Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Coleção Memória Histórica
Emmanuel Bezerra dos Santos - Volume IV
Emmanuel
Bezerra: A trajetória e o sentido de sua luta
Todos já haviam
dado entrada na documentação com o pedido de ingresso
na Casa do Estudante do Rio Grande do Norte. Cada um aguardava passar
no teste de pobreza. Uns além de pobres ainda contavam com
recomendação de sócios mais antigos ou pessoas
influentes na política do Estado.
Era 1963, entre dezenas
de candidatos estava um jovem raquítico, cabelo encaracolado,
rosto, já àquela altura, marcado por muitas espinhas.
Chamava a atenção
dos mais curiosos ver pendurado no pescoço daquele jovem
um grosso rosário que um Agnus-Dei. Ambos representavam seu
profundo sentimento de fé e de proteção à
tentações do mundo.
Aparentemente tímido
e talvez estudando melhor o novo ambiente o jovem externava apenas
um sentimento recatado. Vindo de um lugar simples e pacato mais
de convivência com homens corajosos que embrenhavam-se mar
adentro para buscar o sustento de suas famílias, ele certamente
se perguntava: que tipo de coragem e destemor terão que ter
os homens que vivem nesse mundo agitado?
Os seus padrões
certamente estavam em conflito com essa nova realidade. Filho de
mãe devota e serva de Deus, vereadora pertencente, no seu
município, ao esquema dinartista, inclusive no período
da ditadura, não lhe seria nada fácil equacionar a
sua acentuada religiosidade, os valores políticos herdados
e a vida profana e agitada que dominava o coletivo do casarão.
O seu talento, entretanto,
surpreendia desafiando as circunstancias. A sua convicção
de quase coroinha começou a ser testada e abalada com as
amizades e relacionamento que engendrou no interior da Casa do Estudante
e no Atheneu. O gosto pela leitura lhe aflorou com a intensidade
e o sentido de quem desbrava terras virgens buscando a fertilidade
oculta em suas entranhas.
O contato com a literatura
lhe permitia novas incursões no campo do conhecimento humano.
De inicio Jorge Amado, Graciliano Ramos, Manuel Bandeira, Vinícius
de Morais, Carlos Drumond, José Lins do Rego, Machado de
Assis, entre outros, constituíram sua literatura predileta.
Daí foi um passo para Erich Fromm e Roger Garaudy que, no
campo da psicanálise e da filosofia forneciam os elementos
teóricos à compreensão mais próxima
da sociedade que vivia.
Todavia, longe de bastar-se
com essa leitura, o jovem buscava a cada dia contato com novos enfoques
sobre o mundo que pretendia compreender. Essa sede de saber o arrastou
para a vida cultural da Casa do Estudante fazendo-o participar dos
concursos de prosa e veros promovidos pelo então Grêmio
Lítero-Cultural "Câmara Cascudo", e, posteriormente,
manter seus primeiros contatos com a filosofia marxista.
Concomitante ao seu progresso
intelectual salientava-se naquele jovem o interesse pela política.
A fé religiosa que herdara de sua mãe foi aos poucos
se transformando em opção política e ideológica.
Já não lhe bastava compreender o mundo, era preciso
intervir decididamente. A sua destacada participação
no movimento estudantil secundarista, dentro e fora da Casa do Estudante,
lhe credenciariam a disputar a presidência desta.
Ele havia se temperado
nos embates de lutas estudantis com os verdugos da ditadura. Naquela
época, 1964 a 1966, os movimentos operários haviam
sido sufocados pelo regime militar. Era no movimento estudantil
que residia a resistência do povo brasileiro aos golpistas
de plantão.
Eleito, em 1967, presidente
da Casa do Estudante. sucedendo o também saudoso companheiro
José Rocha (Kerginaldo), o jovem estudante revelava cada
dia, além da inteligência, coragem e ousadia. Transformou
a Casa num bastião de resistência e liberdade. Muitos
foram os lideres estudantis que de lá saíram e tantos
outros que lá iam buscar a base de sustentação
de seus projetos políticos, recrutando em seus filiados os
quadros de que precisavam para integrar os partidos ou movimentos
clandestinos.
Antes mesmo de eleger-se
presidente o jovem praieiro já havia ingressado na vida partidária.
Naquela ocasião histórica a maioria dos militantes
estudantis já pertenciam ao Partido Comunista Brasileiro
(PCB). Ele também fazia parte dos quadros do partido. Outros
entretanto, se engajaram na Ação Popular (AP), organização
política com raízes na doutrina social da igreja.
O Partido Comunista do Brasil (PC do B) não tinha qualquer
expressão, ainda, no estado.
A ousadia do jovem presidente
inquietava até mesmo seus companheiros de partido e de Diretoria
da Casa do Estudante. Passando sempre por crises periódicas
a Casa a exigir a tomada de decisões que respondessem às
necessidades de alimentação e de alojamento para um
universo crescente de associados. Aquele jovem impetuoso não
vacilou e mantendo contato com o gerente do Banco S. Gurgel negociou
o financiamento de 10 (dez) veículos que constituíram
o prêmio de um BINGO que seria promovido pela Casa do Estudante.
Muitos temeram e duvidaram da empreitada. Mas o jovem presidente
foi em frente e obteve grande êxito, apesar de um incidente
ocorrido com um veículo do sorteio, substituído por
um novo. Foi com o resultado desse BINGO que se conseguiu construir
alguns novos alojamentos e garantir por algum tempo melhores condições
de higiene e alimentação aos moradores da casa.
A luta travada por ele
não se restringia a administração da Casa do
Estudante. Em 1967, aprovado no vestibular de sociologia, a sua
participação no movimento estudantil universitário
era, inegavelmente, da maior importância. Ao mesmo tempo que
promoveu uma grande passeata da Casa até o Gabinete do então
prefeito, Agnelo Alves, visando presioná-lo para liberar
mais verbas para a entidade que dirigia, não lhe faltava
tempo para dar apoio e ajudar o DCE na luta contra o acordo MEC-USAID
que tinha como objetivo divorciar a universidade dos interesses
da Sociedade e transformá-la em mero laboratório a
serviço dos grandes grupos nacionais e estrangeiros.
Também, esteve
à frente, juntamente com outras lideranças estudantis,
do movimento em defesa do aproveitamento dos excedentes de medicina,
direitos e odontologia da UFRN, e do protesto contra a morte do
estudante Edson Luiz, no Rio de Janeiro.
Em 1967 foi eleito delegado
ao Congresso da UNE, realizado em São Paulo.
Quando chegou a Presidência
da Casa do Estudante já havia rompido com o PCB e ingressado
no Partido Comunista Revolucionário (PCR). Partido de caráter
regional que conseguiu atrair para os seus quadros vários
militantes do movimento estudantil de Natal.
Foi nesse novo partido
e em face da prisão por um ano, além das perseguições
que lhe foram impostas pelo regime militar que o jovem líder
foi pouco a pouco se embrenhando na clandestinidade. A sua fé
religiosa havia se transformado em crença político-ideológica.
Agora só o partido, o seu programa e o projeto de construção
da sociedade socialista lhe interessava. E só a clandestinidade
e a "verdade absoluta" da filosofia e da práxis
marxista-leninista eram capazes de animá-lo em vôos
mais alto em busca da tomada do poder.
Homem sem vaidades materiais,
gestos simples e muita coragem pessoal. No caminho de sua luta ou
da luta de todos era assim Emmanuel Bezerra dos Santos. Pretendeu
aprender de tudo, da Aliança Francesa à defesa pessoal.
Não lhe constrangia por estar bem ou mal vestido ou calçado.
Via de regra as roupas melhores que usava ou sapatos que calçava
não eram seus. Nada disso lhe afetava. O sentimento de sua
consciência e a forma religiosa como abraçou a militância
política e a luta pelo socialismo era suficiente para faze-lo
ir em frente.
Mas Emmanuel Bezerra
sabia os riscos de vida que corria. Todos os militantes das organizações
clandestinas de esquerda sabiam e sofriam revezes que tornava cada
vez mais difícil a sobrevivência subterrânea.
Esse jovem, nascido em
Caiçara do Norte tombou em nome da liberdade. Os seus equívocos
não devem ser invocados para justificar a omissão
de muitos. Sua vida deve servir de exemplo sem que se mistifique
a sua luta e os seus ideais.
Manoel
Duarte (MANU)
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