CONSTRUIR A PLURALIDADE

 Luis Felipe Miguel * 

Há um mérito inegável, ainda que provavelmente involuntário, no novo projeto de lei da radiodifusão do Ministério das Comunicações:pelos absurdos que contém, sua divulgação estimulou o debate público sobre o tema.

Nada que faça jus à importância do assunto, mas, ao menos, a elite política e a imprensa romperam o silêncio que costumam dedicar ao problema do controle da mídia. No entanto, o debate tem surgido de forma um tanto deslocada.Ao projeto elaborado pela equipe do ministro Pimenta da Veiga, opõe-se aquele esboçado na gestão do falecido Sérgio Motta.Os defeitos de um transformam-se, de maneira automática, nos méritos de outro —como se não existissem outras alternativas imagináveis.

De fato, o projeto de lei colocado em consulta pública pelo Ministério das Comunicações representa um retrocesso evidente, até mesmo em relação à situação atual, abrindo as portas para uma oligopolização ainda maior do setor.Mas a proposta de “Serjão ”também não enfrentava os problemas principais que o controle da mídia coloca para o ordenamento democrático. Este é, aliás, o primeiro ponto a ser enfatizado:o que está em jogo é a qualidade da democracia que o Brasil quer construir.

A regulamentação dos meios de comunicação de massa é importante por envolver grandes interesses econômicos, num mercado com espaço para crescer.Interesses econômicos, aliás,  que tendem a ficar ainda maiores, a partir do momento em que,  com a possível alteração do artigo 222 da Constituição Federal, seja permitida a participação do capital estrangeiro no setor. Mas esta é uma faceta secundária do problema.O mais importante é a capacidade de prover informação, cultura e entretenimento para uma população de 160 milhões de pessoas — muitas vezes na situação de única fonte de tais bens..Manual de Mídia e Direitos Humanos 70 Uma parcela significativa dos brasileiros não passou pelos bancos escolares ou, então, freqüentou-os de maneira muito fugaz.A circulação da mídia impressa é relativamente pequena e o acesso às decantadas novas tecnologias, como a Internet,  permanece restrito às franjas superiores da pirâmide social. Com tudo isto, avulta a centralidade dos meios eletrônicos na difusão das diferentes representações do mundo. O crucial é recuperar o papel da mídia de massa na promoção do debate político, tanto ao abastecer os cidadãos com as informações necessárias para que compreendam o mundo que os cerca, quanto apresentando com justeza as diferentes perspectivas sobre os vários temas da agenda pública.Isto é a exigência de pluralismo , ou seja, de compromisso com a diversidade dos interesses sociais e das formas de sua expressão.A experiência mostra que os mecanismos de mercado, por si sós,  não suprem esta exigência;pelo contrário, a concorrência pela audiência e pelos anunciantes tem levado à degradação das funções públicas da mídia e à banalização e uniformização de seus conteúdos.

E é a história recente do Brasil quem revela que todas as grandes redes estiveram do mesmo lado nas ocasiões cruciais, seja no apoio a determinados candidatos à presidência da República, seja na defesa do processo de privatizações,  da reforma do Estado etc., silenciando (ou perto disso)as oposições.Por isso, o remédio da proposta de Sérgio Motta — concorrência —pode funcionar do ponto de vista econômico,  mas é insuficiente quando o controle da mídia é analisado da perspectiva política. Fica claro, desde já, que o controle dos meios de comunicação é um dos principais pontos de estrangulamento da prática da democracia —e, portanto, uma questão central a ser enfrentada por todos aqueles que desejam o aprimoramento das instituições democráticas, no sentido de torná-las mais próximas do significado original de “soberania popular ”.No entanto,  a própria centralidade da mídia no processo político contemporâneo torna difícil a mobilização sobre a questão, pois os.71

Manual de Mídia e Direitos Humanos meios de comunicação obviamente não têm grande interesse em colocar a si próprios como tema da agenda política. O caminho a ser tomado, na visão de quem deseja uma democracia mais substantiva, com cidadãos mais conscientes,  fica sob a bandeira da “democratização da comunicação ”.Este slogan , porém, abriga um conjunto de diferentes medidas, com alcances diversos.Nenhuma delas oferece uma solução mágica,  mas em conjunto podem contribuir para prover a cidadania de uma informação mais plural.

Há, em primeiro lugar, a proposta de desconcentração da propriedade de empresas de comunicação, uma medida que ainda permanece dentro da lógica liberal da competição mercantil. Hoje, os grandes grupos de mídia tendem a operar em diversas áreas:televisão aberta, mas também cabo, rádios, revistas,  jornais, cinema, gravadores, software , provimento de acesso à internet e de conteúdo, quando não telefonia e eletrônica.Isso é verdade para o Brasil e mais ainda para os países centrais. É preciso dividir esses grupos, proibindo o controle de mais de um órgão de comunicação pela mesma empresa na mesma cidade, dissociando a produção da difusão de programas de televisão (isto é, incentivando as produtoras independentes)e assim por diante.

Também é necessário moralizar as concessões para funcionamento de emissoras, despartidarizando o processo e introduzindo um controle efetivo, que vincule a permanência da concessão ao efetivo provimento das tarefas de serviço público quanto a educação, cultura e informação. O anteprojeto do ministro Pimenta da Veiga mantém o controle das concessões no Ministério das Comunicações, permitindo a continuidade do “balcão de negócios ”.Mas a saída não é simplesmente a transferência desta função para a Anatel,  como desejam alguns.

Há aí um duplo equívoco.Primeiro,  como se a “política ”contaminasse decisões que, “tecnocráticamente ”, seriam sempre acertadas.Depois, como se a Anatel não fosse, ela também, um órgão político, nomeado politicamente.Manual de Mídia e Direitos Humanos 72 —com o agravante de, menos visível, ser menos responsável diante da sociedade.Para as concessões, são necessários critérios claros, tanto técnicos quanto políticos , no sentido de ampliar o pluralismo da mídia.

É preciso também transparência, com representantes da sociedade civil participando do processo e,  depois, controlando as concessionárias.

E é necessária uma legislação clara, proibindo que ocupantes de cargos públicos e seus familiares tenham participação na propriedade ou na direção de empresas de radiodifusão. Há ainda uma segunda e importante medida legislativa: firmar claramente o caráter de serviço público, em que a busca do lucro deve estar subordinada ao interesse da cidadania.Isto inclui o compromisso com o provimento continuado e abundante de informações relativas aos assuntos públicos —e, explicitamente, com a apresentação equilibrada e aprofundada das diversas posições nas questões polêmicas.

Por vezes, qualquer tentativa de fixação deste tipo de compromisso é apresentada como um atentado à liberdade de expressão, que passa a ser confundida com o arbítrio dos proprietários das empresas.Na verdade, trata-se de uma medida que visa a concretização de tal liberdade.Vale lembrar as palavras do juiz Byron White, da Suprema Corte dos Estados Unidos, em 1969, interpretando a Primeira Emenda:“É o direito dos espectadores e ouvintes, não o direito dos controladores da radiodifusão, que é soberano ”.A liberdade de expressão se estabelece para beneficiar o público,  isto é, os cidadãos, que devem ter acesso à mais ampla gama de informações. Um passo adiante, significativo, é a introdução do chamado “direito de antena ”, que reserva espaço na mídia para que os grupos da sociedade civil expressem suas posições.No caso brasileiro, tal direito é garantido apenas aos partidos políticos —e,  ainda assim, de forma limitada.Idealmente, o direito de antena seria complementado com formas de financiamento público para canais de expressão de grupos minoritários.Isso porque o direito à informação só se completa quando há também o.73 

Manual de Mídia e Direitos Humanos direito de informar .

Os diversos grupos sociais devem ter acesso às formas de expressão pública, para que participem do debate com sua própria voz.Desconectar o acesso à esfera pública do poder econômico é um dos desafios para a democratização da comunicação e, portanto, para o aprofundamento da própria democracia. 

O Estado deve apoiar as emissões das organizações da sociedade civil, bem como a radiodifusão comunitária, garantindo espaço de transmissão e o acesso aos meios técnicos de produção.Um setor de radiodifusão pública forte, independente das pressões governamentais e do mercado, também cumpre um papel importante, mas para isso deve contar com fontes claras e seguras de financiamento.Não pode depender nem da boa vontade dos governantes de plantão para liberarem verbas no orçamento, nem do mercado publicitário.Num caso, ficaria refém do poder político;no outro, do poder econômico. São muitas as alternativas para o financiamento das emissoras públicas.A proposta de cobrança de taxas dos proprietários de aparelhos de rádio e TV (como ocorre, por exemplo, na Inglaterra, para sustentar a BBC)parece antipática, já que se imagina que a mídia comercial é “grátis ”—na verdade, não é, já que todos nós pagamos pelos anúncios, que encarecem os produtos que consumimos em 10%ou até mais.Mas é possível fixar a receita das emissoras públicas como o percentual da arrecadação de algum imposto ou, então, cobrar uma taxa da verba publicitária da mídia comercial.

O importante é gerar independência para a radiodifusão pública, permitindo que ela se torne a guardiã dos valores da objetividade jornalística e da qualidade cultural. Outras medidas poderiam ser citadas, como a “educação para a mídia ”, destinada a gerar consumidores de informação que,  conhecedores dos processos de produção dessa mesma informação, sejam capazes de endereçar a ela um olhar menos ingênuo e mais crítico.Alguém poderia dizer que são propostas irrealistas, que faltam condições políticas para implementá-las.É provável que seja verdade.Mas cabe a quem entende a importância da democratização da comunicação contribuir para alterar essa situação, criando as condições para a transformação da mídia.Sem isso, estaremos condenados a uma democracia superficial e a uma cidadania frágil.

 *Luis Felipe Miguel é doutor em Ciências Sociais, professor do Departamento de Ciência Política da Universidade de Brasília e pesquisador do CNPq.

 

 

 

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