A relação entre a mídia e as autoridades em questão de direitos humanos

 A relação entre autoridades e a mídia em questões de direitos Desde os primeiros momentos da discussão realizada na sede da Fundação Friedrich Ebert,na manhã de 4 de maio 2001, ficou claro que a cobertura jornalística de temas ligados a direi- tos humanos só vai melhorar na proporção em que a formação dos jornalistas tornar-se mais qualificada.O tema do encontro, o terceiro de uma série de quatro realizados com o propósito de obter recomendações a serem transmitidas à Secretaria Nacio- nal de Direitos Humanos do Ministério da Justiça,era a relação.Manual de Mídia e Direitos Humanos 26 entre autoridades ligadas aos direitos humanos e profissionais de imprensa.Se destes espera-se mais conhecimento do assunto, das autoridades pede-se maior abertura e transparência. De secretário de Estado a repórter de editoria de polícia de jornal popular,seis debatedores ocuparam as cadeiras da mesa de discussão.Participaram do debate o Secretário de Segu- rança do Estado de São Paulo,Marco Vinício Petrelluzzi;o assessor de imprensa da Secretaria de Administração Penitenci- ária,Rivaldo Chinem;o Juiz de Direito do Tribunal de Alçada Criminal,Antonio Carlos Coltro;a procuradora do Ministério Público Federal,Luíza Frischeisen;o jornalista do Conselho Editorial da Folha de São Paulo,Gilberto Dimenstein e o repór- ter de polícia do Diário Popular,Dimas Marques. A largada para a discussão foi dada com uma pergunta que o mediador Oscar Vilhena,secretário executivo do Insti- tuto Latino-americano das Nações Unidas (ILanud),dirigiu a Petrelluzzi:como a autoridade que comanda uma corporação de 120 mil homens armados na rua lida com o questionamento da mídia referente às violações de direitos humanos cometidas por este batalhão?A questão é ainda mais complexa quando se sabe que parte da população é favorável a essas violações. “Qual é o dilema que enfrenta o secretário da segurança quando ele é questionado sobre um ato de violação de direitos humanos muito candente que está sob sua autoridade?”,pergunta Oscar Vilhena. Os 120 mil homens que vão para a rua precisam,primeiro, receber mensagens da administração,e desta,segundo o secre- tário,eles ficam sabendo que não se admitem violações de direi- tos humanos.Petrelluzzi queixa-se:“Muitas ações legítimas da polícia são atacadas em juízo como sendo uma prisão ilegal, então você precisa tratar a questão para o seu público interno de forma que ele não se sinta desamparado.Quer dizer,que as forças policiais saibam que elas têm limites claros,que o.27 Manual de Mídia e Direitos Humanos governo tem um compromisso com as questões de direitos humanos,mas que apóia a ação legítima do policial.” Petrelluzzi admitiu que o dilema está em encontrar um equilí- brio entre entusiasmar o policial a desempenhar seu serviço de repressão ao crime e ao mesmo tempo conscientizá-lo de que precisa fazer seu trabalho respeitando os direitos humanos.A segunda questão,que se trata de resolver um caso de flagrante violação de direitos humanos,Petrelluzzi respondeu citando um exemplo ocorrido em fevereiro de 1999 em São Vicente (SP):policiais do batalhão policial local prenderam ilegalmente, torturaram e mataram três jovens –um menor de idade e dois adultos.Setores da sociedade levantaram-se para defender os assassinatos alegando que,afinal de contas,esse destino havia sido dado a bandidos. Nem por isso,segundo Petrelluzzi,os policiais envolvidos no episódio deixaram de ser punidos.“As pessoas às vezes podem sentir-se seduzidas a adotar posturas mais duras graças ao grande apoio que têm na população.Quando fazem bra- vatas,estão dando uma sinalização evidente para o público interno de que o caminho é diferente daquele que o governo quer aplicar ”,afirmou o secretário. Envolvido com ocorrências policiais levadas às redações dia- riamente,o repórter Dimas Marques observou que os profissio- nais devem desconfiar das versões registradas nas ocorrências, porque são muitas vezes maquiadas pela polícia,mas defendeu que isso seja feito com ponderação.Para Dimas,a principal difi- culdade para uma cobertura equilibrada começa pela formação dos jornalistas.São justamente os repórteres iniciantes e mais inexperientes que acabam destacados para as coberturas de cida- des e polícia dos jornais. O comportamento de mídia e autoridades recebeu outro enfoque na fala da procuradora Luíza Frischeisen.Ela se referiu ao episódio do preso dado como enforcado numa delegacia do.Manual de Mídia e Direitos Humanos 28 Rio de Janeiro,no início de maio.O autor confesso de estupro seguido de morte no bairro carioca de Santa Tereza foi detido em um dia e,no dia seguinte,apareceu enforcado.A polícia disse que ele se suicidou.Embora pareça evidente a impossibi- lidade de o preso suicidar-se dentro da delegacia,Luíza não cri- tica o fato de que mídia e autoridades tenham aceitado,sem contestação,a versão oficial de suicídio. “É como se todas as pessoas dissessem em conjunto:não,nesse caso ninguém está interessado em saber se ele realmente suici- dou-se,enforcou-se ou se foi morto,porque o crime que ele cometeu foi bárbaro.É como se houvesse o castigo,uma pena de morte indireta,defendida por grande parte da sociedade. Esse caso precisa fazer a gente pensar.Ou se defendem direitos humanos para todos,inclusive para os que cometeram crimes bárbaros,ou se está a defender a pena de morte ”. Outro episódio que revela uma postura de condescendência da mídia e de autoridades com um crime aos direitos humanos foi lembrado por Petrelluzzi.O rapaz que seqüestrou o ônibus no Jardim Botânico,Rio de Janeiro,no ano passado (2000), saiu sem nenhum ferimento do local do crime,onde foi preso, e chegou no hospital morto,por asfixia.A sociedade,o que inclui imprensa,autoridades e cidadãos comuns,comportou-se como se esse assassinato fosse normal,a conseqüência natural do crime cometido pelo sequëstrador. “Formação profissional de jornalistas especializados em direitos humanos:solução?” O jornalista Gilberto Dimenstein reconduziu a discussão a um pressuposto básico,que é o da cobertura jornalística em si.Segundo ele,não há diferença entre cobrir política,cultura, economia,esportes,música,teatro e direitos humanos.O pres- suposto elementar em todos os casos é de que a cobertura tenha o máximo de objetividade possível.“Assim se trabalha na acare- ação do Antonio Carlos Magalhães no Senado,na CPI da cor-.29 Manual de Mídia e Direitos Humanos rupção ou no caso do Rodoanel.Não há o que inventar nesse quesito ”,afirma Dimenstein. O que se pode fazer diz respeito à formação do profissional. Historicamente,os repórteres de política eram os mais bem pagos e prestigiados nos jornais.Dessas editorias resultaram grandes nomes do jornalismo e até da literatura brasileira.A situação mudou a partir da década de 70,com o crescimento do país e a criação do jornalismo econômico.Os profissionais dessa área passaram a ser mais bem pagos e a receber treina- mento para falar de velocidade da moeda,balança comercial, balança de pagamento.As entidades financeiras passaram a ministrar cursos de capacitação.O próprio Banco Central inves- tiu na formação de jornalistas de economia. Neste quadro,o repórter policial continuou sendo conside- rado o analfabeto da redação e ainda suspeito de ligar-se a esquemas de corrupção policial.Os livros de Nelson Rodrigues desenham bem o perfil desse profissional.E os assuntos de área social,como educação e saúde,eram relegados às estagiárias. Ou seja,as áreas em que há questões ligadas a direitos humanos sempre foram desprestigiadas na imprensa. “O fato é que a excelência da cobertura corresponde à demanda do mercado ”,continua Dimenstein.No caso da edu- cação,a partir do momento em que o tema passou a ser mais importante para a sociedade,surgiram revistas especializadas no assunto.E,se a cobertura está vinculada ao crescimento do tema na sociedade,é preciso lembrar que a sociedade brasileira encara as prisões,por exemplo,como um instrumento de vin- gança,e não de recuperação. Nesse momento,o jornalismo vive uma fase intermediária. Na ditadura,era mais fácil cobrir direitos humanos;bastava ver os casos de tortura ou de censura.Hoje está mais difícil.E aí se encontram os jornalistas,sem saber o que é preciso estudar para cobrir direitos humanos.Essa lacuna pode ser preenchida.Manual de Mídia e Direitos Humanos 30 a partir de uma proposta apresentada por Dimenstein e desen- volvida no final desse texto. “O que se espera das autoridades envolvidas com esse tipo de assunto?” Esse tópico gerou opiniões divergentes.Antonio Carlos Coltro, juiz de direito do Tribunal de Alçada,acha que os juízes não devem dar entrevistas sobre casos que estão sob sua responsabi- lidade,nem os promotores devem pronunciar-se quando estão acompanhando um processo.A procuradora Luíza Frischeisen tem uma posição diferente.“Eu divulgo minhas peças desde que não haja sigilo fiscal ou que o processo seja sigiloso ”,opinou. Promotor de carreira,Petrelluzzi lembrou que todo cidadão em função pública deve prestar contas publicamente do que faz.Como secretário,porém,ele se ressente de declarações do Ministério Público que têm a força de uma sentença.Oscar Vilhena reforçou a queixa de Petrelluzzi lembrando que o Minis- tério Público tem sido encarado pela imprensa como uma fonte inquestionável,quando,muitas vezes,seus membros são viola- dores de direitos humanos. “Uma das violações sistemáticas que se tem na relação mídia com autoridade é a exposição daquele que ainda não foi condenado. Isso se faz de maneira ambígua,porque aqueles que deveriam ter como valor principal a proteção desses direitos,quer dizer,o Minis- tério Público,é o campeão em expor as pessoas antes de que elas sejam condenadas.Isso causa danos muito grandes.Gostaria de introduzir esta discussão.” A questão da Fundação Estadual de Bem-estar do Menor (Febem)serviu de exemplo.Um dos casos conhecidos foi de um promotor que internou na Febem um menino que havia cometido apenas um furto.Na instituição em que deveria ser recuperado,o garoto teve a mão decepada.Vilhena lembrou que os promotores vivem superlotando a Febem de menores..31 Manual de Mídia e Direitos Humanos Por outro lado,poucas vezes o Poder Judiciário é cobrado por não cumprir uma de suas funções fundamentais,que é a de fiscalizar o sistema penitenciário.“Como é que essas autorida- des (referindo-se a dirigentes de unidades como Febem e até da polícia militar)assumem toda a responsabilidade por essas violações e não trazem para a arena as outras autoridades judi- ciais e o Ministério Público?”,questionou Vilhena.“Eu nunca vi um secretário de administração penitenciária falando para os jornalistas fazerem a pergunta ao juiz da execução,que é quem não faz com que as pessoas saiam no devido tempo.” Talvez a resposta esteja numa colocação anterior em que o juiz Coltro definiu a existência de uma contracultura de direitos humanos entre as autoridades brasileiras.“Da mesma maneira que existe uma cultura constitucional toda atrapalhada no país,também há uma contracultura de direitos humanos. Quando veio a Constituição de 1988 com o artigo 5 ºe todo aquele elenco de direitos fundamentais,houve uma reação de quem não entendia que não pode mais manter um cidadão preso porque ele é presumidamente inocente ”,exemplificou Coltro . Na visão de Rivaldo Chinem,assessor de imprensa de Secreta- ria de Administração Penitenciária e que no debate representou o Secretário Nagashi Furokawa,a Justiça no Brasil assume uma postura superior,de instância intocável.“É raro a gente ver ao vivo algum juiz falando nos meios de comunicação ”,observa Chinem.“E também o secretário da administração é um ex- juiz e ele não vai falar contra juízes por questão de delicadeza ou de conivência.” Incluído na mesa com a saída do secretário Petrelluzzi antes do término da discussão,o secretário de Comunicação Social da Polícia Militar de São Paulo,coronel Renato Perrenoud, defendeu também o fortalecimento de setores como as ouvi- dorias e corregedorias dos órgãos públicos para o amadureci- mento das relações com a imprensa.Ele acha que a dificuldade.Manual de Mídia e Direitos Humanos 32 de relacionamento da polícia com a imprensa é recíproca,e que a criação de setores de comunicação social nos órgãos de segu- rança pode minorar o problema. RECOMENDAÇÕES -Bolsas de estudo para capacitação de jornalistas especializados na cobertura de direitos humanos Seguindo o exemplo do que fizeram as instituições bancárias brasileiras,que deram cursos de formação aos jornalistas da área de economia a partir da década de 70,o grupo reunido neste debate concordou com uma proposta encaminhada por Gilberto Dimenstein de que as entidades ligadas aos direitos humanos no país ajudem as pessoas a formarem-se especialistas na cobertura de direitos humanos. A primeira idéia é o fortalecimento de um programa de trei- namento da Agência Nacional dos Direitos da Infância (ANDI) para educar jornalistas em direitos humanos.Uma das formas de contornar o problema é o fornecimento de bolsas para que as pessoas freqüentem cursos de quatro a seis meses,alguns on- line,outros com presença física.Esses cursos devem ser organiza- dos em combinação com os juízes.A ANDI poderia ainda ofere- cer um curso em parceria com a Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP),por exemplo,não apenas para jornalistas,mas também para militantes de organizações não-governamentais. Uma segunda preocupação é fazer com que as ONGs apren- dam como lidar com a mídia.Novamente os empresários servem de exemplo:eles recebem uma espécie de “media trai- ning ”,cursos em que são capacitados a lidar com a imprensa. As ONGs precisam saber vender uma notícia.Às vezes,elas têm um assunto interessante mas não sabem como apresentá-lo. Isto significa analisar antes o veículo para o qual o tema vai ser oferecido e pensar como é que tal jornal daria essa matéria.Em seguida,fazer uma comparação e pensar como ela entraria na revista Claudia,por exemplo..A outra medida aproxima-se mais da solução do problema porque passa por dar treinamento de direitos humanos na gradu- ação em jornalismo .Neste caso seria um curso mais longo,de oito meses,quem sabe um mestrado ou um curso de especiali- zação numa faculdade de ponta,como a Pontifícia Universidade Católica (PUC-SP)ou a Universidade de São Paulo (USP). A partir do momento em que se mostra aos estudantes como funciona o Poder Judiciário,pode-se esperar que partam dos profissionais pautas mais sofisticadas.Cabe à imprensa, sabendo como funciona a lei,ouvir quem diga,por exemplo, que o enforcamento realizado na delegacia do Rio de Janeiro é pena de morte.O jornalista só precisa saber a quem procurar para fazer essa análise. 

 

 

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