Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Apresentação
Hélio Xavier de Vasconcelos - Volume XII
Hélio Xavier de Vasconcelos
Prefácio de Moacyr de Góes
Diz Godard em seu último filme:
- Não existe resistência sem memória.
Este livro de, e em homenagem a, Hélio Vasconcelos é
uma consolidação de memórias, consequentemente,
matéria-prima para a continuidade da luta da resistência
política, atributo de nossa geração, dele e
minha. À lição de Godard eu acrescento: que
esta memória seja de qualidade para poder servir à
resistência. E isso vai ser encontrado neste livro, sendo
a primeira dessas qualidades a coerência de uma vida.
1
- POLÍTICA E COERÊNCIA – Dos
papéis aqui editados, vou tomar duas datas: 21 de março
de 1959 e 01 de fevereiro de 1993. A primeira é a de seu
discurso quando da instalação da Universidade Federal
do Rio Grande do Norte e a segunda sua falta quando assumiu a presidência
da OAB/RN.
a) – Em 1959 diz Hélio Vasconcelos:
Sejamos heroicamente fiéis ao nosso destino. O Péguy
católico e o Péguy socialista – ambos possuíam
sobre o destino, a mesma doutrina, “um homem é responsável
por certo destino. Possui esse destino, mas também é
possuído por ele. Não é possível dissolidarizar-se
dele.” Tomemos para nós, geração necessariamente
poética e inquieta. A lição do escritor francês;
liguemos o nosso destino ao destino do nosso povo. Sirvamos na Universidade
ao nosso próprio destino.
b)
– Em 1993 diz Hélio Vasconcelos:
Escolhi dois colegas advogados para neles sintetizar a nossa gratidão.
Refiro-me às pessoas de Carlos Antônio Varela Barca,
nosso ex-presidente, valoroso, combativo, inteligente, probo, grande
defensor das públicas liberdades; o outro, Luiz Ignácio
Maranhão Filho, advogado dos humildes, patriota convicto,
estudioso dos problemas brasileiros, digno e forte, bárbara
e covardemente trucidado nos porões da ditadura. Um cristão,
o outro socialista, ambos com os mesmos sentimentos, os mesmos sonhos,
as mesmas esperanças. A eles e tantos outros que se foram
a nossa homenagem (...).
Entre as duas datas, 34 anos se passaram: um tempo com dias claros
de alegria, outros dias com o peso de chumbo do sofrimento; tempos
de trabalho, de criação e recriação
e, principalmente, de coerência e esperança. Ao curso
de sua vida, Hélio procurou valorizar os humanismos cristão
e marxista, como demonstram os dois discursos, aproximando-os, politicamente.
Desde o movimento estudantil, é visível o crescimento
político de Hélio. Muito terá contribuído
para isso sua aproximação de Luiz Maranhão.
Repetia-se, aqui, um comum fenômeno brasileiro: inúmeros
intelectuais cresceram na escola do Partido Comunista Brasileiro
(PCB), nas oito últimas décadas do século 20.
Ali era o locus de encontro com o pensamento teórico
marxista-leninista e, com o Partido na clandestinidade, a práxis
se fazia através de alianças políticas no campo
burguês, oscilando a opção como pêndulo
nos apoios aos partidos tradicionais. Desta prática vão
nascer, em Hélio, traços profundos de amizade às
lideranças de Dinarte Mariz e Djalma Marinho. Isso, todavia,
não o impede de reiterar sua vocação de esquerda
e apoiar a administração do Prefeito Djalma Maranhão
(1960-64).
Acredito que será a partir do Centro de Cultura Popular de
Natal (CCP da UNE), de 1962 a 64, que Hélio vai se tornar
mais visível no campo político potiguar, com luz própria.
Ali ele vai liderar uma aliança marxista e cristãos
de esquerda e passar a influenciar um movimento ascendente de jovens,
dentro e fora da Universidade. Este CCP, falando pelo PCB e pela
AP (Ação Popular), vai ser um importante aliado da
Campanha De Pé no Chão Também se Aprende a
Ler, dirigida pelo Prefeito Djalma Maranhão. Datam desse
tempo a realização de vários eventos comuns,
desenvolvidos em Natal, principalmente nas áreas dos sindicatos
de trabalhadores e dos Comitês Nacionalistas que, criados
em 1960, funcionaram alguns até o Golpe de Estado de 1964.
No campo cultural, lembro que estivemos lentos na encenação
teatral de um novo julgamento de Tiradentes e na realização
de um congresso de cultura popular que contou com a colaboração
de vários intelectuais oriundos de diversos Estados brasileiros
e que se encerrou na praça pública, numa passeata
de Primeiro de Maio, celebrando nossa visão utópica
de uma aliança operário-estudantil-camponesa. Tempos
de sonhos. Também, tempos de lutas pelas Reformas de Base
do Governo Jango, quando vários manifestos políticos
da esquerda nacionalista foram redigidos a quatro mãos -
as dele e as minhas – nas salas da Prefeitura de Natal que,
no dia do Golpe, se autodenominou, com muito orgulho nosso, o
QG da Legalidade e da Resistência.
Depois, vieram as prisões de 1964; o auto-exílio no
Rio de Janeiro; o desemprego; a ansiedade do político perseguido.
Mais tarde, a vida que segue: o reingresso no mundo do trabalho,
primeiro, vendendo colchões no subúrbio carioca do
Vila da Penha, depois já na FUNABEM (1966), exercendo o ofício
de advogado; o casamento com Hilda, o nascimento das filhas Inah,
Zilda e Gabriela; a volta para Natal; a anistia; a retomada da vida
pública: Procurador do Poder Legislativo; Secretário
de Estado de Educação e Cultura (1983-87); Presidência
da OAB/RN (1993-95). Ele que, em 1959, como estudante, fizera a
convocação sirvamos na Universidade ao nosso próprio
destino, nos anos 80 volta à UFRN e funda a disciplina Direito
da Criança e do Adolescente e nela leciona até a aposentadoria.
Ai está o nosso primeiro e principal destaque neste Prefácio:
a coerência de um homem.
2
- O ADMINISTRADOR – O segundo aspecto que
quero ressaltar é a sua qualidade de administrador, também
coerente aos seus paradigmas políticos. Vou utilizar as datas
de 1987 e 1995, e isto é os discursos de transmissão
de cargos exercidos por Hélio, o primeiro de Secretário
de Estado de Educação e Cultura do Rio Grande do Norte
e o segundo de seu mandato de presidente da OAB/RN.
Na
SEEC ele foi formulador de uma política educacional que denominou
de Escola Aberta e Democrática. Chamo atenção
para a data na qual iniciou o seu trabalho: novembro de 1983. Esta
é a época em que já estava exaurida a Ditadura,
mas o Estado de Direito ainda não havia surgido. Esta transição
é um período de imensas dificuldades, mas Hélio
não tem medo. Vai trabalhar com o espólio recebido
que é uma educação pública em pedaços.
Quando, depois de 3 anos, 3 meses e quinze dias entrega o cargo
ao seu sucessor, pode dizer em seu discurso que a proposta da Escola
Aberta e Democrática é o locus no qual Direção,
Professores, Especialistas, Estudantes, Funcionários e a
própria comunidade convivessem e participassem integralmente
para que a instituição funcionasse bem. Escola que
fosse o local aberto às discussões sobre os problemas
educacionais e aqueles outros comuns à própria comunidade.
Dirá que esta escola sonhada não será uma concessão
de Estado, de Governo, e sim uma conquista de responsabilidade de
todos. E de forma lúcida declara: sabíamos também
que a Escola Aberta e Democrática não seria alcançada
isoladamente, mas, e tão somente, quando a própria
sociedade brasileira conquistasse a democratização
global do país.
Além dessa construção democrática,
outros resultados são importantes: o aumento de 19,49% de
acesso à rede escolar: a realização do primeiro
Concurso Público para o Magistério Potiguar: a implantação
do Estatuto do Magistério, a modernização dos
serviços da Secretaria, etc. Quanto à prestação
de contas, Hélio é minucioso em informar cada tostão
recebido e cada tostão aplicado. A transparência é
uma de duas qualidades administrativas.
E mais uma vez, coerente e fiel aos seus postulados políticos,
dirá de forma clara as limitações brasileiras
no campo das escolas: Sabemos quão difícil e penoso
é fazer-se educação em um país em que
o sistema econômico seja capitalista.
O segundo discurso, o de 1995 quando transmite o cargo de Presidente
da OAB/RN, é tambémuma detalhada prestação
de contas. Suas palavras ficarão para a história das
lutas para dotar Natal de um Fórum Judiciário. Hélio
quer somente um lugar digno, acessível, onde trabalhem Advogados,
Juízes, representantes do Ministério Público,
serventuários da Justiça e funcionem as Varas Cíveis
e respectivos cartórios. Esta seria uma ferramenta para alavancar
a solução de um dos mais graves problemas –
nas suas palavras: a morosidade da Justiça no Brasil (...)
(é) uma das mais perversas formas de injustiça que,
atingindo a todos, violenta e massacra, sobretudo, os mais fracos.
Mais uma vez é a visão política da questão
e, mais uma vez, a coerência do gesto. No biênio da
gestão Hélio Vasconcelos, a Defensoria Pública,
as Procuradorias do Estado e do Município de Natal contaram
com o seu apoio e a própria OAB/RN prestou assistência
judiciária gratuita a 3.344 pessoas carentes. Finalmente,
seguindo a tradição da OAB brasileira, a entidade
potiguar foi além da legítima defesa corporativa e
exerceu o mandato que lhe é inerente de defesa do estado
de direito, da democracia e da luta pelos direitos humanos.
3 - O HOMEM – Felizes aqueles que convivem
com Hélio Vasconcelos. Por mais que se estude, academicamente,
o seu pensamento, através de seus escritos, a formação
de um perfil dele fica a dever à atmosfera que ele
cria pela palavra oral, pelo gesto, pela conversa jogada fora, pela
cumplicidade conspiratória, pelo alto astral, pelas anedotas,
sempre contadas (e vale a pena ouvi-las várias vezes) pelo
humor fino, pela risada solta (tão solta que as vezes é
acompanhada de uma batida de sola do pé no chão).
Daí a importância dos depoimentos acolhidos neste livro
— eles desvelam o olhar do outro, dos amigos, sobre o nosso
herói. Digo mais, por experiência própria:
uma cervejada com Hélio e Omar Pimenta, quando a noite ainda
é uma criança, é uma festa — da qual
Paris perde!
De
seu humor, Hélio não abre mão nos momentos
mais solenes e também nos mais tensos (aqui poderia contar
dezenas de causos se houvessem espaço e tempo suficientes).
Lembro o setembro de 1992, quando o Professor Otto de Brito Guerra
recebeu da OAB o título de Benemérito e Hélio
foi o orador. Lá para as tantas, o discípulo se permiteinvadir
a intimidade do mestre para contar uma história de seu próprio
filho, Luiz Guerra. E conta que Luiz chegando em casa pela alta
madrugada, vindo de uma farra homérica, liga o som
em toda altura e desperta Dr. Otto que vem à sala admoestá-lo.
E diz; meu filho, se você continuar assim vai terminar
sendo um ébrio contumaz. Ao que Luiz retrucou: com Tomaz
não, com Hélio. E conclui o orador: com esta afirmação
caía por terra o restinho de credibilidade do pobre Hélio
perante o Mestre. Dá para imaginar o riso discreto do
Dr. Otto e a risada geral do auditório.
Uma vez já contei em um livro meu (Sem Paisagem –
Memórias da Prisão)
uma boutade de Hélio. Conto, novamente. No final de junho
ou início de julho de 1964 houve um grande movimento de transferência
de presos políticos pelos quarteis da Cidade. Assim, um dia,
chega Hélio ao Quartel de Polícia onde me encontrava,
vindo ele do R.O. Abraços, risos, alegria de reencontro.
E o importante: ele trazia debaixo do braço um vade-mecum.
Era uma época em que a imprensa metralhava diariamente que
os presos políticos estavam enquadrados na Lei de Segurança
Nacional. Aí, eu tomei o livro de suas mãos e pedi:
- Hélio, é possível eu ser enquadrado em algum
artigo da Lei de Segurança Nacional? Veja.
Aí
ele, sem abrir o vade-mecum, estalou uma risada, respondendo:
-
Em todos, mestre, em todos os artigos!
Foi
quando eu me dei conta da realidade: o preso político estava
na cadeia por crime de opinião, o que não é
uma questão jurídica. Chocado de início, terminamos
rindo juntos.
Quando se fala em Hélio Vasconcelos, o difícil é
parar. Mesmo assim, eu tenho que colocar um ponto final. Direi,
então, como meus netos Bruno e Mateus que, ao falar de alguém
que admiram e gostam, eles dizem: ele é um cara legal,
sinistro e irado. Acho que isso é o reconhecimento ao
carisma de alguém. Isso vai para Hélio que, quando
jovem (antes de Hilda, por favor me entendam), também foi
um grande mulherengo. E as mulheres diziam que ele tinha borogodó.
Sobre isso não posso passar recibo.
Rio
de Janeiro, 05 de novembro de 2011.
Moacyr de Góes
Notas
de rodapé:
1
- Jornal O Globo. Rio. 28-X-2001. In entrevista de Luiz
Fernando de Carvalho, diretor do filme “Lavoura Arcaica”.
2
- GOÉS. Moacyr de. Sem paisagem – Memórias da
Prisão. Edição Europa. Rio, 1989.
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