Mércia
Albuquerque (final)
Jornal do Commercio – 13.02.1989
Você é capaz de
enumerar em quantos processos você esteve envolvida?
Quem
os denunciou?
Quem
os acusava à época?
E
sobre Matta Machado, o que tem a dizer?
O amor e a morte na agonia do
cárcere
Na
próxima semana, a advogada Mércia Albuquerque está entregando
a uma editora de São Paulo os originais do primeiro volume de
seu livro “Em Cima dos Autos”, onde relata toda a sua trajetória
em defesa de estudantes e presos políticos, nas décadas de 60
e 70. Hoje ela está encerrando o longo depoimento ao repórter
Ronildo Maia Leite sobre as experiências vividas. Relembra,
com detalhes, a prisão e morte do estudante Odijas de Araújo
e Matta Machado. Relata, ainda, em meio a lances dramáticos,
histórias mais ou menos cômicas, como o julgamento e condenação
de uma pessoa conhecida apenas pelo codinome Jacaré. O processo
chegou a ser ridicularizado, quando chegou ao Supremo Tribunal.
E também histórias de amor dentro do cárcere, como a que ocorreu
com o ex-deputado Luciano Siqueira e sua companheira. É o seguinte,
o depoimento final de Mércia Albuquerque:
Mércia
–
Havia coisas absurdas: François Silvestre de Alencar, foi preso
e processado por citar Brecht; a estudante Edileusa trabalhava
na Farmácia Drogaluz comentou que “era um absurdo o secretário
de segurança taxar de subversivos os motoristas de taxi, porque
três mil deles tinham feito uma passeata contra a morte de um
colega que tinha sido vítima de um assalto. Essa moça foi presa
e conduzida à secretaria de Segurança Pública por cinco agentes.
Ela foi ouvida e no outro dia, o Cláudio César e João Barbosa
me procuraram pra que eu a acompanhasse ao DOPS, porque ela
iria novamente prestar outro depoimento – Edileusa chorava agarrada
a mime tremia descontroladamente. Eu tinha apoio não só de advogados,
como do povo, de jornalistas. Por exemplo: Alberto Romero, do
“Jornal do Brasil”; Arnóbio Andrade e Fernando Abelha, do “Correio
da Manhã”; Zélia Tavares, do “O Globo”; Alberto de Oliveira,
do “Estado de São Paulo”; Clóvis Assunção, da “Última Hora”;
Divane Carvalho, do “Jornal do Brasil”; Nivaldo Araújo, do “Diário
de Pernambuco”; Paulo Tobias Granja e Jorge Silva, do “Diário
de Notícias”. Eu tinha apoio na imprensa como tinha apoio de
colegas de vários Estados. Eu não tinha problema. Com os processos,
ligava para Heleno Fragoso, ia ao Dr. Rui Antunes. Ia recebendo
apoio. Pra você ver que a defesa de Pernambuco não foi minha,
foi de muita gente. Tinha processo com 80 réus. Bóris Trindade
sempre me apoiou, isso não esqueço, e Regina, sua esposa sempre
recebeu-me carinhosamente.
Fale
sobre Luciano Siqueira Rosas.
Mércia
– Eu
ia até deixar pra falar em outra ocasião de Luciano Siqueira
Rosas, mas eu vou lhe dizer o que lembro. Eu fui procurada pelo
irmão de Luciano Siqueira Rosas. Ele teria sido preso, estaria
em Maceió na Polícia Federal, com a esposa Zefinha.
Luciano
era o que, na época?
Mércia
– Ele
era estudante. Eu recebi vários telefonemas anônimos. Eles diziam
que eu tomasse providências, que Luciano iria sumir. Eu tinha
uma ex-aluna que tinha uma certa abertura na Polícia Federal,
em Maceió. Pedi que ela me acompanhasse até Maceió. O superintendente
eu o conheci desde menino. Então falei com Luciano. Ele estava
numa cela e Zefinha noutra. Quando saí, para almoçar, a moça
disse pra mim: “Por que você não pede pra colocar nós dois na
mesma cela?” já pensou, se essa menina engravidasse, as coisas
melhorariam muito. À tarde, falei com o superintendente. Botou
os dois na mesma cela. Não sei se foi nessa ocasião, ou se ela
já estava gestante, Zefinha engravidou, o que facilitou muito
a defesa dela. Depois, ele foi deputado aqui e eu não sei mais
onde ele anda.
Você
é capaz de enumerar em quantos processos você esteve envolvida?
Mércia
– Não
tenho nem idéia porque em quase todos os processos daqui eu
estive envolvida. Fiquei muito desgastada, porque foi muita
luta. Você começa a lidar com várias personalidades, vários
grupos. Por exemplo: vem uma pessoa e lhe contrata pra defender
fulano, você começa a defender. De repente, fulano não é o homem,
não tem assim um conteúdo político. Aí ele dedura alguém, porque
é torturado, porque teve medo. Então, o grupo imediatamente
quer que o advogado o abandone. Essas coisas ficaram criando
certas arestas, entre mim e alguns militantes políticos.
Fale
algo sobre a morte de Odijas.
Mércia
– Odijas
de Carvalho Araújo, estudava Agronomia, na Universidade Rural,
eu o conheci através do meu irmão. Era alegre, inteligente,
consciente das suas posições. Fazia política estudantil e era
do “Partidão”.
De
repente, a repressão promoveu Odijas à condição de agitador
perigoso, elemento que punha em risco a segurança nacional.
A perseguição era grande. Várias vezes, me procurou de madrugada,
se alimentava e geralmente lha arranjava roupa e lhe aconselhava
a sair do Estado e se acomodar.
Desapareceu
uns meses. Certa vez, eu estava em Caruaru, quando me apareceu.
Beijou-me e me falou que estava ingressando na clandestinidade.
Falou-me que havia jantado, no dia anterior, com Xanha Tereza,
Chico de Assis e meu irmão Sandino, e comunicado que já não
tinha condições de permanecer em Pernambuco. Falou-me que a
escola era invadida constantemente pela Polícia, à sua procura,
que estava acuado, que se embrenhava nas matas, chegando a pernoitar,
para fugir à perseguição e à fúria dos agentes do DOPS, que
a casa dos amigos eram invadidas, no maior desrespeito às leis
vigentes e que essa situação não poderia continuar.
Fiquei
preocupada. Mas, o que eu poderia fazer? Convencer as autoridades
que me viam por um prisma distorcido, e se julgavam oniscientes?
Eu sabia que era um absurdo o que estavam praticando, mas não
era ouvida. Convencer Odijas de deixar o País, era impossível.
A Polícia continuava a busca e por onde passava ameaçava os
amigos de Odijas.
Quem
os denunciou?
Mércia
– No
dia 30 de janeiro de 1971, a polícia invadiu uma casa em Maria
Farinha. Prendeu Odijas e a cearense Lígia da Silva Guedes.
Tentaram fugir pelos fundos da casa. Na fuga, Lídia tropeçou.
Odijas deu-lhe a mão, a Polícia os alcançou. Se supõe que o
casal foi denunciado por alguém que morava nas proximidades.
No
dia 5 de fevereiro de 71, Mário Miranda foi preso ao chegar
na referida casa. Vinha de Natal, onde fora apanhar um carro
para retirar, mais uma vez, Odijas do Recife.
No
dia 7, são presos no Rio Grande do Norte, no interior de um
ônibus de Pirangi com destino a Natal, Carlos Alberto Soares,
Rosa Maria Barros Soares, Ivoni Loureiro (esposa de Odijas)
e Cláudio Roberto Marques Gurgel.
Marcelo
Mário Melo, foi preso em Nízia Floresta, Rio Grande do Norte,
de cabelos pintados de louro, numa palhoça. Não posso esquecer
as declarações de Marcelo na auditoria: “Não me arrependo da
minha militância nas hostes revolucionárias. Saindo da cadeia,
pretendo continuar minhas atividades subversivas”.
Não
se tinha certeza da prisão de Odijas e Lígia, sobretudo porque
sabíamos que ele havia saído daqui. Recebi um telefonema anônimo,
que me informava que Odijas estava preso no DOPS, muito mal,
precisando de um médico. Tudo indicava que havia rotura de vísceras.
Eu gostava muito de Odijas. Fiquei tensa. Procurei amigos que
começaram, com cautela, a se movimentar e constataram que a
informação era verdadeira.
Procurei
o Dr. Francisco de Paula Acioly. Pedi sua ajuda. Ele foi à Polícia
e me informou que Odijas estava no Hospital da Polícia Militar.
No dia 7 de fevereiro, consegui entrar clandestinamente naquele
hospital. Odijas tinha muita febre, apresentava equimoses em
todo o corpo, usava apenas uma cueca ou um calção. O rosto estava
macerado e roxo. Olhou-me e disse-me: “Estou fudido”. Riu, fechou
os olhos e disse alguns nomes. Passei a mão de leve na cabeça
dele, beijei-o e saí desorientada. Eu não chorava, eu sofria,
sofria muito. Já ia pela Praça do Derby, sentindo-me sufocada,
quando parou um carro, um amigo me chamou. Entrei no automóvel.
Desci em minha casa. Implorei a Deus que fizesse parar com tanta
tragédia.
No
dia 8, morria Odijas com 25 anos (nasceu a 21.10.45).
A
esposa dele me informou que, quando saíram do Recife, foram
para o Ceará e lá casaram em 21 de maio de 69, e moraram uma
temporada, estiveram em Natal e voltaram para o Recife. Odijas
havia saído do Partidão e estava no PCBR.
Um
fato que me constrangeu após a prisão de Odijas: mandei avisar
a uma irmã dele que morava para as bandas de Olinda, Diegina,
que me ameaçou se voltasse a incomodá-la, pois Odijas “meteu-se
em política porque quis, o pau quebrou nas costas do mais fraco,
não vou prejudicar a minha família, diga a Dr.ª. Mércia, que
se mandar mais alguém aqui, chamo a Polícia”.
Quem
os acusava à época?
Mércia
– O
Dr. Luiz Siqueira, na época diretor do Diper, funcionou como
testemunha de acusação. Morava em Casa Forte mas estava veraneando
em Maria Farinha, vizinho de Odijas. Foi à polícia e reconheceu
Lília. Disse, em seu depoimento, “que a casa de Maria Farinha
era utilizada para desenvolver atividades do PCBR”.
Além
do Dr. Luiz Siqueira, serviram de testemunha de acusações os
policiais Edmundo Brito Lima, Fausto Venâncio da Silva e Ivaldo
Nicomedes Vieira, os mesmos que efetuaram a prisão de Odijas.
A
certidão de óbito de Odijas foi assinada pelo médico, Dr. Ednaldo
Paz de Vasconcelos.
A
viúva de Odijas, Ivany Loureiro, hoje é casada com
o deputado federal de Alagoas Eduardo Bonfim. O pai de
Odijas, o velho Ozano, era cego, faleceu poucos meses após a
morte do filho.
E
sobre Matta Machado, o que tem a dizer?
Mércia
– Em
29 de outubro de 1973, comentava-se que dois rapazes haviam
morrido, mas não se sabia os nomes, nem como.
No
dia 5 de novembro, recebi um telefonema de Dr. Oswaldo Lima.
Pedia-me para passar no escritório dele. Lá chegando, apresentou-me
a dois médicos ortopedistas, de minas Gerais, José Henrique
e Hélio da Matta Machado, que me pediam para providenciar a
exumação do corpo de José Carlos Novais da Matta Machado.
Comecei
a luta, Secretaria de Segurança, IV Exército. Um inferno. Dr.
Oswaldo Lima sempre me apoiando. Finalmente, no dia 9, segui
para o cemitério de Várzea. Fiquei aguardando o médico, o Dr.
Ipiranga. Já estavam presentes vários policiais. Chega o Dr.
Ipiranga e exigiu o atestado de óbito e o laudo médico. O velhinho
gritou “não assino, não participo da exumação, o que é isto,
estão loucos, me respeitem”. E retirou-se para ir ao cartório
de Várzea com os funcionários da funerária. Ao voltar, manteve
o ponto de vista. Não faria a exumação. Não estava de acordo
com a causa mortis. Foi uma confusão enorme. O velhinho dizia
“tenho 40 anos de serviço público, não faço o que não estou
de acordo”.
Na
Secretaria de Segurança falei com o Dr. Edvaldo, que foi muito
franco: “Mércia, este problema é com as autoridades da Segurança”.
À tarde, o Dr. Edvaldo resolveu autorizar a exumação. Quando
fui apanhar o ofício, havia mudado de idéia. Argumentei, insisti.
Às 19:15h, depois de vários telefonemas, voltou a autorizar,
mas teria que apanhar o ofício no dia seguinte. Cheguei às 8:40h.
Dr. Edvaldo resistia. Não queria assinar o ofício, pedia-me
para aguardar o Dr. Fontenelle, que discutia com a Secretaria
quais os elementos que deveriam ir ao cemitério para assistirem
à exumação. Só às 15 horas recebi o ofício.
Dr.
Oswaldo Lima já havia iniciado mandado de segurança. Quando
cheguei com o ofício, ele começou a providenciar o caixão e
os contatos com a companhia de aviação. Nova ordem. Não exuma.
Resolvi procurar o cel. Cúrcio Neto, que foi favorável à exumação,
mas eu teria que assumir o compromisso de não permitir publicidade,
não dar entrevistas. Assumi o compromisso. Não dei entrevistas.
Quinze dias depois, rompo o compromisso. Desculpe-me coronel,
é a história.
Dr.
Oswaldo se entendia com Valério Rodrigues e Percilvo Cunha,
no encaminhamento da documentação. As dificuldades eram muitas.
O
sr. Barbosa, da Casa Batista, só faltava pirar com as ordens
e contra ordens.
Finalmente,
às 15:00h do dia 10 chegou o médico, o Dr. Nivaldo Ribeiro,
e o comissário Edmundo. Às 15:10h, o auxiliar de necropsia Malaquias
começava os trabalhos. Estava presente também Galeno Guaraná,
administrador do cemitério. O caixão não tinha tampa, a substância
largava dos ossos, algumas obturações brilhavam. O mau cheiro
era enorme. Uma pessoa, não me recordo, deu-me vick vaporub
para colocar no nariz. Chocou-me profundamente: o couro cabeludo
estava arriado ao lado do corpo. Às 16:15h, o trabalho estava
concluído. Telefonei para o Dr. Oswaldo Lima, coloquei-o a par
de tudo, ele seguiu para a casa funerária para cuidar do encaminhamento
dos restos mortais para Minas.
Há
três anos, estive em Belo Horizonte. Conheci os pais de Zé Carlos,
e o filho que me fez chorar quando abraçou-me.
Adgar
Matta Machado, professor de Direito, ex-deputado estadual e
federal, ex-chefe da Casa Civil do governo Milton Campos, era
pai de Zé Carlos. Viajou pelo vôo 125 da Cruzeiro do Sul. Matta
Machado era um famoso líder estudantil, ligado a Ação Popular
Marxista Leninista (APML). O corpo passou direto para o Rio.
O avião não desceu nas Pampulha como estava previsto. Só no
dia seguinte, o caixão chegou em Minas. O companheiro que morreu
com Matta Machado era Gildo Macedo Lacerda. Segundo a polícia,
eles foram cobrir um ponto na Av. Caxangá e morreram num tiroteio.
Não ficou claro como saíram da prisão para cobrir o ponto.
Presos
na porta da fábrica de Paulista, João Roberto Borges de Souza
(5º ano de Medicina), Maria do Socorro Morais Cardoso, Maria
Lívia Alves Coelho e uma terceira não identificada. Chegando
no DOPS, João Roberto afirmou ser de Cabedelo-PB, filho de meretriz
e criado em rendez-vous daquela cidade e teria ido à fábrica
procurar um amigo. Uma das moças alegava ter sido infelicitada
há três dias e que ali estava procurando o autor do fato. A
outra se dizia mulher de vida fácil. E a terceira dizia que
estava procurando emprego. O Dr. Moacir Sales, não conseguindo
apurar nada de positivo, determinou a liberação das moças. Horas
após a liberação das moças, através da Polícia Federal, Moacir
Sales é informado de atividades da Ação Popular e que as moças
que acabavam de ser liberadas eram integrantes da AP. João Roberto
foi reinquirido “paulatinamente” e informou que o aparelho funcionava
na Rua Alto Benjamim, 97 – Fundão. Lá foram presas, Rosa Maria
de Araújo Melo e Ana Rita de Castro Almeida. Descobriu-se que
João Roberto era um dos componentes da Delegação da AP ao congresso
ilegal da UNE, em Ibiúna. Rosa Maria era esposa de Geraldo Magela,
também denunciado. Surge o nome de Simeão Almeida Neto que havia
participado do congresso da UNE . no aparelho, foi apreendido
uma arma calibre 45, cuja posse foi atribuída ao mineiro João
Batista Drumond (economista). Ana Rita era esposa de Simeão
Almeida. Saiu da delegacia para a maternidade. Deu à luz uma
criança 15 dias após a prisão. As três meninas liberadas sumiram.
Moacir nunca conseguiu prendê-las – E elas não estavam tão longe
da Secretaria de Segurança. Geraldo Magela foi preso na fábrica
de Paulista, onde fazia o curso de treinamento têxtil.
Foi
colocada uma cama no gabinete de Moacir para Ana Rita. Ela ficou
acompanhada pela e estava presa para coagir o marido a se entregar.
Moacir Sales, depondo, dizia que Ana Rita “não confessou na
polícia sua participação na AP, que a acusada é filha de posse
na Paraíba, cujo pai é dono de fazenda de gado, professor universitário
e que a mesma deixou o conforto do lar para fugir com o acusado
Simeão, de quem era prima, e com ele casou-se. Que os pais de
Ana Rita não aprovaram o casamento”. Parecia mais advogado de
Ana Rita. Estranho.
Liberado,
João Roberto Borges de Souza voltou para Cabedelo. Foi encontrado
morto em um açude em Catolé do Rocha em 09.10.69. Tinha apenas
22 anos. A família de João Roberto é honrada e digna, nada tem
com bordel.
Existiam
fatos exóticos, que se não fosse a situação dos presos seria
cômico.
No
processo 93/70, encabeçado por Francisco de Assis Barreto da
Rocha e outros, o promotor denunciou um indivíduo que atendia
pela alcunha de Jacaré. O auditor, Dr. Antônio Carlos Seixas
Teles, condenou o indivíduo que atende pela alcunha de Jacaré.
Nas
razões da apelação eu dizia: “A denúncia torna-se uma extensa
rede, pelos sucessivos aditamentos que sofrem, colhendo de arrastão
um ilustre jacaré”.
Aliás,
se faça justiça ao Dr. Procurador. Seu pecado foi menor que
o da sentença que terminou condenando um desconhecido, não identificado
fisicamente, como determina o art. 70 do CPPM e de que apenas
se sabe participar da família zoológica dos caimans.
Referem-se
os cronistas que, na época colonial, os franciscanos de um convento
processaram e condenaram as saúvas que dizimavam as hortaliças
do cenóbio. A lei de Moisés mandava matar o boi que chifrava
alguém. Em Pernambuco, não obstante a lei de proteção aos animais,
a elástica Lei de Segurança Nacional já atingiu os grandes sáurios.
Que
se cuidem os infelizes, brasileiros que, por semelhança ou índole,
sejam alcunhado de “jacaré”. Qualquer deles está passível de
ser perpetuamente encerrado nalgum igarapé amazônico por tentar
contra a segurança nacional.
Dr.
Teles ficou zangadíssimo comigo e quando o processo bateu no
STM foi um escândalo. Ainda hoje se comenta.
Gostaria
de corrigir um engano na última reportagem. Sandino meu irmão
não é militar, o militar é outro irmão.
Por
um lapso escapou dois nomes de advogados que participaram no
início da defesa de presos políticos: Juarez Vieira da Cunha,
que após a prisão junto com os colegas Antônio de Brito Alves,
Fernando Tasso de Souza e outros, através de uma carta da OAB,
comunicou o seu afastamento de defesa de presos políticos, e
Ailton de Barros Cerqueira, afinal reformado da Polícia Militar,
atuou praticamente no processo da Policia Militar.
R
– Certa
vez fui falar com uma autoridade da área de Segurança, sobre
Samuel Firmino. Enquanto aguardava ser atendida, o militar que
estava na ante-sala e que me anunciou demonstrava uma intensa
hostilidade, o tempo corria, comecei a conversar, para melhorar
o ambiente, falei sobre política, arte, literatura, o careta
calado, então comecei a falar sobre crochet a arteculinária.
Ele olhou-me, riu e disse: “Entendo e gosto é de pau-de-arara”.
Evidente que era uma provocação. Não perdi a esportiva. Perguntei-lhe:
“O senhor dá-me uma?”. “Uma o quê, doutora?”. “Uma arara, não
acabou de confessar que é amante dessas maravilhosas aves?”.
Levantou-se e disse, vamos entrando. Falei com o chefe dele,
que estava rindo, não sei se ouviu. Quando saí, me disse, um
dia lhe envio uma arara.
No
início de março de 1972, meu amigo Renê Bandeira, procura-me
em minha residência, aflito. Contando-me que Adosinda Monteiro
Costa havia sido amordaçada, e sequestrada de sua residência
por seis homens armados. Já vinha da Secretaria de Segurança,
já havia falado com várias pessoas, mas Dosa estaria no DOI.
Fiquei perplexa. Dosa era uma educadora progressista, humana,
havia trabalhado comigo na mesma escola, alguma coisa estava
errado. Renê disse-me que já havia falado com o Dr. Eraldo,
e pedia-me também ir até o palácio conversar com ele. Saímos
juntos, ao chegar no palácio, fiquei aguardando. Quando consegui
entrar na sala, olhei para o Dr. Eraldo, ele riu e me disse:
“veio pedir-me alguma coisa, pode falar. Só está proibida de
pedir favores para subversivos; basta Mércia, você é comunista,
seus amigos sabem, mas a segurança não sabe”. Disse-lhe, não
vim falar sobre subversivo. É sobre uma colega, com quem tenho
uma dívida de gratidão imensa, uma excelente educadora, que
se encontra no DOI. Apenas peço-lhe que consiga trazê-la para
a SSP, o resto Renê resolve. Fez várias ligações, e depois me
disse “não vá pedir mais a ninguém, isto vou resolver”. Quando
levantei-me, ainda sugeri: ela pode ou não ser denunciada ou
figurar apenas como testemunha. Olhou para mim bem sério e disse-me
“não vá procurar mais ninguém sobre este caso. Venha ver-me
sempre, mas está proibida de pedir por subversivos, ou pessoas
acusadas de subversão. Porque não atendo”. Prometi. Não cumpri
a promessa, nem ele; sempre me atendia.