Exmos.
Srs. Membros da Comissão de Inquérito
“Declarou-lhe
Jesus: Por que me interrogas? Pergunta aos que lhes falei. Se
falei mal, dá testemunho do mal; mas se falei bem – por que me
feres?”.
(O Evangelho Segundo São João,
capítulo 18, versículo 21).
“Todo homem acusado de um ato
delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que sua
culpabilidade tenha sido provada de acordo com a lei”.
(Declaração Universal dos Direitos
Humanos, artigo XI).
} “O ônus da prova cabe
a quem a alega”.
(Norma Internacional de Direito).
Senhores Julgadores:
Difícil,
extremamente difícil, afigura-se aos estudantes, que estas RAZÕES
DE DEFESA subscrevem, oferecer contra-argumentação a fatos e ocorrências
vago e imprecisamente rotulados de “propaganda subversiva”.
O ofício
n.º 8, de 16 de abril em curso, dirigido pelo Magnífico Reitor
da Universidade Federal de Pernambuco ao Diretor, em exercício,
da Faculdade de Medicina – documento que serve de pedra angular
ao presente inquérito administrativo – não individualiza, de um
modo geral, a participação dos abaixo-assinados, como agentes
do crime a punir, nos atos de preparação e consumação de evento
delituoso. Pelo contrário, o ofício do Magnífico Reitor da Universidade
Federal de Pernambuco, como peça inicial de acusação, é sintético,
para não se dizer simplista, omitindo as circunstâncias e características
dos fatos puníveis, englobando acusações e deixando de relacionar
a participação de cada estudante, individualmente, no conjunto
das infrações.
Como denúncia,
na acepção comum de revelação de fatos passíveis de penas disciplinares,
no âmbito administrativo, o ofício do Magnífico Reitor da Universidade
Federal de Pernambuco não tem força para produzir e formalizar
nenhuma ação punitiva, posto que, incaracterístico e fluido, não
descreveu, com minúcias (a lei processual diria: “com toda as
circunstâncias”) a conduta de cada indiciado nas múltiplas formas
da co-autoria nos delitos de “propaganda e atividades subversivas”.
“O conceito
de co-autoria ou co-delinquência, em face da doutrina perfilada
pelo nosso Código Penal – diz o mestre de Direito JOSÉ FREDERICO
MARQUES, em oportuno artigo publicado na “Revista Brasileira de
Criminologia e Direito Penal”, n.º 17, abril/junho de 1967, pág.
33 – tem como pressuposto lógico e imanente o vínculo subjetivo
e psicológico, ou seja, a consciência de cooperar na prática do
crime. Portanto, quando uma peça acusatória inicial alude ao assunto
ou fala em trama delituosa, deve necessariamente indicar as circunstâncias
objetivas reveladoras da co-participação”.
Sem que
se descreva ou relacione todas as ações do agente, na efetiva
participação do fato dito criminoso, não é dado a ninguém sujeitá-lo
aos percalços das sanções de qualquer espécie.
Lacônico,
impreciso e manifestamente omisso quanto às responsabilidades
individuais, o documento que instrui o presente inquérito administrativo
é, em linguagem jurídica, ATÍPICA, tornando-se, por isso, do ponto
de vista penal, IRRELEVANTE.
“Em se
tratando de denúncia – adverte JOSÉ FREDERICO MARQUES, rev. cit.,
pág. 37 – não se pode admitir imputação vaga, genérica, indefinida
e abstrata, visto que a lide ou causa penal deve, desde logo,
ser individualizada”.
A própria
defesa, em face da insegurança e vagueza das acusações irrogadas
aos estudantes, não pode ser exercida com adequação, uma vez que
não se sabe o grau de atuação, nos pretendidos delitos, de cada
um dos abaixo-assinados. os acusados ficam, assim, ao sabor das
contingências do inquérito administrativo, surpreendendo-se diante
de cada informação, acalmando-se à revelação de umas, ou se inquietando
à evidência de outras, num processo kafkeano dos mais angustiantes,
em que a última acusação poderia resultar no último testemunho.
A doutrina
da “formação progressiva da imputação” é repelida pelo direito
pátrio. Para que a Defesa se exerça com exatidão, ilidindo todos
os pontos do processo da contraditoriedade, é necessário que,
por seu turno, as acusações sejam positivas, concretas, indissimuláveis.
Um dos
maiores juristas brasileiros, OROZIMBO NONATO, a esse respeito
decidiu, como Ministro do colendo Supremo Tribunal Federal:
“Compreende-se
a exigência da lei, que tira ao fito não só dar acusação linhas
nítidas que permitem o desenvolvimento lógico e regular do processo,
como, PRINCIPALMENTE, (o grifo é nosso) oferecer ao acusado referências
certas e inequívocas que lhe permitam defesa clara e completa”.
(apud., “Repertório de Jurisprudência do Código de Processo Penal”,
vol. 1º, pág. 100).
Já COSTA
MANSO, em obra clássica, editada há quase meio século, condenava
as peças de acusação que, baseadas em pontos imprecisos e indeterminados,
“dificultariam, senão impossibilitariam a defesa”. (“Casos Julgados”,
1920, págs. 209 e 210).
Somente
a ele, ao Magnífico Reitor da Universidade Federal de Pernambuco,
é que incumbiria trazer ao bojo do inquérito administrativo, como
seu iniciador, as provas do crime. Actor
probat actionem. Ao autor é que cabe provar o que afirma,
“o que quer dizer que é ele quem deve fornecer os elementos de
juízo ou produzir os meios indispensáveis para determinar-se a
exatidão dos fatos que alega como fundamento de sua ação e sem
cuja demonstração perderá o seu pleito”. (ANTÔNIO DELLEPIANE,
“Nova Teoria da Prova”, 1942, págs. 17 e 18).
Transferindo
a outrem o ônus da prova, o Magnífico Reitor da Universidade Federal
de Pernambuco violentou, data vênia, u’a norma tradicional do
direito de todos os povos civilizados, conquista da inteligência
e do espírito de lucidez de gerações e gerações de eminentes juristas.
O Código
de Processo Penal brasileiro, que serve de paradigma às leis que
prescrevem orientação para qualquer gênero de inquérito administrativo,
estabelece, taxativamente, em seu Art. 156:
“A prova
da alegação incumbirá a quem a fizer”.
Como pode,
então, cada um dos indiciados nesse inquérito sumário, destinado
a apurar propaganda ou atividade subversiva, situar a sua Defesa,
adequá-la aos itens da acusação, projetá-la no tempo e no espaço,
se a peça inicial da ação incriminatória dilui todos os réus na
maré-montante de denunciações genéricas e indefinidas?
Sobradas
razões, portanto, têm os abaixo-assinados, por todos os títulos,
além dos legais, de promover a sua Defesa do modo coletivo, num
mesmo e único memorial, refutando, em comum, aquilo que lhes foi
irrogado em comum, desfazendo, englobadamente, tudo quanto lhes
foi atribuído também englobamente, não sem ferir, é verdade, os
preceitos do bom-senso, que exigiria para cada indiciado uma defesa
pessoal, se acaso tivessem sido pessoais as incriminações.
AS PROVAS
DO INQUÉRITO
Cada um
dos estudantes, que estas Razões assinam, teve vista dos autos,
em dias e horas previamente designados, com o objetivo de que
pudesse colher subsídios para a sua Defesa.
Vão trabalho
de pesquisa, de verdadeira pesquisa de laboratório, pois que esse
inquérito é um inquérito SEM PROVAS! Ninguém, nenhuma testemunha,
de viva voz, foi ouvida pela Comissão de Investigação. O que existe,
nos autos, à guisa de PROVA, é uma informação pessoal de professores
acerca dos pontos de acusação levantados contra os alunos da Faculdade
de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco, quanto à alegada
“propaganda subversiva”.
Se levadas
à conta de PROVAS, essas informações, por elas, não servirão de
fundamento à condenação doa abaixo-assinados. Basta lê-las, uma
a uma, para se chegar à conclusão de que não acusam ninguém, rechaçando,
de um modo geral, as increpações contidas no ofício n.º 8, de
16 de abril corrente, da Reitoria da Universidade Federal de Pernambuco.
A rigor,
nenhuma prova foi colhida pela Comissão, no sentido de robustecer
ou individualizar, como ilícita, a conduta de qualquer dos estudantes
indiciados.
Em contra-partida,
juntamos a este Memorial dezenas de documentos dos mais expressivos
e idôneos sobre a atuação de cada um dos abaixo-assinados na vida
universitária. Através de cada um, igualmente, poder-se-á aferir
o comportamento dos acusados nos cursos mantidos pela Faculdade
de Medicina, cujos mestres ou regentes de Cátedras são os primeiros
a testemunhar a idoneidade moral e a boa conduta de seus alunos,
reduzidos, hoje, à condição de novos RÉUS SEM CRIME nesse inquérito
administrativo.
Além disso,
como demonstração cabal e veraz da conduta civil ou pública dos
indiciados, anexamos também dezenas de certidões da Auditoria
de Justiça da 7ª Região Militar, em que se comprova a ausência
de antecedentes político-criminais dos abaixo-assinados.
Vale salientar
os documentos que se referem ao estudante MARCOS JOSÉ BURLE DE
AGUIAR, o único citado, nominalmente, pelo Magnífico Reitor, em
seu ofício já mencionado.
Inúmeros
professores da Faculdade de Medicina declaram, insuspeitamente,
que MARCOS JOSÉ BURLE DE AGUIAR nada tem de negativo, no que tange
a problemas de disciplina, de moral e de comportamento político.
Nos cursos de Reabilitação, mantidos pela Escola, sob a chefia
do Prof. Ruy Neves Batista, o estudante MARCOS JOSÉ BURLE DE AGUIAR
– di-lo o mestre em apreço – “mostrou-se sempre solicito em colaborar
com a Coordenação dos referidos Cursos, em problemas surgidos
entre os Corpos docente e discente, especialmente no que diz respeito
à discussão do currículo”.
Ressalte-se,
dentre os documentos alusivos à boa conduta do estudante em questão,
o testemunho do atual Diretor da Faculdade de Medicina, Prof.
Jorge de Oliveira Lôbo, expresso nos seguintes termos:
“DECLARAÇÃO
Declaro,
para os devidos fins, que MARCOS JOSÉ BURLE DE AGUIAR é aluno
desta Faculdade, matriculado sob o n.º 217, na 4ª série do curso
Médico, e que o mesmo, na qualidade de Presidente do Diretório
Acadêmico desta Unidade, é representante do corpo discente no
Conselho Administrativo e Congregação, desta Faculdade. Outrossim,
declaro que nada consta nos Arquivos desta Faculdade contra a
conduta moral do referido aluno. Recife, em 25 de fevereiro de
1969. (Ass) Professor Jorge de Oliveira Lôbo, Vice-diretor em
exercício”.
Eis aí,
eminentes membros da Comissão de Inquérito, o depoimento do Exmo.
Sr. Diretor da Faculdade de Medicina sobre a conduta do único
indiciado nominalmente citado no ofício que deu origem às presentes
investigações. Se algo houvesse contra o estudante em questão,
o eminente professor Jorge de Oliveira Lôbo, padrão de dignidade
e de correção moral, não silenciaria, conhecida a sua maneira
de agir, de atuar na Escola.
IRRETROATIVIDADE
DAS PENAS
Quer-se
aplicar aos abaixo-assinados, por pretensos crimes ocorridos em
1968, as sanções do Decreto-lei n.º 477, de 26 de fevereiro de
1969, que prevê, inclusive, a pena de banimento da vida universitária
por três anos!
O princípio
da irretroatividade da lei, no direito penal, é indiscutível.
Já dizia SANTO AMBRÓSIO, em cujo pensamento se inspiraram os criminalistas
para a fixação da norma legal: “Poena criminis ex tempore legis
est, quae crimen inhibuit”. A pena de um crime é a do tempo da
norma que o reprimiu.
Preceito
integrado na conquista da própria Civilização Humana, a irretroatividade
das leis, na prática do Direito intemporal, foi proclamado desde
a Revolução Francesa, constando da DECLARAÇÃO DOS DIREITOS DO
HOMEM de 1789.
À época
em que teriam sido cometidos os crimes presumivelmente atribuídos
aos estudantes que assinam as presentes Razões de Defesa, não
havia a figura de banimento de vida escolar, como sanção penal.
Por conseguinte, não se pode aplicar-lhes, agora, por pretensa
infração anterior, uma lei que começou a viger em 1969, muito
tempo após os fatos considerados delituosos.
De Declaração
Universal dos Direitos do Homem, votada em Assembléia Geral da
ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, e solenemente assinada pelo Brasil,
consta esta NORMA:
“Ninguém
poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que, no momento,
não constituam delito perante o direito nacional ou internacional”.
Acrescentando a declaração: “Também não será imposta pena mais
forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável
ao ato delituoso”.
Na aplicação
desses princípios, diz o preclaro jurista TEMÍSTOCLES BRANDÃO
CAVALCANTI, hoje Ministro do egrégio Supremo Tribunal Federal,
“não deve haver sutilezas”. (“A Constituíção Federal Comentada”,
vol. III, pág. 238).
Ainda em
face destas razões de ordem jurídica, o inquérito administrativo,
sumário, instaurado contra estudantes da Faculdade de Medicina,
da Universidade Federal de Pernambuco, é falho, para não dizer
ilegal.
Em nome
da DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS DO HOMEM fazemos esta advertência,
que há-de calar, se não na consciência jurídica dos membros da
Comissão de Inquérito, pelo menos no seu coração.
ANÁTEMA
OU DIÁLOGO?
A marginalização
de jovens estudantes da vida cultural de um País é um atentado
ao futuro. A rigor, nenhuma Nação do Mundo, hoje em dia, pode
dar-se ao luxo de desprezar a contribuição de suas elites intelectuais,
ainda que se trate da mais poderosa e desenvolvida. Quanto mais
o Brasil, onde os índices de incultura e analfabetismo ainda alcançam
padrões alarmantes.
Da formação
técnica, profissional e científica não é lícito retirar o direito
à reflexão sobre os problemas sociais e econômicos. Não pode haver
compartimentos estanques entre a instrução e a participação na
vida da sociedade. Assim como a Paz é, nos tempos de agora, como
disse Sua Santidade o Papa Paulo VI, o sinônimo de Desenvolvimento,
por duras penas há-de se compreender que o Diálogo é o sinônimo
de Democracia.
Urge evitar
confusões, algumas delas preestabelecidas, entre agitação da mocidade
e agitação subversiva. Um povo que, por suas camadas mais jovens,
não se inquieta e não luta por seus destinos, é um povo fadado
ao insucesso.
Não é por
mera coincidência – e aqui deixamos de lado a modéstia, porque
é preciso dizer a VERDADE – não é por mera coincidência, repetimos,
que entre os estudantes que assinam as presentes RAZÕES DE DEFESA
se encontram alguns dos MELHORES da Faculdade de Medicina, por
sua dedicação ao aprendizado, por seus dotes de inteligência,
por seu empenho em servir à pátria e ao seu povo, como profissional
da Medicina.
O acesso
ao ensino superior, no Brasil, é uma verdadeira escalada, para
usarmos um termo corrente, na luta pela vida. Muitos de nós, ou
quase todos, viemos de camadas socialmente desprotegidas. O ingresso
no Curso Superior, galardão dos mais capazes economicamente, custou-nos,
e à nossa família, vicissitudes diuturnas, privações financeiras,
sacrifícios ingentes. E nós fizemos por onde honrar essas privações,
todos esses sacrifícios, todas essas vicissitudes, participando
da vida universitária, discutindo seus problemas, procurando buscar,
não importa se por caminhos inoportunos, às vezes, o rumo certo
para a consecução dos altos propósitos de servir ao Brasil, como
cientistas e como cidadãos.
Proscrever-nos,
em massa, do meio universitário, em razão de problemas que poderiam
ser solucionados em discussões francas, abertas e democráticas,
é agravar, em última análise, as próprias condições materiais
do País, a braços com questões magnas, de profilaxia, de higiene,
de endemias e enfermidades ainda crônicas.
Nós precisamos
do Brasil.
E ele de
nós.
Pedimos
Justiça aos homens de boa-fé.
Recife,
de abril de 1969.
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