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Gregório Bezerra


Homenagem à Gregório Bezerra

Convidada a participar das comemorações do centenário de Gregório Lourenço Bezerra, aceitei porque é sempre um prazer falar de um valente, símbolo de ação política de contestação, conhecido nacional e internacionalmente, de quem o poeta em um momento mágico o intitulou em um belo poema: “O homem feito de ferro e flor”.

Gregório, forjado com sangue e suor, na palha da cana a partir de sete anos de idade, ajudava seus pais no corte de cana.

Naíde Teodósio, conviveu com Gregório que em menino, todas as vezes que avistava o fazendeiro, escondia-se na saia de Belarmina da Conceição, sua mãe, então Belarmina perguntou-lhe:

– Meu filho, por que você se esconde quando vê o major?

Ao que ele respondeu:

– Eu tenho medo!

Belarmina disse-lhe:

– Eu também tenho, mas não deixo que ele saiba!

Perde os pais. O pai, aos sete anos de idade e a mãe aos 9. Já estava em Recife. Tinha vindo para ficar com a família dos fazendeiros com a promessa de estudar, a promessa que não foi cumprida.

Depois de alguns anos fugiu, foi menino de rua, gazeteiro, foi preso pela primeira vez por participar de manifestação operária em 1917.

Aos dezoito anos, já no exército alfabetizou-se.

Foi se engajando no socialismo. Em 1930 filia-se ao Partido Comunista Brasileiro.

Mais tarde enquanto Julião criava as Ligas Camponesas, que era do partido socialista, Gregório atuou no campo, junto aos sindicatos rurais. Desenvolveu um trabalho de conscientização política, entre os camponeses, sem contudo participar das ligas, que tinha outra orientação.

Ouvia falar em Gregório, mas não o conhecia pessoalmente.

No dia 2 de abril de 1964, o guerreiro foi preso nas terras da usina Pedrosa, próximo a Cortês, pelo capitão Álvaro do Rêgo Barros, que estava a paisano, identificou-se e Gregório se entregou.

A conduta do capitão Rêgo Barros da polícia militar merece registro porque portou-se dentro da legalidade.

Alguns quilômetros após a prisão, aparece o usineiro, José Lopes Siqueira, com um grupo de pistoleiros e soldados do 20 BC e exigiram que o preso lhe fossem entregue para ser executado.

O capitão portou-se com fibra:

– Vocês podem matar o homem, mas eu protesto! Tenho o dever de garantir a vida do homem! Vocês são muitos, estão bem armados e eu tenho inferioridade em armas e homens, mas protesto!

Em Ribeirão, Gregório foi entregue a camponeses do 20 BC, tendo os pulsos amarrados para trás e todo corpo com cordas.

Ao chegar em Recife, foi conduzido ao Quartel General, à presença do  general Justino Alves Bastos, na presença desse general, o coronel Hélio Ibiapina apresentou Maria Celeste Vidal com corpo dilacerado, ao mesmo tempo em que Gregório recebia várias coronhadas, sangrando foi encaminhado ao Forte de Cinco Pontas e, finalmente, ao quartel de motomecanização, em Casa Forte.

Avistei o velho militante comunista na praça de Casa Forte, quando me dirigia para as escolas reunidas Pio X. Não posso precisar a hora exata, entre doze ou treze horas daquele dia macabro.

O tenente-coronel Darcy Viana Vilocq, comandante da unidade militar de motomecanização, promovia um evento insólito, diabólico, que marcou para sempre todos os que assistiram.

Gregório, vestindo apenas um calção preto, com a cabeça fraturada sangrando, banhado de suor, com os pés que haviam sido introduzidos em solda cáustica e os pulsos feridos pelas algemas também sangravam. Uma corda de três pontas amarrada no pescoço era arrastado por um grupo de verdes soldados, seguido por um carro de combate.

O tenente-coronel Darcy Vilocq enlouquecido agitava uma vareta de ferro e pronunciava palavras carregadas de ódio, um ódio urgente, quem sabe com medo que o tempo acabasse e a história se invertesse.

Injuriava um homem de setenta anos, um velho militante comunista, seu prisioneiro, acrescentando a tortura física, a agressão psicológica, na verdade ultrajando o povo e o exército brasileiro.

O sangue de Gregório respingara a farda e as mãos de Vilocq, que batia com instrumento de ferro no prisioneiro.

Gritava Vilocq:

– Filho da puta! Diga que não é filho da puta!!!

Respondeu Gregório:

– É o senhor! Respeite a minha mãe, que foi uma camponesa honrada e honesta e nada tem com as minhas idéias!

Dando sequência ao seu comportamento desvairado, o tenente-coronel Vilocq, como se dirigisse um ato de Fé da Inquisição, gritava para os espectadores tomados de pânico.

– Venham ver o enforcamento do comunista Gregório Bezerra!

Não havia medo no velho guerreiro, aquele momento não lhe assustava, lhe parecia mais familiar que a cortesia dos comícios. Ele não trairia seus ideais, ele sempre enfrentou a luta e a tortura não lhe assustava.

Quando o homem símbolo de bravura, golpeado a coronhadas de fuzil, cambaleava, o coronel selvagem, concitava o povo para linchá-lo, mas seu apelo fascista não foi atendido pelas famílias presentes.

Mesmo diante da luta que acabara de perder, Gregório compreendera que a vitória não era para já, não era para ele, poderia perder a vida mas tinha a certeza que ganharia o resto. Um dia viria em que não haveria mais adiamentos.

Enquanto aquele cortejo sádico circundava a Praça da Casa Forte, com transmissão ao vivo pela TV Canal 2, religiosos liderados por uma freira que assistia aquela cessão pública de tortura, comunicou os acontecimentos a Dom Lamartine, Bispo Auxiliar que, por sua vez, telefonou para o general Justino Alves Bastos pedindo clemência. O então comandante do 4º Exército interviu impedindo o anunciado enforcamento.

Gregório não tinha medo. E estava à vontade em sua nudez. Gregório conhecia o animal do homem. Vilocq conviveu com ele e enfrentou luta contra ele.

O médico Fernando Castro, também prisioneiro, limpou com a própria camisa o sangue que escorria da cabeça de Gregório, e que por sua solidariedade humana e compromisso com a ética médica resultou esbofeteado.

Bacharel em Direito, exercia o magistério lecionando para crianças carentes. O martírio de Gregório me fez compreender a magnitude da tarefa de advogar as causas dos presos políticos. Iniciei com a defesa de Gregório, visitando-o pela primeira vez ainda no Quartel de Motomecanização do bairro de Casa Forte, ocasião em que o coronel Vilocq dirigiu-se a mim, exibindo uma vareta de ferro e dizendo:

– Está vendo esta vareta? Com ela bati em seu cliente, sua atrevida, e posso fazer o mesmo com você!

Ao que respondi:

– O senhor tem o poder, tem a força!

Irritado, o coronel Vilocq encerrou a visita gritando:

– Fora daqui que a lei sou eu, dane-se!

Por ser eu muito jovem e pouco experiente nas lides forenses, foi contratado o advogado Juarez Vieira da Cunha para defender o velho militante comunista. Gregório exigiu que o meu nome constasse na procuração. Ponderei que mal saíra da Faculdade, mas ele, colocando a mão sobre o meu ombro, asseverou:

– Minha filha, sou comunista e jamais negarei isto. Não é difícil a minha defesa!

Juarez Vieira da Cunha, perseguido, preso, renunciou a defesa do líder comunista, expondo em carta à Ordem dos Advogados do Brasil, seção de Pernambuco, os seus motivos.

No Rio de Janeiro, Sobral Pinto, Raul Lins e Silva e Vivaldo Ramos Vasconcelos lutavam pela vida, pela liberdade de Gregório, convocando intelectuais, entidades humanistas internacionais e o povo.

Gregório foi denunciado em três processos.

No primeiro, o de n.º 88/64, foi condenado em 23 de fevereiro de 1965 a 19 anos de prisão, pelo conselho presidido pelo tenente-coronel João Batista de Araújo Baere, sendo juiz auditor o Dr. Amílcar Cardoso de Menezes Filho, havendo o Superior Tribunal Militar reduzido a pena para 10 anos.

O processo n.º 33/65 teve trancada a ação penal através do Habeas Corpus n.º 29.155 por mim impetrado, teve como relator o ministro Peri Bevilaqua, sessão de 26 de setembro de 1968.

Finalmente, o processo n.º 30/68 foi arquivado.

Mesmo os que não concordaram com a ideologia de Gregório Bezerra de modo geral reconhece a sua autenticidade política, a sua coragem em assumir as suas posições, independentemente do sacrifício pessoal. A sua inegável liderança foi responsável pela sua eleição como deputado federal do PCB, na Assembléia Constituinte, em 1946.

Lembro-me que, certa vez, foi preso e torturado um cobrador de ônibus de nome Fernando Alves, acusado de conduzir material subversivo, declinou os nomes de vários companheiros.

Tomando conhecimento das delações, o PC suspendeu a mesada que era remetida aos familiares dos militantes presos.

Defensora do cobrador levei aquele fato ao conhecimento de Gregório, apresentando-lhe os depoimentos de Fernando Alves na Polícia e a sua retratação na justiça. Gregório leu sem comentários e, ao final, dando-me uma quantia em dinheiro, disse-me:

– Entregue minha mesada a esse jovem, mas não precisa ninguém saber.

Cumpri a promessa feita a Gregório, de tal modo que o meu cliente Fernando nunca soube que era ajudado pelo líder comunista.

Como mulher e mãe, sempre senti-me à vontade para funcionar em causas que dizem respeito à Liberdade Individual.

Sabia das enormes restrições que se fazia à pessoa do acusado, do ponto de vista ideológico, mas também sabia de sua grandeza moral, de respeitabilidade, das indissimuláveis virtudes de conduta e do procedimento daquele homem que sempre foi coerente com suas idéias, numa época em que a coerência e a firmeza de atitudes eram confundidas com fanatismo e obstinação.

Muitos colegas ficaram no caminho, eu não transigi diante das dificuldades e ameaças.

Maior que a minha resistência física [e o meu grande amor de mulher, de mãe, de simples criatura humana ao Homem que é o Templo de Deus, segundo os Evangelhos. E o homem é uma criatura una, indivisível, quaisquer que sejam as contingências da vida, as crenças, o modo de encará-las, a fé, a própria negação da fé. Há mil formas de acreditar na vida. Como existem mil formas de destruí-la, pelo medo, pela covardia, pelo individualismo, pela vaidade.

Feliz os que sabem dignificá-la em atos e práticas que somente a História julgará em definitivo, depois das paixões ocasionais, depois das lutas, depois das controvérsias.

O tempo é a dimensão do homem.

Na casa de detenção, Gregório sempre foi um mediador entre os presos políticos oriundos de várias organizações. A presença de sua personalidade forte e marcante, o seu senso de disciplina, foram catalisadores que levantaram o moral dos presos políticos ali confinados.

Quando o seu nome foi incluído na lista de presos a serem trocados pelo Embaixador norte-americano Burke Elbrick, Gregório acompanhou a posição contrária do PCB. Como sua advogada tentei convencê-lo, porém inutilmente, recebendo dele uma declaração manuscrita com as razões de sua negativa, acreditando que aquela ação violenta, na correlação de forças daquela época desencadearia uma repressão ainda maior sobre os presos e militantes de esquerda.

Paulo Cavalcanti orientou-me a argumentar com Gregório que a sua recusa traria problemas para os outros presos. Por esse motivo ele voltou atrás, indo inicialmente para o México e de lá seguindo para a União Soviética.

Após a anistia, no ocaso de sua vida, em 1982, como reconhecimento pela longa militância do velho guerreiro, um grupo de admiradores resolveu homenageá-lo, lançando a sua candidatura a deputado federal pelo PMDB.

Como sua advogada e amiga, discordei sustentando que a sua eventual eleição o afastaria das bases, por esse motivo defendendo a sua candidatura a deputado estadual. Na verdade, não quis magoá-lo, e assim não lhe fiz ver que, com a substituição de Luiz Carlos Prestes no comando do PCB, os prestistas estavam sendo queimados, e que ele, Gregório, não seria o candidato preferencial.

No curso da campanha, porém, Gregório começou a sentir que os companheiros o estavam abandonando, assim no município do Cabo, em Palmares, o mesmo ocorrendo com o vereador do Recife e tantos outros, até mesmo Arraes.

Muito ético, onde falava ao povo, Gregório sempre recomendava ao eleitorado outros concorrentes, notadamente, Arraes e Jarbas. O resultado foi o pior por mim esperado: a expressiva votação superior a 13.000 votos, obtida em condições totalmente adversas, na verdade, fora muito inferior ao mínimo necessário. Compreendendo então toda a verdade e que no final da vida fora exposto a uma derrota eleitoral desnecessária.

Gregório foi tomado de uma grande tristeza e, quando por mim abordado a respeito, sorriu com indisfarçável amargura. Pouco tempo depois ocorreu o seu falecimento.

A casa de Gregório sempre foi respeitada pela repressão, nunca foi invadida. Após o seu enterro, um grupo de pessoas que o induziram a se candidatar, invadiram a casa do guerreiro morto e levaram grande quantidade de documentos pessoais, inclusive o terceiro volume inacabado de um livro que estava sendo escrito por ele.

Neste final de século, é louvável o esforço que se faz para recuperar a memória nacional, no qual se insere também este evento marcante, em que se homenageia o mais notável militante comunista do Estado de Pernambuco.

A mim, como amiga e advogada, só me resta agradecer a esta oportunidade proporcionada pelos responsáveis por este ato de justiça ao saudoso valente guerreiro feito de ferro e flor.

 

Mércia Albuquerque

17.03.2000

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