Projeto DHnet
Ponto de Cultura
Podcasts
 
 Apresentação
 Trajetória de Vida
 Escritos & Reflexões
 Atuação Jurídica
 ABC Vítimas da Ditadura
 Matérias na Mídia
 Correspondências
 Processos
 Arquivos Multimedia
 Galeria Virtual
 Acervo Mércia
 Direitos Humanos
 Desejos Humanos
 Educação EDH
 Cibercidadania
 Memória Histórica
 Arte e Cultura
 Central de Denúncias
 Rede Brasil
 Redes Estaduais
 Rede Estadual RN
 Rede Lusófona
 Rede Mercosul
Gregório Bezerra


Alegações finais em favor de
GREGÓRIO LOURENÇO BEZERRA

 

 

“Disse o Senhor: – Sabeis qual o jejum que eu apresento? É romper as cadeias injustas, desatar as cordas do jugo, repartir alimentos com os famintos, mandar embora, livres, os oprimidos e quebrar toda espécie de servidão.” (Profeta Isaias).

 

 

Doutos Julgadores:

 

Antes de entrar no exame do processo a que responde nesse Juízo Gregório Lourenço Bezerra, desejo utilizar algum espaço desta Defesa para situar-me, como sua advogada. Como mulher e mãe, sinto-me à vontade para funcionar em causas que dizem respeito à Liberdade Individual. Não funciono, aqui, como “inocente inútil”, mas com a consciência plena de haver assumido a defesa de um grande, embora discutido líder popular. Sei das enormes restrições que se fazem à pessoa do acusado, do ponto de vista político e ideológico. Mas sei, também, da sua grandeza moral da sua responsabilidade, numa época em que a coerência e a firmeza de atitudes são confundidas com fanatismo e obstinação.

Acompanhei o processo desde o início, nestes dois anos e meio de prolongadas audiências, de idas e vindas e essa Auditoria Militar, sem me descurar, um instante sequer, da grave responsabilidade histórica de defender Gregório Bezerra. Outros, de minha profissão, ficaram no caminho – intimidados ou atônitos. Eu resolvi prosseguir, embora enfrentando dissabores, comentários mesquinhos, acerbas críticas e aleivosias diversas. Fiz juramento de não transigir no exercício de minha atuação de advogada. E não transigirei, quaisquer que venham a ser as dificuldades e ameaças. Maior do que a minha resistência física, é o meu grande amor – de mulher, de mãe, de simples criatura humana – ao Homem, que é o templo de Deus, segundo os evangelhos. E o Homem é uma criatura una, indivisível – quaisquer que sejam as contingências da vida, as crenças, o modo de encará-las, a fé e a própria negação da fé. Há mil formas de acreditar na vida. Como existem mil formas de destruí-las – pelo medo, pela covardia, pelo individualismo, pela vaidade. Bem aventurados os que sabem dignificá-la, em atos e práticas que somente a História julgará em definitivo, depois das paixões ocasionais, depois das lutas, depois das controvérsias.

O tempo é a dimensão histórica do Homem. E a maneira de julgá-lo só é lícito e completa, quando esquadrinhadas todas as suas atitudes. E as consequências sociais dessas atitudes.

“A moral política – já disse Beccaria, no seu famoso livro Dos Delitos e das Penas – não pode proporcionar à sociedade nenhuma vantagem durável, se não for fundada sobre sentimentos indeléveis do coração do Homem.”

Aceitamos a defesa de Gregório Lourenço Bezerra, reencontro-me com os fundamentos da vida, na essencialidade de seus magnos princípios. E posso, daqui, na humildade de meus atos, repetir as súplicas de Davi, no Livro dos Salmos:

 

“Ouve-me, quando eu clamo, ó Deus da minha justiça; na angústia me deste largueza. Tem misericórdia de mim e ouve a minha oração.”

 

 

Do processo

 

Sob todos os aspectos, esse processo é uma monstruosidade jurídica. Há, nele, graves nulidades, tanto de forma como de conteúdo. Sua peça informativa – o inquérito policial-militar – tem manchas de sangue. Do sangue de espancamentos de réus e de testemunhas. Muitos dos denunciados sofreram os piores suplícios – que a Nação conheceu, em detalhes. Gregório quase foi morto. Suas torturas foram filmadas e rodadas nos vídeos das televisões do Recife, num espetáculo de circo romano.

Das nove testemunhas de acusação ouvidas – em juízo – nove testemunhas, apenas, para um processo de mais de trinta réus! – a maioria delas é confessadamente integrada de agentes do serviço secreto das Forças Armadas. As que não são agentes secretos, são militares da ativa da Polícia Estadual. Todas, enfim, com interesse na causa, na apuração unilateral da causa.

Réus há, nesse processo – Doutos Julgadores – que, sendo funcionários públicos, nunca foram requisitados à repartição de origem. Outros que, revés, não tiveram o direito de constituir advogados. Outros que respondem a dois e três processos pelos mesmos crimes. Ainda outros que, já condenados, estão sob ameaças de novas condenações, pelos mesmos fatos. Ainda outros que, tendo sido considerados isentos de culpa, em processos arquivados na Justiça Civil, se acham, agora, nas vésperas de um julgamento ou de uma possível condenação pelos mesmos motivos que foram tidos como insubsistentes, do ponto de vista penal, em juízos competentes.

Um ex-Secretário de Estado do Governo Miguel Arraes foi excluído do processo pelo justo reconhecimento de foro especial. Dois outros, porém, nele permanecem, sem motivo plausível.

Testemunhas houve que, sendo funcionários públicos, não foram requisitados à repartição competente. Outras que, residindo fora da jurisdição dessa Auditoria, não foram ouvidas por precatória, indeferindo-se, nesse sentido, requerimentos expressos e fazendo-se constar de ata tal cerceamento ao direito de defesa.

O cabeça ou co-réu principal no processo, o ex-Governador Miguel Arraes de Alencar, também foi excluído de julgamento, respondendo, hoje, a processo em separado, numa aberração flagrante à unidade do feito, desde que se trata de crime de concurso necessário, de co-delinquência. Corremos o risco de assistir a uma estranha cissiparidade: a cabeça de um lado e o resto do corpo de outro, num esquartejamento que encheria de satisfação aos sádicos espancadores dos acusados.

Eis, Doutos Julgadores, o quadro real deste processo.

 

DA INÉRCIA DA DENÚNCIA

 

Com a devida ressalva que devo fazer, por dever de justiça, ao digno representante do Ministério Público Militar, a denúncia dos autos é inepta. Nela conta-se uma história que não se coaduna nem se ajusta às provas do processo. Enquanto a denúncia se refere ao delito de atentado à segurança interna do País, com auxílio ou subsídio de Estado estrangeiro (Art. 2º, inciso III, da Lei de Segurança do Estado), nos autos nenhuma testemunha alude a tal crime, absolutamente. Das testemunhas de acusação ouvidas, nada há, em seus depoimentos, que se reporte ao delito de atentado à segurança interna do País, nem se fala, mesmo de longe, de nenhum Estado ou País estrangeiro. E, no entanto, a Promotoria Militar insiste na classificação inicial, quando das razões finais.

A denúncia caracteriza-se pela vagueza de expressões e pelo amontoado de palavras que nada têm a ver com a situação de cada um dos denunciados. Dois terços da denúncia são gastos numa espécie de “prolegômenos da subversão”, no mundo e no Brasil, com situações duvidosas de Lênin, de Marx e de Fidel Castro.

Quanto ao crime de cada um dos réus, propriamente dito; quanto as circunstâncias do fato delituoso; quanto ao lugar e ao tempo da perpetração do delito – nada se diz. Os acusados foram amontoados no mesmo processo sem o menor critério de co-delinquência. Há réus que, neste processo, vieram a conhecer-se no curso das audiências. Antes, não se conheciam. Acredito que tudo isso adveio do grande acúmulo de serviço da Promotoria Militar, no princípio da fase punitiva da Revolução. Mas o fato é que o processo não tem as características que a lei exige, para produzir efeitos.

Se a Promotoria Militar insiste na classificação do crime, como sendo o de atentado à segurança interna, com auxílio de potência estrangeira, é de perguntar-se: qual é essa potência estrangeira? Quem foi o intermediário dessa potência estrangeira com os acusados? Onde estes se reuniram para tentar ou consumar o crime? Em que dia e em que ano esse crime foi perpetrado? As testemunhas de acusação não o dizem, Doutos Julgadores. E se, no IPM, se faz referência a alguns fatos dessa natureza, no processo, em Juízo, nada disso foi apurado. E testemunhas que não comparecem a Juízo não são testemunhas. São fantasmas.

Quanto a Gregório Lourenço Bezerra, comete-se a inverdade – permita-se-me a expressão – de afirmar que ele foi incendiário do 15º Regimento de Infantaria, da Paraíba, aí pelos idos de 1947.

Ora, Doutos Julgadores, nessa mesma Auditoria, Gregório foi absolvido por unanimidade! E quem pediu a absolvição de Gregório, por falta absoluta de provas, foi o hoje Procurador Geral da Justiça Militar, o doutor Eraldo Gueiros Leite. Como, pois, insistir nessa aleivosia, a não ser com o intuito de fazer confusão no seio do Conselho Permanente de Justiça, tão digno, hoje, como o era nos idos de 1947.

No que diz respeito ao processo ora em exame, nada existe que possa incriminar Gregório pelo delito previsto no art. 2º, inciso III, da Lei de Segurança do Estado. Seu maior crime, Doutos Julgadores, é o de pensar diferente. É o chamado delito de opinião, crime que os códigos não condenam. Crime de impunidade democrática. Crime dos homens livres e das Nações soberanas.

Peço aos ilustrados membros do Conselho Permanente de Justiça que levem em conta a bravura moral desse homem, digno do nosso maior respeito. Hoje, injustiçado. Amanhã, quem sabe? Glorificado. A um homem desses não se deve apontar as grades da prisão. Nela, o homem poderá fisicamente tombar; mas o ideal do homem ressurgirá por cima de suas fraquezas materiais, continentes.

Faça-se justiça a esse homem do povo, absolvendo-o, exculpando-o das penas da lei.

A Justiça Militar, por ser militar, não é desumana ou insensível aos dramas sociais. No fundo, ela se integra ao aparelho judiciário do País, vivendo os mesmos sentimentos de Justiça e as mesmas tradições de independência.

Seu horizonte são os horizontes da lei e não o descampado das paixões humanas. Sua meta é o bem comum e não a tábula do ódio e das vontades ilimitadas.

O dever dessa Justiça é o mesmo das outras Justiças, togadas ou não. É o dever que se origina da consciência.

Contra Gregório há, somente, a alegação de ser comunista. Ele o é, confessadamente. Mas isso é, porventura, crime?

Os Tribunais brasileiros, tanto civis como militares, consideram que o fato de ser comunista não constitui crime.

Por isso, Doutos Julgadores, peço a absolvição de Gregório Lourenço Bezerra. E o faço como mulher, como mãe e como advogada – cônscia do meu dever perante a civilização humana.

 

Mércia de Albuquerque Ferreira.

Desde 1995 © www.dhnet.org.br Copyleft - Telefones: 055-84-3221-5932 / 3211-5428 - Skype: direitoshumanos - dhnet@dhnet.org.br
Google
Notícias de Direitos Humanos
História dos Direitos Humanos no Brasil - Projeto DHnet
Militantes Brasileiros de Direitos Humanos
MNDH
Projeto Brasil Nunca Mais
Direito a Memória e a Verdade
Comitês de Educação em Direitos Humanos Estaduais
Rede Brasil de Direitos Humanos
Redes Estaduais de Direitos Humanos
Rede Estadual de Direitos Humanos Rio Grande do Norte
Sistemas Internacionais de Direitos Humanos
Rede Lusófona de Direitos Humanos