Direitos Humanos e Jornalismo
Retratar a realidade e transmitir informações são tarefas anti- gas
do jornalismo,que se apresentam como novos desafios à medida que a
sociedade torna-se mais complexa.Um destes novos desafios está na
luta pelos direitos humanos.Em que medida nos dias de hoje o
jornalismo colabora –ou não –para Na última mesa do ciclo de
debates do projeto Direitos Humanos e Mídia,estiveram reunidos na
Fundação Friedrich Ebert,no dia 7 de maio de 2001,Marco Antonio
Coelho, diretor de jornalismo da TV Cultura;Renata Lo Prete,jor-
nalista da Folha de S.Paulo –ex-ombudsman –;Jair Borin, professor
do departamento de jornalismo da ECA-USP;Gui- lherme Amorim,presidente
da Comissão de Justiça e Paz;Cla- rice Duarte,Secretária Executiva
do Consórcio Universitário pelos Direitos Humanos e Mônica
Teixeira,jornalista da TV Cultura,como mediadora.Não atenderam ao
convite para.Manual de Mídia e Direitos Humanos 34 participar do
debate Eurípedes Alcântara,diretor editorial da Revista Veja e Boris
Casoy,apresentador da TV Record. Os participantes da mesa foram
convidados a refletir,em duas horas e trinta minutos de conversa,sobre
a maneira como o jornalismo trata os direitos humanos,do ponto de
vista de quem decide efetivamente o que pode ser publicado ou veicu-
lado.A motivação por reunir pessoas com este tipo de respon-
sabilidade justifica-se pelo fato de que não basta o empenho do
repórter para que o tema “Direitos Humanos ”chegue às páginas
da publicação ou ao telejornal.É preciso que a empresa para quem
trabalha adote uma linha editorial que lhe dê res- paldo.Outra
questão é a dos interesses econômicos e políticos concentrados na
direção dos conglomerados jornalísticos que impedem que conteúdos
de interesse do cidadão estejam nas primeiras páginas. Coube aos
convidados da mesa “Direitos humanos e jorna- lismo ”esboçar os
atuais desafios para a atividade que a maioria desempenha dentro do
tema em questão e traçar algumas pro- postas para que o jornalismo
assuma com mais contundência e propriedade seu papel de agente
formador e observador da sociedade quando se fala de direitos
humanos.Uma questão fundamental abordada dentro deste contexto foi a
da necessi- dade de uma melhor formação para os profissionais do
jorna- lismo,também levantada nos debates anteriores. Mônica
Teixeira pergunta:Como qualificar a cobertura? Marco Antonio Coelho,da
TV Cultura,parte do ponto de que os direitos humanos já conquistaram
um espaço na pauta jornalística que lhes garante cobertura da maior
parte dos veículos de comunicação eletrônicos em casos de
violação e denúncia. Este espaço não necessariamente estaria
ligado ao gosto da população,que freqüentemente serve de
referência para a defi-.35 Manual de Mídia e Direitos Humanos
nição dos conteúdos veiculados na televisão.“A mídia neste caso
específico não trabalha com o ingrediente de mercado.(...) Tenho a
impressão de que a população,de um modo geral, ainda não tem a
questão da violação dos direitos humanos com esse grau de
importância que tem para os veículos de mídia. Isso já é um ponto
positivo,pois nesse caso específico a mídia não segue a tendência
do mercado que é a tendência de verificar o que a população quer
ver ”,explica. Cabe ao jornalismo,segundo Coelho,mostrar o que é
bom para a sociedade,independentemente do que pede o mercado ou aponta
o Ibope.Neste sentido,sua função seria a de forne- cer elementos
para a evolução da vida em sociedade.Isso se con- firmaria ao
olharmos para o passado e percebermos que a evo- lução dos direitos
teve determinada ordem e que o jornalismo acompanhou tudo isso.“Primeiro
foram os direitos civis,lá na Revolução Americana,com a questão da
propriedade;depois vieram os direitos políticos,com a questão do
voto e depois os direitos sociais,na Revolução Indústrial.O
jornalismo veio mostrando o que são esses direitos,ajudando até no
processo de formação,mas sempre do ponto de vista de divulgar as
idéias dos homens que planejavam esses direitos.” Seguindo esta
lógica,Coelho afirma que o jornalismo teria colaborado também para a
organização dos direitos humanos. E com um elemento contundente.“Até
como uma bandeira, porque o jornalista foi muito violado em alguns
momentos. Então isso é um pouco sinônimo de falta de liberdade de
expres- são,tortura.Em algum momento os direitos humanos viram até
questão de auto-defesa,um princípio de auto-preservação do
jornalismo ”,completa. Como discutir políticas públicas que levem
o homem a não come- ter violações? “A cobertura que a mídia tem
para fazer agora não pode mais ser simplista.Estou cansado de
matérias sobre violação.O negó-.Manual de Mídia e Direitos
Humanos 36 cio é como a gente vai discutir política pública que
leve os homens a não cometer violações ”,afirma.“Estamos em um
pro- cesso de democratização recente,de 15 anos,e evidentemente
temos muita informação que circula.Portanto,as modificações vão
ser mais rápidas.Não precisa levar cem anos como levou em outros
países.A gente pode dar saltos no processo de orga- nização da
democracia ”,continua. O desafio deste momento,segundo Coelho,seria
o jornalista descobrir como acompanhar este processo da forma mais
pro- dutiva possível.“A gente ainda não tem a solução,e eu digo
porque a gente procura isso lá na TV Cultura,que é uma emis- sora
pública.Tem uma diferença muito grande em relação às outras
emissoras,aqui falando de televisão,e ao jornalismo impresso,que
vende mercadoria ”,conclui. O jornalismo público,nos termos de
Coelho,é o que tem buscado uma televisão como a Cultura,que trabalha
com recur- sos do governo,mas sem a interferência do governo em seus
conteúdos e sem o lucro como meta.“Trata-se de um outro tipo de
jornalismo;é difícil,estamos ainda no início do pro- cesso.O
objetivo é o interesse público,da sociedade e do homem,e não do
mercado consumidor.Nosso negócio é o cidadão.E a gente pode fazer
isso,porque não dependemos do mercado completamente ”,define. A
relação entre este novo tipo de jornalismo e o trabalho pela
efetivação dos direitos humanos é direta.“A gente está se
debruçando nessa coisa de como é que você pode contar histórias de
políticas públicas que levem a uma melhoria das relações de
direitos humanos ”,afirma Coelho,dando um exemplo:“Como é que se
resolve o problema da Febem,onde ocorre uma série de violações de
direitos humanos e toda vez que tem criança jogando criança pelo
telhado,o jornalismo corre para lá,porque trabalha com a
conseqüência,não com o processo?”,analisa..37 Manual de Mídia e
Direitos Humanos A importância e os obstáculos para a cobertura de
políticas públicas na televisão Esta dificuldade do jornalismo
atual,segundo Coelho,impe- diria a qualificação da cobertura dos
direitos humanos,numa resposta à pergunta de Mônica Teixeira,no
início da conversa. “É muito difícil para o jornalista cobrir a
história de processo da política pública porque ela não tem muito
atrativo,e essa é a questão que a gente vai tentar descobrir.É
complicado,porque o jornalista descobriu que o que interessa ao
público são nor- malmente notícias que têm a ver com
morte,catástrofe,des- truição,sexo ou emoção – com dor ou com
vitória,,e ponto.” O desafio,como mostrou Coelho,está em como
despertar o interesse das pessoas.Segundo ele,cobrir violação de
direito humano é fácil para o jornalismo,mas “como é que você
dis- cute isso antes de forma agradável ou palatável para atrair as
pessoas para a discussão?(...)O problema é o veículo eletrônico de
comunicação de massa.Como é que você aprofunda e ante- cipa
questões complicadas de serem contadas,como questões de políticas
públicas?Até porque jornalistas,ao discutirem uma política pública
oriunda de governo,não gostam.Jornalista é contra governo a
priori,desconfia,seja ele qual for.E isso pre- cisa mudar porque ele
precisa olhar para dentro e ver qual a política pública e
discutir.Acho que o avanço vai vir se a gente trabalhar nesse sentido
”,conclui. O jornalismo teme afrontar o senso comum e as falácias
dos dis- cursos governamentais? Para Renata Lo Prete,ombudsman da
Folha de S.Paulo entre março de 1998 e março de 2001,a questão da
violação dos direitos humanos,especificamente nos veículos
impressos, não é ainda um ponto pacífico,como apontou Marco Anto-
nio Coelho,com relação à televisão.“A Folha tem uma preocu-
pação editorial antiga com a divulgação desses assuntos e,no que
diz respeito à questão da violação,a política antiga é um.Manual
de Mídia e Direitos Humanos 38 pouco mais de destemor,de você bater
de frente com o senso comum ”,afirma Lo Prete.“Então acho que é
uma questão com- plicada e que valeria a pena a gente discutir aqui
se o jornalismo se mostra cada vez mais tímido em afrontar o senso
comum, nessa questão de violação dos direitos humanos.Acho que isso
é particularmente visível ”,completa. A jornalista utiliza o
exemplo do caso do crime em Santa Tereza, no Rio de Janeiro,em que uma
mulher foi violentada e cruel- mente morta e um dos acusados apareceu
enforcado na cela em que estava,havendo controvérsias sobre como ele
morreu.“Evi- dentemente,ninguém sabe,nem saberá ao certo,o que
aconte- ceu com o sujeito preso lá,o enforcado.Mas a gente pode
dizer, sem muito medo de errar,que essa é uma daquelas histórias no
mínimo nebulosas,e acho curioso a gente parar para perceber como os
veículos trataram do assunto.(...)Até onde eu vi,a Folha foi o
único jornal que deu capa do caderno Cotidiano para a notícia de que
o sujeito tinha se enforcado,morrido.Porque nos outros veículos essa
questão apareceu de uma maneira mais lateral, num segundo título,uma
informação no meio da matéria,um complemento.Você percebe
claramente que os veículos acham que não é caso de discutir essa
questão,porque se você discutir a questão,você vai estar,de alguma
maneira,afrontando o pen- samento da maioria,ou de uma parcela muito
considerável dos leitores que acham que,seja lá o que aconteceu com
o sujeito na prisão,foi mais do que merecido.As pessoas não vêem
este tipo de ocorrência como um sintoma de que há problemas no
Estado.” Guilherme Amorim,presidente da Comissão de Justiça e Paz,
observa que a pauta dos movimentos de justiça e direitos huma- nos no
Brasil está muito voltada à implementação dos direitos
econômicos,sociais,culturais e ambientais.Ele se refere ao Pacto de
1966 -ratificado pelo Brasil em janeiro de 1992 – o que significa
que os tratados passam a valer como norma de direito público interno.“Este
pacto internacional dos direi- tos econômicos,sociais culturais e
ambientais,como queremos hoje em dia,estabelece alguns deveres para o
Estado signatário,.39 Manual de Mídia e Direitos Humanos entre eles
o de implementar políticas públicas que vão ao encon- tro de uma
consciência moral internacional no ordenamento na sociedade
brasileira ”,explica. “Quais seriam esses valores ou quais seriam
esses direitos? Os direitos dos nossos indígenas,outras minorias
étnicas,do meio ambiente,desenvolvimento sustentável,de não haver
dis- criminação,questões de gênero,situação agrária,desenvolvi-
mento econômico próprio,trabalho e sindicalização,previdên- cia
social,descanso e lazer,família,saúde,alimentação,nutrição,
criança e adolescente,educação,saúde e moradia...é pratica- mente
uma pauta de governo ”,completa Amorim. Ele cita um relatório da
sociedade civil sobre o cumprimento pelo Brasil do Pacto Internacional
de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais,resultado de um trabalho
de ONGs.“É importante o fato de ele trazer um pouco o debate que
essas 2200 ONGs fizeram junto com as comunidades em que estão
inseridas,e revelar que hoje o grau de implementação dos deno-
minados direitos econômicos,sociais,culturais e ambientais é ainda
muito baixo no Brasil ”,relata. De governos,sobre isso,seria comum o
seguinte discurso: ‘Olha,eu sou um governante eleito e tenho
legitimidade para defender o que é prioritário ou não na minha
ação de governo, porque,afinal,fui eleito pela maioria dos votos.’“Qual
é a falá- cia desse argumento?”,questiona Amorim.“No caso do
Brasil, decidir se vai implementar ou não políticas públicas que
sejam voltadas para implementação de direitos econômicos,sociais e
culturais é mandatório,está recepcionado pela Constituição
Federal,então,esse argumento não existe,não pode ser aceito.”
Para Amorim,é importante a mídia entrar neste debate e não aceitar
determinadas posturas de governos,como já fazem as entidades de
direitos humanos..Manual de Mídia e Direitos Humanos 40 “A mídia
poderia contribuir neste sentido,se promovesse,da mesma forma que as
entidades de direitos humanos,um debate mais fácil,mais decodificado
para população de um modo geral, acompanhando a implementação dos
direitos econômicos,sociais e culturais,por meio de denúncias,por
exemplo ”,afirma. Mônica Teixeira pergunta:Na prática,como a
questão da implemen- tação dos direitos econômicos,sociais e
culturais precisa ser colocada? Sistematizando a divulgação de
conteúdos,como o relatório citado acima e que obteve pouca
repercussão na mídia.“De uma maneira geral,não está no
jornalismo.A não ser quando se cria um fato político,como a vinda do
Relator das Nações Unidas para esse assunto,que vem e entra em
repartições ofi- ciais sem poder ser barrado e constata as
violações.Isso acaba tendo uma divulgação,mas não de uma maneira
sistematizada, ou mais apropriada,dentro de contextos ”,afirma.“Imagino
que isso possa ser feito,com um esforço das entidades de direi- tos
humanos em se aproximar do jornalismo e,ao mesmo tempo,um esforço dos
jornalistas em se aproximar das entida- des de direitos humanos.”
Marco Antonio Coelho retoma a idéia de que diante de uma maior
complexidade do “objeto direitos humanos ”,ilus- trada por
Amorim,as coberturas ficam mais difíceis.“Vocês não achem que o
jornalista seja diferente das outras categorias, das pessoas que
trabalham cotidianamente,meio que mecani- camente.Eles trabalham meio
que mecanicamente também, então,vão ter que pensar de novo,que
estudar ”,afirma. Renata Lo Prete também aposta em melhorar a
qualificação do jornalista para melhorar o jornalismo na questão
dos direi- tos humanos.“A questão não é o espaço,mas como
qualificar a cobertura.A cobertura pode ser qualificada se houver uma
preocupação de qualificar o jornalista ”,afirma.Ela cita como
exemplo a entrevista com o Capitão Rodrigo,ex-integrante do BOPE,publicada
pela Revista Trip.A entrevista a que se refere.41 Manual de Mídia e
Direitos Humanos Renata trouxe informações que nunca tinham
aparecido nos grandes veículos. “Sei que a gente está falando em
direitos humanos,não espe- cificamente em violência,mas tem uma
interface entre os dois assuntos e,eu acho,que o exemplo pode
servir.Ele estava dis- cutindo qual é a política para subir no morro
e uma das críticas que faz é que,na opinião dele,sobe-se morro sem
objetivo defi- nido,sobe-se o morro para que a televisão registre.”
“É lógico que não é a primeira vez que esse cara fala,[mas ]
nunca ele ou pessoas que tenham a dar esse tipo de contri- buição
apareceram na Folha.As fontes são sempre as mesmas. Não que sejam
ruins,muitas vezes são muito boas.Vou pegar aqui um exemplo do ILanud,como
o Túlio Kahn [coordena- dor de pesquisa da agência ].Ele saberia
explicar para o jorna- lista da Folha ou de outros veículos coisas
que o jornalista está surdo para ouvir e,então,a despeito do Túlio
ser fonte cons- tante em matérias sobre violência,a Folha e outros
jornais con- tinuam fazendo toda a sorte de distorções ao tratar de
números de violência.O Túlio pode explicar para um jornalista que
é um absurdo,por exemplo,comparar a taxa de violência do Jardim
Ângela com a taxa de violência da Colômbia.Não faz sentido,é uma
impropriedade,um mecanismo causador de alarme e não tem fundamento
estatístico.Mas o jornalista vai até o ponto de pegar aquela frase
forte do Túlio e não aprovei- tar o que ele tem para dizer ”,analisa
Renata. Sua motivação para defender iniciativas de qualificação
para o jornalista passa pela necessidade de se ampliar o leque de
fontes ouvidas e também de capacitar o jornalista a trabalhar com
números,com relatórios.“Muitas vezes o relatório veio de fora e
é colocado na primeira página.Se ele vai para fora,volta para a
primeira página.As próprias pessoas que fazem o jornal, que fazem a
revista,não se dão conta de que muitos daqueles números do
relatório internacional o próprio jornal diz que já deu.Aquelas
conclusões já foram veiculadas de uma maneira.Manual de Mídia e
Direitos Humanos 42 muito mais discreta e não tinham impressionado o
jornalista antes,porque não tinham saído em um relatório de fora.”
Do ponto de vista de Jair Borin,professor do departamento de
jornalismo da ECA-USP,não cabe só às escolas de comunicação e
seus cursos de jornalismo a tarefa de formar melhor o profissio- nal
que vai para o mercado.“Há limitantes dentro dos cursos, como a
carga horária fixada pelo Ministério e o rol de disciplinas que têm
que ser automaticamente oferecidas dentro dos currícu- los.Mas cabe
sim às redações também complementar essa for- mação ”,afirma
Borin.Segundo ele,o problema atual é estarmos vivendo “a apologia
do jornalismo de mercado ”.“Nele,tudo é pautado em função de
uma mercadoria chamada jornal,então, oferece-se um produto de baixa
qualidade,do ponto de vista jor- nalístico,com informações
precárias.Mas,se aquilo tem pontos de freqüência de audiência mais
elevados que os do seu concor- rente,aquela fórmula primária passa a
prevalecer,pois garante mais anunciantes ”,critica o professor.
RECOMENDAÇÕES Informar quem precisa de informação,em uma sociedade
com jornais elitizados A começar pela distribuição dos jornais
diários para a popu- lação brasileira,exemplo utilizado pelo
jornalista e professor da USP:“Cinqüenta para cada grupo de
mil,enquanto na Argen- tina há cem para cada grupo de mil,nos Estados
Unidos são duzentos e cinqüenta para cada mil,no Japão são
quinhentos para cada mil pessoas.Estamos numa sociedade em que os jor-
nais são elitizados,a mídia impressa é muito elitizada.” Uma
revista como a semanal Veja,segundo Borin,orgulha-se por vender um
milhão de assinaturas e duzentos mil nas bancas, dos quais 80%são
para classes A e B.“Essas classes não pre- cisam ser informadas
sobre os direitos humanos ao meu ver, porque já têm matrizes
estereotipadas sobre os direitos huma-.43 Manual de Mídia e Direitos
Humanos nos.Você informa as mesmas pessoas que já estão informadas
e não informa quem precisa de informação.” Borin identifica aqui
o que para ele é o grande nó da questão jornalismo e direitos
humanos:“As pessoas que mais têm seus direitos humanos restringidos
estão na periferia.São pessoas de baixa escolaridade e que no Brasil
são a maioria da população. Não são consumidores potenciais de
mídia impressa.” Restaria para as classes mais baixas,segundo Borin,a
mídia eletrônica,cujos rumos são definidos pelo Ibope e não pela
qualidade do que é veiculado.A grande parcela da população torna-se
mera consumidora do lixo que vende bem.“As classes baixas não têm
ainda um peso suficiente para mudar a com- posição do noticiário em
respeito a elas mesmas.Não são um agente atuante e forte,a ponto de
determinar a pauta.” Para ele,entretanto,é possível romper o curso
único da imprensa do espetáculo e do lucro com as questões importan-
tes de um jornalismo mais comprometido com o cidadão,por meio de uma
dinâmica social que já está agindo em ONGs e outros setores
organizados da sociedade.A imprensa alternativa entraria neste
contexto. Incluir a disciplina de direitos humanos na grade curricular
Para Jair Borin,jornalistas mais bem qualificados nas redações
contribuiriam para uma abordagem melhor da questão dos direitos
humanos,que depende também de uma compreensão mais rica da sociedade
brasileira,que nem sempre acompanha o recém-formado.Uma
idéia,segundo o professor,seria discutir a inclusão da disciplina
direitos humanos na grade obrigatória. “Na relação entre direitos
humanos e imprensa há uma comple- xidade que se remete diretamente à
composição da sociedade brasileira.Não dá para esquecer em
qualquer avaliação que nós estamos em uma sociedade desigual ”,explica..Manual
de Mídia e Direitos Humanos 44 Regulamentar as rádios comunitárias
Borin defende ainda uma pressão sobre o governo para que ele
regulamente as rádios comunitárias.“Hoje,a legislação tem seus
limites e falta um incentivo para que elas cumpram um papel
efetivamente comunitário junto à população de baixa renda,junto à
criança e ao adolescente,para que seus direitos aflorem com mais
força.” Aprender com os casos emblemáticos Jair Borin fala de
casos emblemáticos,aqueles que servem de exemplo para uma série e
que exigem as mesmas ações do poder público para serem
solucionados.Um exemplo:crime do Bar Bodega. O cenário foi um bar de
classe média alta em São Paulo,onde assaltantes mataram uma cliente.“O
delegado que assume o caso é cobrado para dar resultados
imediatos.Ele tortura três ou quatro jovens da
periferia,pobres,negros e sem instrução, joga para imprensa,a
imprensa aceita a sua versão e divulga ”, relembra Borin.“Quando
o promotor envolvido no caso,do Ministério Público,assume e vê que
houve tortura,não aceita a denúncia,remete novamente para ser
apurado.O editorial do Estadão condena a atitude do promotor,por ser
conivente com a,digamos,não punição.O promotor teve que assumir
inclu- sive esse desgaste junto à imprensa.Não houve nenhum grande
órgão que saiu em sua defesa,que assumiu o risco.Depois que o autor
dos tiros estava preso e já tinha confessado,bastou um delegado um
pouco mais competente para fazer um rastre- amento e levantar os
verdadeiros autores daquele crime.” Sensibilizar os “patrões ”
da mídia Mais atores teriam papéis fundamentais em um esforço cole-
tivo de mudança para que a mídia pudesse colaborar mais com a
construção dos direitos humanos na sociedade.“Temos que.45 Manual
de Mídia e Direitos Humanos caminhar para mudar não só o
jornalista,mas também os res- ponsáveis,donos ou diretores,dos
grandes jornais,dos gran- des jornais eletrônicos,sobretudo.Eu acho
que quando você muda a pauta ou o enfoque da pauta no jornal
eletrônico,está fazendo um grande bem para toda a questão dos
direitos huma- nos no Brasil.Infelizmente,neste país o povo só vê
TV e ouve rádio pela manhã ou no horário de pico e não vê outro
meio ”, afirma Borin. Marco Antonio Coelho concorda com a
necessidade de mudança e ilustra com um exemplo:“Outro dia apareceu
o Secretário da Segurança,chamou todos os diretores de jorna- lismo
e disse:‘gente,dá para não divulgar seqüestro,porque o
seqüestrado pode morrer.O que vocês acham?’Se lembrarmos do
passado,ninguém falava disto,mas a Globo,por exemplo, agora tem
política de dar seqüestro,e este exemplo ilustra bem a questão.O
Secretário não queria pedir nada,ele queria discu- tir:‘dar ou
não a notícia do seqüestro,voz ao bandido,o deslo- camento de
tropa.O GAT quando vai à rebelião vai para matar. Se o bandido sabe
que o GAT se deslocou,ele pode matar um refém.Então,por favor,isso
mais para veículos eletrônicos...’ E aí o negócio virou.A
política do veículo é divulgar seqüestro, o negócio do bandido
não sei,mas isso vende.Então chegou-se à conclusão de que era
melhor conversar diretamente com o Sílvio Santos,com o Roberto
Marinho,pois no dia em que tiverem uma filha seqüestrada [e Silvio
Santos de fato teve sua filha seqüestrada alguns meses depois,em
agosto ],vão enten- der do que se está falando.A discussão chegou
nesse ponto, em momentos que os donos de veículos é que
funcionam,eles baixam uma ordem e pronto.O Mesquita baixa uma ordem no
Estadão e nem depois que a Globo divulga um seqüestro o Estadão
dá.É uma política do jornal:tem coisas que só quem determina é o
patrão.”.Manual de Mídia e Direitos Humanos 46 Assumir
responsabilidades,definir papéis e inverter as pautas Mônica
Teixeira,todavia,alerta para o perigo da ilusão de que donos de
empresas jornalísticas se sensibilizem para os temas que estamos
tratando aqui.Por isso,para ela,a “tocha ” ainda está nas mãos
dos jornalistas,aqueles que deveriam se esforçar para compreender
melhor a sociedade e seu funciona- mento e não deixar de sentir
perplexidade diante da vida. Reconhecer responsabilidades e assumi-las
seria um bom começo também para atores envolvidos na questão dos
direitos humanos.Uma sugestão da jornalista é que a sociedade tente
fazer as coisas acontecerem não para a imprensa,mas porque elas de
fato aconteceram.“A idéia de que o que não está na mídia não
está no mundo é uma idéia falsa ”,afirma Mônica. Essa confiança
em si mesma que a sociedade civil deve tentar recuperar poderia
provocar uma inversão de valores e conseqüentemente de
pautas.Levaria os profissionais da mídia, quem sabe,a repensar sua
atuação e partir para uma melhor quali- ficação.“A imprensa e os
jornalistas precisariam refletir não sobre o que eles fazem,mas sobre
o papel,que cada vez mais é visto como central pela sociedade,dos
próprios jornalistas ”,diz Mônica. Segundo ela,é comum as pessoas
esperarem que a imprensa mude o que não está a seu alcance,ou faça
o que não pode fazer.Marco Antonio Coelho concorda.“Sou contra,por
exem- plo,a postura de que a imprensa tem que ser agente político. A
imprensa não é o agente que reivindica efetivação dos direi- tos
humanos,mas é o que notícia quem o faz.O agente bata- lhador para
pacto cumprido tem que ser a ONG,o Ministério Público ”,exemplifica.“A
gente não tem que idealizar o jorna- lismo porque acaba não olhando
coisas menores que poderiam ser feitas e que talvez tivessem um ganho
”,completa Mônica..47 Manual de Mídia e Direitos Humanos Fazer
oficinas de formação em direitos humanos Um exemplo disso,para
encerrar a conversa,parte de Gui- lherme Amorim:“Cabe um pouco a
nós,entidades de direitos humanos,talvez fazermos uma reflexão sobre
como poderíamos engendrar uma oficina de formação em direitos
humanos para os jornalistas,ou para o pessoal que trabalha com
imprensa. Montarmos uma lista de prioridades,em cima do que a gente
chama de sistema de proteção dos direitos humanos,para tentar
formular um pouco essa massa crítica.”.Manual de Mídia e Direitos
Humanos 48
|