jurídicos processuais.
VII
O golpe de 1964 escreveu a sua história desumana com
o sangue de inocentes. Quem determinava a tortura, ou pelo menos
se omitia e calava diante dela, como o General
Presidente Garrastazu Médici, não conhece com detalhes uma
sessão de horrores, o cheiro de sangue, o odor de fezes e urina,
o extertor de corpos mutilados, os gritos lancinantes dos eletrocutados,
o alarido dos torturadores – verdadeiras bestas humanas, os
gritos das vítimas de estupro, os gemidos dos patriotas.
A estrada
que a quartelada de 1964 construiu foi a estrada da morte que
deixava sua marca com a viuvez, a orfandade e a incerteza. Como
disse o deputado Alencar
Furtado, em célebre pronunciamento contido no seu livro
“Salgando a Terra”:
“O
programa do MDB defende a inviolabilidade dos direitos da pessoa
humana para que não hajam lares em prantos; filhos órfãos de
pais vivos – quem sabe... – mortos, talvez... Órfãos do talvez
e do quem sabe. Para que não hajam esposas que enviúvem com
maridos vivos, talvez; ou mortos, quem sabe ? Viúvas do quem
sabe e do talvez” .
Mataram grande parte da liderança, mas não conseguiram
sufocar o sentimento da liberdade.
Séculos de história separam os heróis de nossa geração
da presença dos heróis do passado. Nessa dimensão, porém, o
ontem, o hoje e o amanhã se confundem.
A moral política – bem disse BECARIA
no seu livro imortal “Dos
Delitos e das Penas” – não pode proporcionar à sociedade
nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre os limites
indeléveis do coração do Homem.
“Liberdade não
é nada que nos seja dado” - proclamou sabiamente Spinosa.
VIII
Em notável discurso encerrando o seminário intitulado
“O Homem e a Liberdade” (Florianópolis, 1975, Instituto Pedroso
Horta, PMDB), ULISSES
GUIMARÃES proclamou:
“
O homem e a liberdade ou o homem é a liberdade?
Não
são categorias distintas, homem e Liberdade,
pois o homem é a Liberdade”.
Penso
que o caráter do ser humano é plasmado antes mesmo do primeiro
choro, que é o grito de protesto da criatura frente ao Criador.
Pude presenciar na minha infância, cheia de incertezas,
uma criança que chorava, vítima da autoridade insensata de um
senhor, que o obrigara a transportar cal do depósito para as
carroças dos compradores, sem pensar por um instante no fato
de que o menino, com apenas oito anos de idade, fragilizado
no físico e na alma, era seu neto. Refiro-me ao meu irmão Pedro,
cujo nome homenageava o nosso avô. Ainda sinto presente a imagem
do maninho todo lambuzado de cal, com os olhos avermelhados.
O
episódio iniciou uma verdadeira revolução particular na minha
vida. Enfurecida na minha imaturidade infantil, juntei numa
cesta pedras, garrafas vazias, tudo que fui encontrando para
substituir uma metralhadora checa, como diria Célia Guevara.
Escondi-me no empório do meu avô rico e prepotente, e esperei,
curtindo a surpresa que reservara para ele, que logo cedo aprendeu
a me respeitar. Tão logo saiu, demorei um pouco, mas em seguida
pulei o balcão e comecei a apedrejar as vitrines, as louças
e candeeiros que estavam nas prateleiras, tudo reduzindo a cacos.
Era o meu protesto contra injustiça, praticada contra um ser
humano indefeso. Depois busquei abrigo na casa de minha avó,
já falecida, mulher forte, matriarca e amarga, mas eu era tudo
para ela. Meu avô olhou-me demoradamente, e saiu sem dizer uma
palavra.
Cedo aprendi que as crianças choram mais do que sorriem.
Não imaginei, naquele tempo, que adulta viria defender
crianças que já choravam antes mesmo de nascerem.
Em 1976, já envolvida nas lutas pelas liberdades individuais,
vi morrer uma criança pela violência e intransigência da ditadura
militar.
Em Recife, meu
cliente, preso em sua residência, espancado, viu todos os seus
móveis destruídos à bala. Maria
Liege, sua
esposa, voltava do médico com Elenira,
fruto do amor do casal, quando foi surpreendida por uma vizinha,
que entregou-lhe uma sacola, algum dinheiro, e contou-lhe o
ocorrido. Apavorada, Maria
Liege fugiu,
e durante a fuga internou a filha em um hospital do interior,
onde a menor contraiu infecção. Com os verdugos em seu encalço,
Maria Liege
deu continuidade à fuga, com a filha Elenira
febril e já apresentando convulsões. Finalmente, chegaram em
Salvador, porém Elenira
faleceu. Coube-me a missão ingrata de ir ao quartel de bombeiros
da PM, onde Artur
estava detido, dar-lhe a notícia. Após o comunicado
terrível, ficamos sentados de mãos dadas, frente a frente,
repartindo uma dor solidária, até que um oficial nos interrompeu,
identificando-se como psicólogo, e passou a falar com Artur,
que quando me viu sair começou a gritar o nome de sua filha
e o meu nome, pedindo-me para ficar.
Logo depois Artur
foi julgado.
Iniciei assim a defesa:
“A
memória de Elenira Rocha Paula, falecida com um ano e meio de
vida, por obra de uma sociedade cada vez mais insensível aos
direitos humanos e ao ideal de Justiça”.
Nesse mesmo processo, o casal Manuel
Dias da Fonseca Neto
e Iracema Serra Azul da Fonseca,
presos e espancados diante dos filhos Luiz
Ernesto Serra Azul da Fonseca,
três anos de idade, e Andréa
Fonseca Serra Azul,
com dois anos de idade. A menina foi arrebatada dos braços da
mãe e junto com o irmão foram as crianças conduzidas para a
residência de uma agente policial. Antes o menino esteve internado
em um hospital que não localizei. Também nunca consegui descobrir
porque furaram a cabeça de Ernesto
em vários pontos.
Fui
à luta com Paulo
Cavalcanti
e pedi ajuda aos grupos de Direitos Humanos Internacionais,
à Igreja Católica, mas a descoberta do esconderijo veio através
de uma informação de uma agente policial que fora minha aluna.
Quando tive a certeza do local comecei a denunciar. Iracema
foi libertada e recebeu as crianças na Polícia Federal.
Fátima Elizabeth,
no sétimo mês de gestação, foi despida e amarrada em uma tábua,
ameaçada de ter o filho retirado do ventre com a ponta de uma
peixeira.
Ana Maria Santos,
presa com o companheiro João Bosco Rolemberg,
em adiantado estado de gestação, perdendo sangue. Consegui que
meu médico Dr.
Francisco Henrique Barbosa,
a visitasse no DOPS. Foi transferida para o Hospital Português,
e, com a interferência da Igreja Católica, foi transportada
posteriormente para a minha residência, onde permaneceu por
algum tempo.
Josefa Lúcia de Andrade
e Luciano
Siqueira Rosa,
hoje vice-prefeito da cidade do Recife, presos no interior de
Alagoas, torturados, aviltados, conduzidos para Maceió e depois
Recife, Josefa,
já no oitavo mês de gestação, foi levada ao banco de réus, estigmatizada,
vilipendiada mas sempre digna, aguardava o julgamento consciente
do seu papel histórico.
Iniciei a defesa assim:
“Antes
de entrar no mérito do processo, em defesa de Luciano Siqueira
Rosa e Josefa Lúcia invoco a Constituição Federal em seu art.
153:
“A
Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes
no país a inviolabilidade a vida, a liberdade, a segurança individual”.
“Hoje,
ou no máximo amanhã, o filho do casal sairá do não ser para
o ser, e se faz necessário que a sua individualidade primeira
não seja violada com os grilhões do cárcere.
Neste
caso específico da minha Constituinte – os Srs. Juízes hão de
convir, como cidadãos, como pais e portadores cada um de sua
verdade particular, mas que têm um ponto comum, na afetividade
que caracteriza a nossa raça, não vislumbro uma sociedade brasileira
capaz de estigmatizar um novo ente social, que emerge de uma
realidade fisiológica para a nossa realidade social. Condenar
Josefa Lúcia é impregnar o seu ser de uma gama de angústias
e ansiedades que limitarão o exercício do sacrossanto dever
de mãe.
Não
foi por outras razões que a bíblia registra a fuga de Maria
e José através do deserto, perseguidos pelas hostes insensíveis
e intolerantes do todo poderoso da terra, Herodes, como um dos
primeiros milagres, quando as palmeiras, testemunhas da grandiosa
evolução da natureza, curvaram-se sobre aquele casal que conduzia
um novo ente social. Foram bilênios de evolução biológica que,
numa manifestação de submissão, contrariando as próprias leis
que orientaram o seu caminhar filogenético, se debruçaram sobre
aquela tenra criança, num simbolismo de quanto
significa para Deus todo Criador a mensagem de vida que
existe em cada pequenino ser, que inicia a sua caminhada entre
os homens, muitos deles herdeiros póstumos de Herodes”.
Depois de todo esse sofrimento, a Revista VEJA, em matéria
intrigante e maliciosa, ainda acusou Luciano de ser informante
dos militares do golpe de 1964.
Após a chacina do Loteamento São Bento, em Paulista,
Pernambuco, vi Soledad
Barret Viedma,
“SOL,
morta,
despida dentro de uma barrica e aos pés um feto entre cinco
e seis meses. Tirei a anágua e cobri a nudez daquele corpo jovem
profanado e silenciado pelos “pitibus” da repressão. Duas vidas
interrompidas, uma na luta política da cidadania, e a outra
sem sequer ter tido a chance da vida plena, sacrificadas para
fazer valer a liberdade, legado de ambas à posteridade.
Outro caso envolvendo crianças se deu no processo em
que foram acusados José
Correia de Souza, José Gomes Novais, Josué Correia de Souza,
Roberto Ferreira, Juarez Johaudne Etcheverria (codinome
usado pelo deputado Aldo
Arantes), que conseguiu com a minha colaboração fugir antes
de ser identificado, por ação direta de AP, Maria Auxiliadora Cunha Ferreira e Rosa
Santos de Oliveira, presos no distrito de Pariconha, Água
Branca, Alagoas. Ao ir visitá-los no referido estado nordestino,
constatei que se encontravam também presas três crianças contando
entre quatro e sete anos, filhos de Auxiliadora. Imediatamente protestei e comuniquei o fato ao Juiz Auditor
Militar da 7ª CJM. Os menores impúberes ainda permaneceram encarcerados
até o dia do julgamento, quando chegaram acompanhando a mãe.
Nesse momento coloquei nos braços o menor e protestei. Somente
então foram liberados.
Meu filho Aradin Clementino de Albuquerque
também é uma das vítimas, privado da companhia e assistência
materna,
traumatizado por haver presenciado algumas das minhas
diversas prisões, e por telefonemas anônimos anunciando por
vezes a minha morte.
Iracema,
uma bela menina de olhos azuis, que se lançava em meus braços
com imenso carinho, filha de Lúcia Emília de Carvalho Araújo,
presa política filiada ao Partido Comunista Brasileiro, participante
do Grupo dos Onze, professora rural na localidade “Cova
da Onça”, em Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco. Fui advogada
de Lúcia Emília,
Concluído o processo e sendo liberada, despediu-se de mim e
nunca mais nos encontramos.
No corrente ano, acometida de forte crise na coluna, com dores
intensas, fui massageada por uma senhora que não aceitou pagamento
e, diante da minha insistência, caiu em pranto dizendo que o
seu desejo era encontrar a sua mãe. Era Iracema, a
menina de olhos azuis, filha órfã do talvez e do quem sabe,
procurando sepultar a mãe e esse passado tenebroso.
IX
A
tripla homenagem que recebo agora foi, quanto ao título de cidadã
norte-riograndense, uma iniciativa da nobre Deputada MÁRCIA
MAIA, a
quem agradeço sensibilizada a largueza do gesto, por simbolizar
na minha pessoa a sua solidariedade cristã e humanista
aos oprimidos, perseguidos, torturados
e injustiçados.
O título de cidadã natalense foi uma iniciativa do nobre
Vereador HUGO
MANSO, Presidente
da Comissão de Direitos Humanos da Casa de Frei Miguelinho,
que ao lado de ROBERTO
MONTE, Presidente
do Centro
de Direitos Humanos e
Memória Popular e
do Conselho
Estadual de Direitos Humanos,
tem dignificado as tradições humanistas de Natal e do Rio Grande
do Norte.
O título estadual de “Defensor dos Direitos Humanos”
é por mim recebido com igual respeito e humildade. Estendo
essas honrarias e o seu significado a todos os que sofreram
na luta por liberdade e justiça.
Vejo nesta homenagem, singular pela amplitude do ato
conjunto, a transcendência do apoio, significando o reconhecimento
a um trabalho árduo em defesa dos direitos mais fundamentais
do ser humano, para o restabelecimento, entre nós, da primazia
da força do Direito sobre a força bruta.
Além das minhas arraigadas convicções, como mulher e
mãe sinto-me à vontade para atuar nas causas que envolvam a
liberdade política.
Realmente, não foi fácil. Enfrentei resistências familiares,
a incompreensão de amigos e as aleivosias espalhadas pela repressão,
que pretendia me desacreditar, e por amigos de ontem, afogados
ou na própria mesquinheza ou nas intrigas e fofocas de pretensos
militantes, cuja atuação se restringia a falar mal da vida alheia,
à alcova e à mesa de bar.
Hoje a minha saga é defender os encarcerados e os excluídos
sociais.
Há mil formas de acreditar na vida e não somente de destruí-la.
Bem aventurados os que sabem dignificá-la por atos e práticas
que somente o tempo julgará em definitivo, ultrapassadas as
paixões geradas pela luta e pela controvérsia.
Sou uma mulher simples do povo, igual a tantas outras.
Desde menina aprendi a lutar pelo meu espaço, a defender o que
julgava verdadeiro, a reagir contra o injusto. Esses traços
da minha personalidade foram decisivos para me dar força e determinação
na defesa dos presos e perseguidos políticos.
Apesar de todos os horrores do meu tempo, acredito na
bondade humana
e faço questão de proclamar que se não fosse esse sentimento
superior, que se sobrepôs em alguns a outros interesses menores,
teria sido muito pior.
Vejo neste ato expressivo da generosidade
do povo potiguar o significado político essencial de
manifestação afirmativa e sincera para que esse tempo de ditadura,
de violência e tortura não volte nunca mais.
Aqui no Rio Grande do Norte e em Pernambuco teve início,
na guerra holandesa, o sentimento nativista. De par com a defesa
intransigente da liberdade política, a ação social para reduzir
as desigualdades e promover o desenvolvimento sempre foi uma
luta presente de importantes segmentos na história desse Estado
da Federação e do qual me orgulho de ser, agora, sua cidadã.
Autoridades
presentes ou representadas,
Senhoras
e Senhores:
Anteriormente, as minhas vindas a Natal sempre ocorreram
na escuridão da noite, em encontros furtivos com clientes e
colegas, fugindo dos rigores e da vigilância da repressão.
Nesta data inesquecível, pela primeira vez sob a luz
radiosa da “noiva do sol”,
posso contemplar as belezas naturais fulgurantes do Rio Grande
do Norte, e usufruir, no ambiente festivo da liberdade, o convívio
fraterno do povo potiguar.
Do fundo do coração, vos digo:
Muito obrigado !
MÉRCIA ALBUQUERQUE
FERREIRA