PODER ECONÔMICO NA MÍDIA

 Emir Sader* Um aspecto determinante no caráter contraditório da formação da opinião pública brasileira está na natureza ao mesmo tempo pública e privada da grande imprensa no nosso país. 

Esta tem um papel essencial, predominante, como espaço principal na formação da opinião pública.Porém, seus aspectos contraditórios marcam centralmente esse processo. 

Seu caráter público está dado porque a grande imprensa é a principal via de socialização de informações para leitores, ouvintes e telespectadores, ao mesmo tempo que lhes oferece um espaço de discussão.No entanto, ao ser formado por empresas privadas , a busca do lucro –inerente a este tipo de empresa –contamina e, de certa forma, desvirtua a função pública da grande imprensa.A busca de publicidade, a de público –ligado estreitamente à primeira –, além de outros vínculos –com o Estado, com os governos, com o empresariado, com fontes de financiamento etc.–pesam, de forma direta ou indireta,  no tipo de informação e de formação que a grande imprensa exerce. 

No caso de tudo o que tem a ver com direitos , pesa no papel o que o mercado, isto é, o poder econômico, ocupa no discurso e nas orientações da imprensa.O mercado –como se sabe – não reconhece direitos.Estes, especialmente os que se referem à grande massa da população, se afirmam –quando conseguem fazê-lo –mediante lutas populares, que terminam reconhecidas em leis e na ação do Estado para levá-las à prática e garanti-las. 

O liberalismo econômico –que avassalou nossas sociedades,  levando de roldão consigo à grande imprensa –desatou uma guerra à morte contra os direitos.

Seu princípio mais geral é o da desregulamentação , isto é, o da livre circulação do capital,  mais além das travas legais e de outra ordem que o limitem..Manual de Mídia e Direitos Humanos 66 Os direitos sociais foram suas vítimas privilegiadas.O diagnóstico do liberalismo econômico faz das regulamentações que,  direta ou indiretamente, protegiam o mundo do trabalho, o vilão de um suposto “atraso ”econômico, desqualificando como “corporativas ”todas as reivindicações protetoras dos trabalhadores, isto é, da esmagadora maioria da população. A grande imprensa foi duplamente protagonista desse processo –como porta-voz de um discurso de violação dos direitos do trabalho e como beneficiária na sua qualidade de empresa. 

O direito ao trabalho é um tema especialmente ausente ou desfigurado na grande imprensa, como exemplo flagrante da natureza social do discurso da grande imprensa. Tudo isso ocorre a partir do fato de que a grande imprensa é constituída por empresas privadas, que têm na lógica do lucro um mecanismo fundamental.Por essa razão é que, como se diz, antes de serem vendidos para nós, os órgãos de imprensa são vendidos para as agências de publicidade.E o que interessa a estas não é nem necessariamente a quantidade de leitores,  ouvintes ou espectadores, mas essencialmente seu poder aquisitivo, já que se trata de vender-lhes mercadorias.

Assim, um órgão lhes faz chegar indicações de quantos e em particular quem é o público desses órgãos:sua capacidade de compra,  quantas vezes viaja ao exterior por ano, com que freqüência troca de carro, se toma bebidas importadas, etc. Um órgão de imprensa portanto é feito também com os olhos postos nesse condicionante importante que é a publicidade – portanto, as grandes empresas, que centralmente anunciam – e não tendo de forma direta e exclusiva como referência a verdade , o leitor , o cidadão ou o país.Isto distorce o enfoque que os órgãos –de formas diversas e em graus diversos –desenvolvem na abordagem tanto da informação, quanto do debate e das opiniões que emite..67 Manual de Mídia e Direitos Humanos Por esse filtro, o público privilegiado que os órgãos mais importantes costumam disputar não é o das classes populares. Se a busca da maioria fosse o determinante central, o povo teria seus interesses disputados palmo a palmo pelos distintos órgãos,  candidatos a expressar um número cada vez maior de leitores,  ouvintes ou telespectadores.Mas não é esse o filtro social, que termina criando um círculo vicioso em que o público privilegiado é o de classe média alta e de burguesia que, por sua vez,  condicionam os órgãos a dirigir seus enfoques nessa direção. Constitui-se, assim, um círculo de “diálogo ”fechado nas esferas mais altas da sociedade, impermeável ao povo. Um exemplo corriqueiro mas que não costuma ser abordado e que serve como prova desse argumento é o de que o partido que detêm a maior parcela do eleitorado e que tem tido os resultados mais favoráveis nos últimos anos, assim como seu principal líder –o PT e Lula –, não tem nenhum grande órgão da imprensa a seu favor.

A hostilização às candidaturas presidenciais de Lula tem tido nuances maiores ou menores conforme o órgão, mas como candidatura que representa basicamente um eleitorado popular, alheio àquele círculo e em princípio rejeitado pelas grandes empresas que costumam anunciar na grande imprensa, é alvo da desqualificação sistemática da grande maioria dos colunistas e dos editoriais da quase totalidade dos órgãos da grande mídia. Os espaços de informação por sua vez, como já foi mencionado anteriormente, não privilegiam o mundo do trabalho,  embora este seja majoritário na sociedade, com as editorias econômicas dirigindo-se diretamente ao mundo dos grandes empresários e até mesmo em particular para o capital financeiro e especulativo, minoria irrisória na nossa sociedade.O povo costuma entrar mais pelo lado da coluna policial, como protagonista –sujeito e/ou vítima –de ações violentas, contribuindo para sua estigmatização como “classe perigosa ”, dado que seu cotidiano de trabalho, de vida diária como empregado, como desempregado, como pai e mãe de famílias, como vítima do.transporte, da crise habitacional, das ações da polícia, do péssimo atendimento das políticas sociais etc, tem um lugar marginal e passageiro na grande imprensa, embora seja o cotidiano da grande maioria dos brasileiros. O caráter democrático da imprensa se choca assim com o fato de ser protagonizado por empresas privadas.

Norberto Bobbio diz que quando se obteve o sufrágio universal, que todos já podem votar nas eleições gerais, é preciso fazer a democracia penetrar em todos os rincões da sociedade, lutando-se pelo voto nos quartéis, nas igrejas, nas fábricas, nas fazendas, na burocracia, nas redações –enfim, em todos os lugares onde se exercem atividades que envolvem os cidadãos.Essa contradição entre os interesses privados da grande empresa e sua função pública marca profundamente a grande imprensa e condiciona fortemente seu desempenho. *Emir Sader jornlista,  escritor e coordenador geral do Laboratório de Políticas Públicas da UFRJ

 

 

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