MERCOSUL:
LIÇÕES DA CRISE
WAGNER ROCHA
D´ANGELIS
( * )
Passados
dez anos da criação do MERCOSUL, fatores internos e externos
coincidentes envolvendo seus países-parceiros parecem toldar os
horizontes de uma promissora perspectiva de construção do
segundo mercado comum do planeta. Para tanto, se mantidos os compromissos emanados do Tratado
de Assunção (26.03.1991), o bloco mercosulista deverá,
inclusive, proceder à livre circulação de bens, serviços e
fatores produtivos (capital e trabalho), etapa a ser atingida ao término
do processo de conver- gência da tarifa externa comum (TEC) –
teoricamente em 2006! Uma
estimativa que pode estar sendo cada vez mais relegada ao exercício
de futurologia, dado o recente quadro de divergências e insatisfações
na região platina, agravado com o “colapso argentino”.
Vive
a integração assuncena uma nova e séria crise, a exigir
inegavelmente grande exercício de criatividade, seriedade política
e prática solidária intra-bloco, para, contornada a fase
negativa momentânea, ver implementada as necessárias revisão
estru-tural e devida correção de rumo que garantam a sua
continuidade, evitem a agudização do confronto entre seus
membros, ofereçam segurança aos investidores e criem reais
opor-tunidades de melhoria das condições de vida de suas populações.
A crise, porém, em que pesem as apostas dos fatalistas do
caos de sempre e dos distanciados da realidade interna-cional,
pode alimentar alternativas de solução e fortalecer o processo
integracionista. Mas será que isso é possível diante de um cenário
aparentemente conturbado e amedrontador?
Observe-se
que decisão brasileira de suspender as negociações bilaterais
de comércio com a Argentina, anunciada na primeira semana deste mês
de julho, como repre- sália à edição, pelo governo argentino,
da Resolução 258/01, que barateou unilateralmente as importações
provenientes de países extra-bloco e estabeleceu a adoção de câmbio
duplo para as operações de comércio exterior, acentuaram as
discrepâncias econômicas entre os principais parceiros do
Mercosul – em
apregoada rota de colisão desde a desvalorização da moeda
brasileira em 1999 – e realimentaram a síndrome da implosão do
conjunto assunceno.
A
ressaca da vez nas praias da integração mercosulista ficou por
conta do Pro- grama de Competitividade criado pelo ministro
argentino Domingo Cavallo, em busca de uma solução para os três
anos de recessão progressiva da economia de seu país.
As medi-das protecionistas, propugnadas em março de 2001,
elevando em 35% as tarifas dos pro-dutos de consumo duráveis e não
duráveis (v.g., alimentos, calçados, têxteis), reduzindo para
0% as importações de bens de capital para países extra-bloco e
desvalorizando o peso argentino para exportações, contaram com a
tolerância inicial do Brasil
- e coletivamente referendada na reunião extraordinária
do Conselho do Mercado Comum (Buenos Aires, 07.04.2001) - enquanto
“transitórias e excepcionais”.
A manutenção de seus efeitos, por meio de ato ministerial
(julho de 2001), porém, acabou provocando uma forte reação do
governo brasileiro, que pediu a revisão do pacote argentino por
atentar contra a essência do Mercosul – que é
a união aduaneira – e causar prejuízos a produtos
brasileiros com a eli- minação parcial das suas vantagens
preferenciais no mercado sub-regional relativamente aos de
terceiros países.
E
se é certo que o Mercosul vive hoje um momento de extrema
debilidade e incertezas, por conta das dificuldades econômicas e
estruturais internas de cada membro, tem merecido, por outro lado,
o reconhecimento de outros blocos, como a União Européia, que já
apresentou uma minuta-tentativa para um acordo de livre comércio
inter-regional aos Estados-Partes.
O mesmo
pode-se dizer
em relação
ao Nafta, na perspectiva
já em
andamento
da formatação da Alca – questão polêmica, a exigir cuidados
locais, mas que não pode ser vista estrabicamente como idéia
divisionista ou antagônica, tampouco como americana panacéia!
Por
outro lado, longe de representar o fim do Mercosul, a crise
provocada pelo “efeito Cavallo” deveria servir de lição para
os parceiros da integração assuncena, seja por demonstrar a
necessidade de amadurecimento político com vistas a um mercado
comum por fazer, seja por evidenciar a importância crescente dos
blocos econômicos, especial-mente em sua vertente comunitária,
para sedimentar a paz e a solidariedade entre povos,
bem como promover o desenvolvimento social pelo caminho do
pluralismo democrático.
É
verdade que isso não pode impedir uma visão crítica acerca do
projeto e das atitudes de seus sócios estatais. Esse recente
conflito comercial e político envolvendo os principais
integrantes do Mercosul, ao qual se somam as decisões do Paraguai
e do Uru-guai – o primeiro, aplicando uma tarifa de 10% para 332
produtos da região, e o segundo, elevando em 3% as tarifas de
todas as importações (sangrando assim novamente a TEC) -, na
busca de compensações em face das concessões facultadas aos
argentinos pela Decisão CMC 1/2001, o que sinaliza acumuladas
insatisfações setorizadas quanto a um alegado papel de
coadjuvantes no bojo do modelo, só faz ressaltar o flagrante
distanciamento entre a teoria e a prática integracionista
na região platina.
Mas
aqui é preciso ter em mente que o Mercosul
é uma realidade regional de características
multidimensionais, onde interagem forças endógenas e exógenas,
a indicar que embora inafastável o objetivo último do Tratado de
Assunção, isso não assegura uma trajetória linear ao projeto.
E aqui o
consolo fica por conta da comunidade européia, ao patentear, do
alto de sua experiência cinqüentenária, que o caminho da
integração é muitas vezes sinuoso e pouco iluminado, onde não
faltam crises e circunstanciais retrocessos.
Além
de equívocos estratégicos aparentemente maniqueistas,
constatados no transcorrer desse curto e denso percurso de dez
anos, e sintetizados, de um lado, pela con- cepção lírica dos
que muitas vezes tentaram vender a idéia da integração como o
elixir do progresso ao alcance das mãos, e de outro, pelo
discurso dos eternos pessimistas (alcunha-dos de “Cassandras do
Mercosul”), cabe o registro de que muitas vezes, igualmente,
per- deu-se de vista o verdadeiro sentido da proposta assuncena,
para se enxergar o Mercosul exclusivamente como bandeira comercial
de curto prazo e se tentar fazer dele apenas uma marca comercial
vencedora, o que em parte já teria sido alcançado se nos
limitarmos a medi-lo em termos de balanças de pagamento e
indicadores econômicos comparados.
Ora,
para isso não era necessário criar algo tão complexo e tão
ousado, como lhe aponta o Tratado constitutivo de 1991.
Pelo contrário, a sua legitimidade repousa no objetivo de
longo prazo, explicitamente definido para esse vínculo
associativo: isto é, o desenvolvimento
de um mercado comum, que se assenta sobre a reciprocidade de
direitos e obrigações
entre os parceiros da empreitada.
Ao se reduzir o processo à sua porção
comercial comete-se
o erro crasso da manutenção de mecanismos precários de controle
e funcionamento,
gerando em seu interior
um clima de insegurança
quanto à qualidade e
eficácia
imprescindíveis à maior incidência de investimentos e de estratégias
empresarias, ao maior fluxo de negociações com terceiros países
ou blocos, e, maior grau de credibili- dade popular e/ou
institucional acerca do futuro desse espaço sócio-econômico
ampliado.
Na
falta desses elementos balizadores, o Mercosul passa a imagem –
que já foi altamente positiva entre 1995 e 1996 -
de um processo em deterioração desde o primeiro semestre
de 1999, quando tornaram-se nítidos a falta de funcionalidade do
modelo formal e de seus mecanismos ante os problemas enfrentados
no âmbito do comércio intra-bloco e no das negociações
comerciais internacionais. A
partir daí, e inclusive pela falta de avanço na coordenação de
políticas macroeconômicas, multiplicaram-se os desacertos, em
que pesem
os
discursos de “relançamento” e as tentativas de articulações
inter-regionais, o que levou o Mercosul a ser visto, então, mais
como parte dos problemas e não tanto das soluções dos
consorciados - justamente em tempos de enfrentamento das complexas
negociações em torno da efetivação da Alca e do aprofundamento
de relações com a União Européia.
Mas
apesar dos pesares, e contrariando ceticismos e adversidades, o
Mercosul “não está morto”.
Passados dez anos de seu lançamento, o Mercosul, tanto
como realidade regional quanto como idéia estratégica, mantém
sua força, sua vigência e uma boa base de sustentação.
Apresenta, porém, notórias deficiências, seja como
processo e respectiva estrutura
jurídico-funcional, seja como imagem, suscitando dúvidas em
termos de poder de barganha, atração de investidores para todos
os sócios e de
identidade cultural. Inegável,
por outro lado, o saldo acumulado no campo da consolidação
democrática e do combate às tentações totalitárias, assim
como no aprendizado da diplomacia da integração.
Irrefutável, também, a capacidade do bloco em incrementar
o comércio sub-regional , de perceber a realidade e as mudanças
do contexto internacional, de projetar-se como nunca no cenário
latino-americano. Razões
que, por si só, já justificam
a existência do Mercosul .
Por
fim, há que se registrar
que a configuração institucional definitiva do Mercosul, para além
do período de convergência da tarifa externa comum
(TEC), terá de decidir entre os caminhos - diferentes
quanto a resultado final e resposta aos imperativos da globalização
que se espraia - da cooperação ou da integração e,
consequentemente, entre
intergovernabilidade e supranacionalidade.
O sucesso ou esvaziamento do modelo passa por esses conceitos, leitura que mais se aclara após os
desentendimentos entre Ar-gentina e Brasil, clamando pela
necessidade de redefinirem e harmonizarem seus projetos nacionais,
desenvolverem mecanismos e regras padronizadoras do comportamento
dos atores governamentais e privados, bem como de agregarem à
atual estrutura intergoverna-mental do Mercosul alguns
ingredientes e princípios análogos aos que ajudaram a fazer a
diferença no contexto integrado europeu – dentre eles, a
instalação de um tribunal fixo e independente dos governos,
enquanto órgão jurisdicional competente para o controle da
legalidade dos atos e da interpretação das normas regionais,
para assegurar a coerência do sistema jurídico comum (ou comunitário) e dar segurança social ao bloco
mercosulista.
Afinal,
se o mercado comum for
de fato a opção qualitativa do Mercosul, torna-se indispensável
a figura do tribunal
supranacional para
estruturá-lo juridicamente.
Espera-se que sobre a realidade circunstancial
intra-bloco, após a crise entre o Brasil
e a Argentina, que paralisou o Mercosul em 1999 e por pouco
não o implodiu em 2001, so- prem ventos mais lúcidos, capazes de
estreitar o laços políticos interestatais, solidificar a
solidariedade e a participação internas, além de inspirar
medidas mais avançadas com rela- ção ao quadro institucional
desse consórcio assunceno.
Tomara
que ainda haja tempo!
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( *
) WAGNER
ROCHA D´ANGELIS
é jurista especializado em Direito da Integração e em
Direito Internacional, professor universitário, Presidente da
Associação de Juristas pela Integração da América Latina (AJIAL)
e Coordenador Executivo do Inst. Brasileiro de Estudos Avançados
(IBEA).
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E-mail: ajial.mercosul@bol.com.br
ou dangelis_internacional@hotmail.com.
Curitiba,
setembro de 2001.
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