Coleção
Memória das Lutas Populares no RN
Documentos
Dermi Azevedo
Travessias
Torturadas - Excertos
Dermi Azevedo
Aos
eternos companheiros e companheiras de luta Emmanuel Bezerra, Manoel
Lisboa de Moura, frei Tito de Alencar Lima, Maria Nilde Mascellani,
José Luiz Brum, Nelson Martinez, Vanderlei Caixe, Flávio
Canalonga, João Bittar, frei Giorgio Callegari e Paulo Freire.
Dedico em especial este livro ao meu primeiro filho Carlos Alexandre
Azevedo que, com menos de dois anos, sofreu em seu frágil
corpo de criança a brutalidade da repressão fascista
nos porões do DEOPS/SP.
Dedico também aos meus pais José e Amélia,
às minhas irmãs Sebastiana e seus filhos Walter, Fátima
e Vera, Judy e seus filhos Judson e Josenaldo, à Cláudia,
aos meus filhos Carlos Alexandre, Daniel, Estevão e Joana,
à minha esposa Elis Regina Almeida Azevedo e às nossas
filhas Paula, Betânia e Fernanda, a d. Júlia Almeida
e Valdir e aos seus filhos.
A todos os companheiros de luta por um mundo mais justo, na pessoa
de Roberto Monte e Maise e aos homens e mulheres decentes que marcaram
a minha vida.
O Povo Como Protagonista
Este
livro tem como protagonista o povo brasileiro. Isto significa dizer
que os fatos aqui narrados e testemunhados estão intimamente
vinculados ao doloroso processo de emancipação dos
povos originários, dos negros, dos quilombolas, dos trabalhadores
urbanos e rurais, das mulheres e dos homens, das crianças,
dos jovens e dos idosos deste país chamado Brasil.
O autor integra esse povo e sua trajetória pessoal está
diretamente ligada a essa caminhada histórica. Como dizia
Ortega y Gasset, “o homem é o homem e suas circunstâncias”.
Talvez se o autor fosse oriundo das classes sociais que historicamente
controlam o poder no Brasil, suas palavras manifestariam outra ideologia
conservadora elitista, preconceituosa e legitimadora da violência.
No entanto, a sua origem de classe e as circunstâncias favoreceram
o seu processo de conscientização no seio da classe
trabalhadora e, portanto, do povo. Esse universo específico
é representado pelos migrantes nordestinos, pelos mineradores
do interior do Rio Grande do Norte, pelos paulistanos apressados
para chegar ao trabalho, por todas as vítimas de qualquer
discriminação.
Foi contra o povo brasileiro que as elites civis e militares levantaram-se
em 1964, com o apoio do governo dos Estados Unidos. Elas já
haviam percebido que o processo de reformas democráticas
no Brasil levaria o povo a conquistar espaços talvez definitivos
na afirmação de seus direitos de cidadania. Deste
modo, a preocupação do autor é a de resgatar,
na sua própria história pessoal e no testemunho gritante
de centenas de mortos e desaparecidos políticos, o caráter
deste processo.
Outra ênfase dada pelo autor refere-se aos aspectos subjetivos
da vivência de uma ditadura fascista e repressora por natureza.
Ninguém consegue descrever, com inteireza, o impacto desumano
e destrutivo da ditadura de 1964 no plano ideológico. Durante
a Guerra Civil espanhola, a imprensa perguntou a um general por
que o franquismo perseguia a esquerda: “Porque pensam”.
Os golpistas de 1964 fizeram exatamente o mesmo: tentaram extirpar
o pensamento crítico no Brasil, substituindo-o pela ideologia
da segurança nacional. Não me esqueço da recomendação
que recebia de alguns editores de jornais e revistas onde trabalhei.
De antemão, eu repórter não poderia, nas entrevistas,
mencionar a expressão direitos humanos. Muitos homens e mulheres
das Igrejas colaboraram nessa sórdida tarefa de esmagar o
pensamento crítico.
A história cobra deles hoje a sua responsabilidade. E o faz
por meio das armas democráticas representadas pelas comissões
da verdade e da memória, embora criadas muito recentemente
(e o Brasil é um dos países mais atrasados nesse ponto
na América Latina), essas instituições expressam
um avanço na intervenção da sociedade civil
e do povo brasileiro.
O autor considera que há muito que fazer, muito mais do que
já foi feito. Os mortos e desaparecidos políticos
esperam a nossa atuação permanente e firme. O autor
reconhece e agradece a todas as pessoas que colaboraram para que
esse livro fosse publicado. E espera que cada leitor e cada leitora
reveja o seu papel nesse processo.
A democracia formal não pode iludir-se sobre o caráter
efêmero e susceptível das democracias de Estado de
Direito. Trata-se de uma planta bela e fraca, por natureza, que
exige ser cuidada a cada minuto do dia; do contrário, a falta
de água felicitará a tarefa dos abutres e todas as
nossas serão exterminadas. No entanto, existem sinais de
esperança. Espero que este livro contribua para reforçar
a esperança em um Brasil justo, e fraterno, e solidário.
Apresentação
I
Vladimir Platilha*
Os
que lutam,
“Há aqueles que lutam um dia, e por isso são
bons.
Há aqueles que lutam muitos dias, e por isso, são
muito bons.
Há aqueles que lutam anos, e são melhores ainda,
porém há aqueles que lutam toda a vida.
Esses são os imprescindíveis”. (Bertolt Brecht)
O
livro do companheiro Dermi Azevedo se enquadra dentro dessa visão
do poeta Bertolt Brecht. É um livro imprescindível.
Possui uma das poucas características dentro da autobiografia
literária, que é o equilíbrio humanista de
um esteta com a consciência social de um jornalista político.
Seu livro nos faz retornar ao tempo tenebroso da ditadura militar;
sua travessia torturada em meio a um deserto de crimes e de atrocidades
é mais do que uma lição, é uma reflexão
para que todos os patriotas se unam para barrar as tentativas fascistas
que querem que a juventude esqueça as barbaridades do passado.
O livro é repleto de um clamor por justiça. O companheiro
Dermi Azevedo nos transmite uma esperança e uma fé
alicerçada na convicção de que, apesar das
maiores injustiças que possamos sofrer, nunca devemos desanimar,
mas sempre acreditar que um mundo solidário e fraterno é
o futuro da humanidade. As futuras gerações serão
feitas de homens como Dermi Azevedo, que sabem transformar ódio
em perdão, quedas em recomeços. O escritor Stephan
Zweig disse: “Um homem só pode dizer que já
viveu, quando sentiu na pele as misérias desta vida”.
Dermi Azevedo fez isto, transformou as misérias da vida em
uma travessia para um mundo de liberdade e amor.
*Vladimir
Platilha
Membro do Diretório Estadual do PPL-PA, Partido Pátria
Livre
Apresentação
II
Dalmo Evangelista
Mestre
Dermi,
Sei que você terá uma surpresa muito grande ao receber
esta correspondência. Mas, diferentemente de Sofia (GAARDER,
Jostein) não precisa entregar a Hilde Knag! Afinal, eu sei
quem é você!
Na verdade, a remessa deveria ter sido feita há meses, no
momento em que comemoramos os 80 anos do Seminário de São
Pedro. Mas atribuo o atraso não à falta de atenção
ou gentileza para com o inesquecível amigo, mas, certamente,
às atribulações do dia adia e à própria
rotina espartana comum ao nosso cotidiano.
Mestre, embora as pessoas nem sempre percorram os mesmos caminhos,
muitas vezes ocorrem momentos de aproximação. Estes
não devem ser desperdiçados, pois materializam o resgate
de aspectos e lembranças da história de cada um e
ainda produzem conforto espiritual e sentimentos de alegria e satisfação.
É nesta perspectiva e com espírito de fraternidade
que envio esta carta para você, mesmo correndo o risco de
alguém já tê-lo feito e você já
deve ter lido a “Revista Comemorativa” em anexo.
Talvez você não saiba, mas você foi a pessoa
que me presenteou um livro, pela primeira vez na minha vida. E aquilo
serviu para despertar em mim o gosto e o zelo pela leitura. Você
era, à época, chefe da equipe de Cultura, no Seminário
de São Pedro. O livro poético da Bíblia, os
Salmos, teria sido uma homenagem de reconhecimento à apresentação
de um trabalho em um dos Núcleos de Improviso, então
existentes no Seminário.
Sempre falamos aqui em você. Quis o destino que eu fosse ensinar
em Currais Novos (atualmente sou professor da UFRN – Curso
de Administração), belíssima cidade, sobre
a qual tanto ouvi comentar, ainda no Seminário, tanto por
você quanto pelos colegas Ernane e Erli (meus atuais “vizinhos”,
em Natal). Em lá chegando, conheci Lécia, pessoa amável
que dispensa comentários, e a quem devo oportunidade deste
contato. E sobre você ela tem sempre elogios!
Mestre Dermi, a festinha de comemoração pelos 80 anos
do Seminário foi altamente agradável. Reuniu, no América,
toda a cúpula da igreja local e do Seminário, tanto
as autoridades do passado, como as de hoje, tendo havido uma interessante
integração com os atuais e os ex-seminaristas. Sei
que você quer saber, mesmo não sendo possível
citar todos os que estavam presentes: os mestres Misael, líder
e principal incentivador dos frequentes encontros das turmas –
Adauto, Ernane, Pedro Avelino, Zé Luís, Lúcio,
Lira, Marcos e Anchieta (irmão), Campos, Canindé,
Cassiano, Zé Aquino, Zé Gonçalves, Gildenor,
Tarcísio, Zé Gomes, Ivanilson, João Agripino,
Jocelin, Tarcísio Palhano, Jaime (agora Dom) e muitos outros.
Notou-se a ausência do mestre Ferreira, também meu
vizinho; e ainda a do pessoal da “Pax et Bonum”, com
todo o respeito que merece!
Dermi, mesmo à distância, procuramos sempre ter alguma
informação sobre você. Desde a Editora Vozes,
onde você esteve; nas entrevistas na televisão com
alguma frequência; e também na Folha de S. Paulo, através
de algumas reportagens suas. Infelizmente, só leio a Folha
aos domingos, pois aqui o preço do jornal é alto (R$
6,00 aos domingos), e completo a leitura durante a semana pela internet.
Agora vou preparar o envelope para mandar pra você, mesmo
com o sentimento de que você esteja até em Currais
Novos hoje, pois estou escrevendo em plena festa de Santana! Não
deverei ir às festividades, pois passei a semana em Brasília,
onde apresentarei um trabalho na SBPC, que termina hoje.
A você muitas felicidades
e um abraço amigo,
Dalmo
Evangelista
Assim
começaram minhas travessias
Eu
tinha apenas 16 anos quando avistei, nos céus de Natal, dezenas
de aviões que sobrevoavam baixo a cidade. Eu e os outros
alunos do Seminário de São Pedro fomos convocados
pelo reitor, cônego Lucilo Machado, para a sala de reuniões.
Logo lhe per-guntamos o que estava acontecendo. Respondeu que eram
”as forças armadas que estavam derrubando o comunismo”.
O rádio da sala estava ligado no Repórter Esso e Heron
Domingues narrava o deslocamento de tropas de Minas Gerais para
o Rio de Janeiro, sob o comando do general Olímpio Mourão
Filho. As notícias do sucesso do golpe chegavam filtradas
aos nossos ouvidos, mas já eram fortes as informações
sobre a prisão de dezenas e centenas de pessoas acusadas
de “subversão”.
Uma das primeiras memórias que eu tenho da infância
é a de um caso de injustiça social. Meus pais, José
e Amélia, lembravam sempre, entre lágrimas, o que
aconteceu com Derci, o único sobrevivente do primeiro casamento
de minha mãe com João Aprígio de Azevedo, seu
parente de Jardim do Seridó. João havia deixado para
Darci um pedaço de terra como herança, mas logo depois
de sua morte, um fazendeiro rico da região, José Ginani,
a tomou dele sob ameaças. O fato ficou por isso mesmo. Anos
depois Derci, sua esposa Iracema e seus filhos João e Fátima
se mudaram para o Rio de Janeiro, onde ele trabalhou como motorista
e cobrador de ônibus. Depois, já doente, voltou para
Currais Novos. Morreu moço aos 30 e poucos anos.
Influiu também na minha formação religiosa
a Cruzada Eucarística Infantil dirigida pela professora Gisela
Pereira, que nos deu, por exemplo, as primeiras lições
sobre o mistério da Eucaristia.
Quando eu tinha nove anos, fiz a minha primeira confissão
com Mons. Paulo Herôncio de Melo, vigário de Currais
Novos. No confessionário da Igreja Matriz de Sant’ana,
ele me perguntou: “Você quer entrar no seminário?”.
Eu respondi: “Sim”. Pouco tempo depois, minha mãe
arrumou uma malinha de madeira e segui para o seminário de
Caicó, a maior cidade da região do Seridó.
O seminário era dirigido por padres holandeses, da Congregação
da Missão. Eles nos ensinaram a dividir o tempo entre o estudo
das disciplinas obrigatórias e a leitura de obras clássicas
da literatura mundial. Tínhamos um especial apreço
pela rainha da Holanda, Juliana, isto porque, no dia do seu aniversário,
era também feriado para nós. Alguns seminaristas de
Currais Novos formaram um grupo para uma intervenção
cultural no município durante as férias. O grupo era
integrado por mim, por Manoel Jaime Xavier Filho, por José
Adailson de Medeiros e por José Alves Pinheiro. Colaborávamos
com a redação do jornal Tribuna Estudantil, onde eu
escrevia uma coluna sobre política internacional, e com os
programas da Rádio Brejuí, da família Salustino,
a mais rica da cidade. Participava também do grupo o professor
Antônio Quintino, historiador e dono de uma gráfica.
Seu trabalho era muito bem organizado e isto me ajudou bastante,
mais tarde, no aspecto metodológico da pesquisa acadêmica.
Encerrado o período de estudos em Caicó, mudei-me
para Natal para fazer o colegial. A disciplina no Seminário
de São Pedro era rígida. De manhã bem cedo,
íamos sonolentos para a missa na capela. Depois se iniciavam
as aulas. No almoço, costumávamos escutar em silêncio
a história dos mártires no Império Romano.
De vez em quando, havia uma hora matinal de meditação
embaixo das mangueiras e cada um recebia um livro com a história
de um santo. Vários colegas aproveitavam para ler clandestinamente
outros livros como “A Carne”, do português Júlio
Ribeiro, e “A vida sexual dos solteiros e casados”,
do padre e médico maranhense João Mohana.
Três anos depois, eu passaria a ser uma das pessoas perseguidas
e procuradas pela ditadura. Em 1967, fiz o meu primeiro vestibular
e ingressei na Escola de Serviço Social, da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Essa primeira travessia representou uma dupla mudança qualitativa
em minha vida: de um lado, afastei-me definitivamente do projeto
de ser padre; de outro, passei a ter um contato direto com uma geração
de intelectuais cuja visão sobre o ser humano e sua inserção
na sociedade, de forma transformadora, iria marcar para sempre a
minha própria leitura da realidade. Foram figuras como o
professor Otto de Brito Guerra e as assistentes sociais do Movimento
de Natal (mobilização reformista da Igreja Católica
no Nordeste) que mais influíram sobre minha formação
universitária.
Em 1967, fui eleito o primeiro presidente do Centro Acadêmico
D. Hélder Câmara, da Escola de Serviço Social.
Logo comecei a atuar no movimento estudantil. Iniciamos então
os preparativos para o XXX Congresso da UNE, em Ibiúna, no
interior de São Paulo. Tomei consciência, cada vez
mais, do meu papel de lutar por uma sociedade livre, democrática
e soberana.
Mesmo fragilizados pela repressão, os diversos partidos e
organizações de esquerda continuaram a sua luta, agora
toda voltada contra o regime de fato, imposto ao país. Em
Natal, nos reuníamos regularmente no restaurante universitário,
para análise da conjuntura. Cada um se encarregava de preparar
uma resenha crítica de suas leituras para o debate no grupo.
Pela primeira vez na vida, tomei conhecimento mais sistemático
do marxismo, graças a Emmanuel Bezerra, que me emprestou
o livro clássico Princípios Fundamentais de Filosofia,
do francês George Politzer.
No auge da mobilização, decidimos ocupar o restaurante
universitário. A alimentação servida aos estudantes
era a pior possível e a sujeira era generalizada. Durante
15 dias, os estudantes e a população uniram esforços
para reformar a cozinha e para melhorar o serviço e a luta
foi vitoriosa.
Os slogans predominantes nas manifestações variavam
de acordo com as organizações e partidos de esquerda.
Contudo, havia consenso em torno da palavra unitária de ordem
que era: “Desgastar a ditadura e formar quadros para a Revolução’’.
Epílogo
Camaradas Emmanuel e Manoel Lisboa,
Faz tempo que nós não nos encontrávamos pessoalmente.
Estivemos juntos em São Paulo, durante o governo de Luiza
Erundina, quando seus corpos foram trasladados para o Nordeste.
Foi cumprido, assim, o ritual exigido pelos homens e mulheres justos
de todos os tempos: o cerimonial que indica para toda a sociedade
um parâmetro eterno e imprescritível, o da dignidade
humana. Confesso que chorei discreta e copiosamente ao ver aqueles
ossos e aquelas sandálias carcomidos pelo tempo. Misteriosamente,
os ossos se juntaram e surpreenderam os carcereiros e seus chefes,
certos que estavam de que vocês tinham sido esmagados para
sempre...
Emmanuel e Manoel: eles entenderam tudo errado. Não foram
capazes de compreender que, mais cedo ou mais tarde, vocês
sairão novamente pelas ruas, plenos de vida, como líderes
de uma nova sociedade de homens e mulheres livres. Aliás,
cama-radas, vocês sabem muito bem que os corpos podem ser
triturados inumeráveis vezes; a vitória dos inimigos
do povo poderá ser proclamada em decretos, discursos e festejada
em orgiásticas manifestações.
Mas ninguém será capaz de aprisionar e de matar a
chama de vida permanentemente acesa no coração de
cada criança, de cada menina, de cada menino, de cada jovem,
de cada mãe, de cada pai...
Depois de todo esse longo período voltei a encontrá-los
em Belém do Pará, no ato público organizado
pelo Sindicato dos Professores, em parceria com o PCR. Reencontrei-os
na pessoa de Cajá. Fazia tempo que nós não
nos víamos, mas voltou a ocorrer, nessa noite, o que acontece
entre verdadeiros amigos: os assuntos estão sempre na ordem
do dia, como se a reunião anterior tivesse acontecido na
véspera...
Anotei na minha memória que a marca registrada do ato em
Belém foi a da simplicidade. Vocês sabem, aliás,
que foram homens e mulheres simples todos os grandes revolucionários:
Karl Marx, Rosa Luxemburgo, Zumbi, Che Guevara, Ho Chi Minh, Ben
Bella, Agostinho Neto, Luiz Carlos Prestes, Carlos Marighella, Carlos
Lamarca, Gregório Bezerra, Djalma Maranhão, Pedro
Pomar, Amaro Luís de Carvalho, frei Tito, irmã Dorothy
Stang, Margarida Maria Alves, Vladimir Herzog, entre tantos ou-tros
nomes de heróis e heroínas na história da humanidade.
O nosso último encontro pessoal, camaradas, aconteceu numa
tarde de sábado de 1967, numa tosca escadaria entre a Cidade
Alta e a Ribeira, em Natal. Refletimos sobre a terrível conjuntura
que se abatera no Brasil, desde que o Estado policial, repressivo
e torturador se abateu sobre a Nação em nome da “segurança
nacional”. Nessa reunião, discutimos o que poderia
ser a melhor estratégia para o movimento estudantil naquele
momento histórico. Você, Manoel, resumiu didaticamente
a orientação do Partido: o nosso movimento deveria
empenhar-se na luta para desgastar a ditadura e na formação
de quadros para a Revolução.
Antes desse sábado, eu me encontrara com você, Emmanuel.
E você confiou-me a primeira tarefa: estudar e fazer um resumo
do livro “Princípios fundamentais de Filosofia”,
do filósofo marxista francês Georges Politzer. Lembro-me
muito bem o que você me disse naquele momento: “Procure
ler e estudar esse livro com espírito revolucionário
e não burocrático. Estude sempre e tenha sempre em
mente o projeto que move a nossa vida, que é o de construir,
na luta, um mundo livre da exploração do ser humano”.
Ao registrar essas memórias, quero enfatizar que tenho bem
presente, em todo o meu ser, o significado de todo um processo existencial.
Nele, aprendi as lições de simplicidade e ternura
dos meus pais José e Amélia; de engajamento e de firmeza
ide-ológica de Emmanuel Bezerra, Manoel Lisboa de Moura e
de outros companheiros de luta contra a ditadura; de honestidade
e de espírito científico de professores como Paulo
Sérgio Pinheiro e Benjamin de Souza Netto; de compromisso
evangélico de Antônio Henrique Pereira Neto, Paulo
Evaristo Arns, Pedro Casaldáliga, Tomás Balduíno
e Sumio Takatsu; de engajamento revolucionário de Ana Lobo
e de sua filha Elsa, de Eliana Rollemberg, de Isabel Peres e de
Maria Sala; de consciência de classe de Valdemar Rossi, Nelson
Martinez, José Luiz Brum, Brás Joison, Nilson, Gaúcho;
de engajamento em favor dos direitos humanos de Roberto Monte, Nilmário
Miranda, Perly Cipriano, Nilda Turra e Marga Rothe. Aprendi também
que não basta dizer-se de esquerda para proclamar-se militante.
Em muitos casos, sobretudo com respeito à condição
feminina, as violências acontecem mais no campo progressista.
Em todas essas andanças, sempre tentei ser amoroso. Fracassei
muitas vezes. Mas continuo pensando que, sem amor, a vida se esteriliza.
O amor verdadeiro exige um exercício permanente de busca,
paciência e de recomeço. Poder-se-ia perguntar: como
é possível falar em amor depois de ter vivido e de
relembrar tantas tragédias? Responderia que o ser humano
não é uma pedra jogada no espaço. Sua primeira
vocação é a de amorizar o mundo. Isto significa
lutar por relações humanas autênticas e construir
um espaço vital inspirado na liberdade, na igualdade e na
fraternidade. Significa também eliminar todos os fatores
que levaram a sociedade a ser um recanto de bem-estar para poucos
e de miséria para bilhões de seres humanos.
Se fosse preciso recomeçaria tudo. Voltaria às ruas
de Natal para participar de passeatas estudantis. Reencontraria
outros militantes para a partilha de leituras e de estudos. Se fosse
preciso, pediria de novo o apoio e o refugio a outros militantes.
E continuaria a sonhar com um mundo novo, de homens e de mulheres
novos.
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