
Mércia,
presente
Urariano Mota
(escritor e bancário do Banco do Brasil
Rua
Sete de Setembro, 197, Edifício Ouro. Na década de 70, era para
lá que rumávamos. Entrávamos no edifício sem olhar para trás,
rápido, como se ladrões fôssemos, como se fôssemos criminosos,
como se já estivéssemos no Chile de Pinochet e penetrássemos,
para nos salvar, em um consulado ou em uma embaixada. Ali, no
apartamento 52 do Edifício Ouro, uma mulher de estatura média,
de olhos abrasantes, nos atendia.
“Advogada
Mércia Albuquerque, presente”. Não eram essas as palavras, não
era bem assim que ela nos vinha, mas era exatamente esse o ar,
que a sua presença nos sugeria. “Descansem. Eu estou presente.
Sim, eu conheço esses milicos. Essa canalha do DOPS eu já sei
como age. Descansem, vocês estão em casa”. Não lembramos bem
se essas eram as palavras, se algum dia ela assim se expressou,
mas sentimos que do seu corpo frágil, agitado, andando pela
sala do apartamento, sem se sentar, vinha a insinuação delas.
“Tranquilizem-se, se fizermos a denúncia, a vida dele está salva”.
Elétrica, agitada, e no entanto nos dava uma grande calma.
Agora
que ela não mais habita no Edifício Ouro, agora que seu corpo
se acha definitivamente ausente, agora que superamos a ditadura,
nesta altura em que ficou fácil ser democrata, ah, o factual,
o seu currículo de advogada de perseguidos políticos, de presos
torturados, tudo isso tende a se fundir em versões e esquecimento.
Não sabemos se é sempre assim quando a gente se ausenta, mas
de Mércia fica uma impressão íntima, uma forma de orquídea violeta
que não sabemos de onde nem por que nos vem. Agora mesmo, enquanto
digitamos estas mal traçadas, a voz de Bienvenido Granda nos
chega insistente aos ouvidos, embora em torno só haja o tique-taque
do relógio no silêncio da madrugada. “Egoísmo” é o bolero que
nos chega, não sabemos por quê.
E
no entanto sabemos a razão, ou pelo menos desconfiamos do porquê.
A doutora Mércia Albuquerque era um ser passional. É isto o
que a violeta roxa e Bienvenido nos querem dizer.. ele resolveu
defender Gregório Bezerra porque o viu ser arrastado por uma
corda ao pescoço em 1964, em Casa Forte. Ao se tornar advogada
de Abelardo da Hora, acolheu os filhos desse artista em seu
apartamento 52 do Edifício Ouro. Ao ser sequestrada por agentes
do DOPS (Delegacia de Ordem Política e Social) foi atirada de
volta na Rua da Guia, que, à época, era a última e mais miserável
rua do bairro de putas que hoje conhecemos como o Recife vitalizado.
Ali, era recordaria depois, recebeu dinheiro e solidariedade
de uma prostituta que atendia pelo nome de Biscuit. Defensora
de radicais materialistas, de jovens socialistas ou de jovens
simplesmente desesperados, sem saída, era, ela própria, católica,
até meio mística, e nisso não via nada que fosse obstáculo à
defesa daqueles “terroristas”, como os difamava a propaganda
da ditadura militar.
Pois
é a esta mulher, tantas vezes presente nas aflições dos perseguidos políticos, que tanto perigo correu por defender
“terroristas”, que presa 12 vezes sem culpa, sem inquérito,
sem acusação formal, como de resto continua a fazer com os pobres
e miseráveis do Brasil, é a ela que conviveu com a destruição
física e humana de militantes, e também com o heroísmo desses
torturados, pois é a esta mulher que parecia ter flertado com
a eternidade, p tantas vezes esteve perto do fim e dele se safou
e o pulou como acrobata, pois é a esta mulher que a morte colhe
numa mesa de operações! A 29 de janeiro deste ano a doutora
Mércia falece, vítima de um câncer que lhe devastou o ovário.
Ainda que esse câncer sintomático lhe tenha minado a vida, traiçoeira
e silenciosamente, não foi bem essa infâmia que a matou. A causa
mortis apontou para cardíaca.
Para
uma advogada passional, para uma mulher que lembrava a rara
orquídea roxa, faz sentido uma morte assim, de parada no coração.
A vida da gente é estúpida, é certo, mas ao fim sempre guarda
algum sentido. Um sentido que não sabemos se conseguimos realizar,
doutora, neste espaço curto, nessa lembrança curta de quem a
viu uma vez, mas jamais esqueceu de que seus olhos queimavam
na gente feito urtiga.