Líder da A.P. Morre sob Tortura
no Recife
Depois
de ser preso, em 19 de outubro de 1973, José Carlos Novaes da Mata Machado
viveu o inferno. Levado ao DOI/CODI de São Paulo, foi barbaramente torturado,
até a transferência para o DOI/CODI do Recife, no dia 27 do mesmo mês. A
morte, na madrugada do dia 28, foi testemunhada pela estudante Fernanda Gomes
de Matos. Ela e um grupo de amigos estavam presos ali desde o dia 22, por ligações
com José Carlos.
Ao
lado da amiga Melânia Almeida de Carvalho, Fernanda reconheceu imediatamente
quando Mata Machado chegou, escoltado por agentes, com uma venda nos olhos.
“Aquilo foi tão forte para mim, que gravei a roupa que ele estava usando.
Uma calça de veludo marrom, uma camisa estampada cor de vinho e uma
jaqueta”, relata Fernanda.
Mata
Machado disse ao carcereiro: “Preciso de uma escova. Há quatro dias não
escovo meus dentes”. A esperança de voltar a sorrir acabou poucas horas
depois, nas mãos dos algozes. Após várias horas de agonia, pedindo ajuda
porque estava perdendo muito sangue, a voz grave de Mata Machado silenciou.
Preocupada,
Fernanda se ofereceu para doar sangue, mas não foi possível. Algumas horas
depois, um rapaz que limpava as celas, também preso político, deu a noticia.
“Mataram o José Carlos”. Os estudantes espalharam a notícia nas outras
celas. “Mataram o José Carlos”. Era a madrugada fria de 28 de outubro de
1973.
Teatro
dos Mortos - Para explicar a opinião pública a morte de José Carlos da Mata
Machado, os órgãos de repressão providenciaram, para o dia 28, as 19h30, um
tiroteio na avenida Caxangá, esquina com a rua General Polidoro. Uma nota
oficial publicada no dia 31 de outubro, os “órgãos de segurança”
detalharam o tiroteio, e, no dia seguinte, os principais jornais do Pais
estampavam a manchete: “Subversivos da Ação Popular morrem em tiroteio no
Recife”.
A
nota oficial relatava a prisão, em São Paulo, de José Carlos, sem dizer a
data. Sabe-se apenas que foi “durante o mês de outubro”. Em Salvador, no
mesmo período, era preso Gildo Macedo Lacerda. Em seus depoimentos. segundo
os órgãos de repressão, os dois teriam um encontro no dia 28 com um
“subversivo” de codinome Antônio. Levados ao referido encontro sob vigilância
de agentes, a nota oficial informou que, ao chegar no local combinado, Antônio
“pressentiu alguma irregularidade e abriu fogo contra seus presumíveis
companheiros, acusando-os, aos gritos, de traidores, ocasião em que se
iniciou o tiroteio”
O
relatório do Comitê Brasileiro pela Anistia (dossiê dos mortos e
desaparecidos) denuncia, em 1984, o teatro da Caxangá. “A farsa da versão
oficial, além de encobrir os assassinatos sob tortura de Gildo e José
Carlos, tenta relacionar este suposto tiroteio com a prisão e o posterior
desaparecimento de Paulo Stuart Wriht, ao se referir do Antônio”.
A
prática do “Teatro dos Mortos” era comum. Num depoimento à revista Veja,
edição do dia 16 de novembro de 1992, o ex-sargento do DOI/CODI, Marival
Chaves, explica como funcionava. “O preso morto era levado para um local público,
onde equipes do DOI simulavam um tiroteio com mortes. Na hora de levar o
“corpo” para o IML, faziam-se as substituições. O agente que se fingira
de morto era substituído pelo corpo do preso”.
Gildo
Macedo Lacerda, também dirigente da APML, havia sido preso no dia 22 de
outubro, em Salvador. Levado para o DOI/CODI do Recife, foi morto sob tortura.
O “Teatro da Caxangá” aconteceu dez dias após a prisão de José Carlos,
e sete dias após a prisão de Gildo. Neste intervalo, admitem os militantes
da AP, os torturadores tentaram arrancar informações novas, mas nada
conseguiram.
Sofrimento
dos Vivos – Na prisão, Madalena Prata já tinha abortado, em função dos
maus-tratos. Não sabia ainda da morte do marido, quando, no final da primeira
semana de novembro, foi deixada numa sala. “Lá, tinha um livro preto,
desses de capa dura Fui mexer, tentar encontrar alguma informação, e
descobri que o Mata Machado estava morto Os carcereiros me trouxeram Valium,
recorda Madalena.
Nesta
época, Madalena reencontra o irmão Gilberto. “Ele chegou lá (ao DOI/CODI
de São Paulo) mancando. Depois, numa cela ao lado, gritou, como se estivesse
sendo torturado. Quando nos encontramos, eu falei que ele não se preocupasse,
pois a parte dele como militante, eu já tinha assumido, diz Madalena. Hoje
ela avalia esta iniciativa como “uma grande estupidez”. O irmão nunca foi
torturado. Tudo era encenação.
Naquele
final de 1973, Madalena sentiu o mundo desabando. O marido tinha morrido, seu
amigo de infância, Gildo Macedo Lacerda, também estava morto, e o irmão
chegava mancando. “Achei que ele tinha sido pego por minha causa, assimilei
uma culpa muito forte. Achei que nunca deveria ter procurado a família”.
Com
a ajuda de tranquilizantes, Madalena suportou a prisão. No final de março de
1974, e solta. Mas não fica livre dos fantasmas. No dia em que foi a 1ª
auditoria, em setembro de 1974, quando estavam sendo julgados aproximadamente
30 integrantes da AP, ela sentiu a repulsa nos olhares. ‘Ninguém falou
comigo. Nem um bom dia, nada”, conta Madalena. O estigma de
“colaboradora” a acompanharia por vários anos.
Os
pais do Mata Machado foram os únicos a acreditar na sua versão. “Se não
fossem eles, certamente eu não teria sobrevivido, porque a pressão era tão
forte, que acabei começando a acreditar que tinha mesmo vacilado, entregue
alguém”, diz Madalena. Aliviada com os recentes depoimentos do irmão, ela
vive no Rio de Janeiro. É artista plástica e dá cursos de papel artesanal.
Não consegue conversar muito tempo com Gilberto sem perder o controle
emocional.
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