Direitos humanos e mídia de entretenimento 

Há limites para o que mostra a televisão?

Qual a relação entre sensacionalismo, ética e violação de direitos humanos?
Apresentamos aqui algumas reflexões em torno destes temas que motivam estudiosos,  advogados e jornalistas a buscar novas alternativas que levem as emissoras de televisão a assumir sua responsabilidade sobre o que veiculam e de fato cumprir o compromisso de informar, entreter – e não agredir.

Será que as televisões do Brasil enxergam os telespectadores como cidadãos do Estado 

O primeiro dos quatro debates do Projeto Direitos Humanos e Mídia foi realizado na manhã do dia 24 de abril de 2001, na sede da Fundação Friedrich Ebert-ILDES, em São Paulo.Participaram o jornalista Eugênio Bucci, pesquisador da USP, secretário editorial da Editora Abril e integrante da ONG Tver;Gil-berto Nascimento, editor de educação na Revista Istoé;a procuradora do Estado Vera Nusdeo, também do Tver e a promotora aposentada do Ministério Público Estadual Inês Buschel,  atuante no Movimento pelo Ministério Público Democrático e colaboradora do Correio da Cidadania.

Os diretores de programação da Rede Record e do SBT, emissoras de programas que constantemente são alvo de críticas por aviltar direitos humanos, foram convidados para o debate mas não compareceram. Luís Armando Badin,  advogado e membro do Centro de Direitos debatedores vieram para a reunião com o intuito de discutir direitos humanos e mídia de entretenimento.Esta expressão.Manual de Mídia e Direitos Humanos 6 designa todo o conteúdo veiculado na televisão e no rádio cujo objeto não é jornalístico.

São exemplos:as novelas;os programas dominicais,  como Domingão do Faustão, na TV Globo e Domingo Legal, no SBT;

programas infantis em geral etc.

 Das intervenções, um consenso foi possível:o Brasil precisa de um órgão regulador da mídia, que estabeleça mecanismos de defesa dos cidadãos toda vez que algum direito difuso for aviltado.O primeiro a defender essa tese foi Eugênio Bucci, que esclareceu que as opiniões que emitiria durante o debate seriam de sua exclusiva responsabilidade,  nada dizendo sobre posições da Editora Abril.

O jornalista alertou para a existência de um limite tênue entre controle de qualidade e censura. O estabelecimento de uma autoridade pública incumbida de ver previamente a programação a ser exibida para depois decidir se a sociedade tem ou não direito de ver tal programação é indesejável.

A questão foi colocada em função da referência feita pelo advogado Luís Armando Badin ao filósofo austríaco Karl Popper,  autor do livro “Televisão:um Perigo para a Democracia ”. Popper defendia o controle rígido dos meios de comunicação social através de uma lei. Outro filósofo citado foi o brasileiro Renato Janine Ribeiro, autor de um artigo no qual afirma: “A esperança talvez esteja em algum promotor destemido,  algum promotor de justiça,  que a exemplo dos seus colegas que irritam os políticos,  cobrem dos canais que respeitem a Constituição, o público e os direitos humanos. 
”Partindo dessa idéia,  Badin dirigiu aos jornalistas a seguinte interrogação: 

“Os jornalistas encaram de forma esperançosa a intervenção do Estado na mídia para coibir o sensacionalismo que viola direitos humanos?”.

 Manual de Mídia e Direitos Humanos Eugênio Bucci lembrou que não há como controlar um programa como Domingo Legal ,  de Gugu Liberato,  sem resvalar na censura, esta entendida como uma escala intermediária entre a liberdade de expressão e o direito de informação.Para não cair numa arma da qual o regime ditatorial abusou no país, há um caminho alternativo.O filósofo Popper defende que as pessoas que trabalham no meio de comunicação de massa deveriam estar subordinadas a um juramento, e os concessionários dos meios de comunicação deveriam estar subordinados a um termo de compromisso.

Este termo de compromisso é que conteria inúmeras cláusulas que poderiam ser invocadas para punição dos abusos. Eugênio tem outra proposta, relacionada à possibilidade de atuação do Ministério Público democrático de um lado e, de outro, à presença hegemônica dos meios de comunicação de massa no espaço público brasileiro, uma presença que não se verifica com o mesmo grau de importância nos outros países. “Nas democracias mais avançadas há um contrapeso muito grande à presença da televisão comercial, dado pela tal mídia impressa, pelas televisões públicas.Nos Estados Unidos não há muita televisão pública, mas um controle da FCC (Federal Communication Comission) muito forte impede a concentração de capital e de poder, impede que se subverta a pluralidade pelo monopólio em determinadas regiões ”, revela Bucci. 

No Brasil não há órgão regulador.Por isso a solução aqui depende do Ministério Público.Tal solução talvez fosse a exigência de um direito de resposta quando algum direito difuso (direito de informação sobre os próprios direitos)fosse aviltado. Seria como abrir um esclarecimento a ser dado no ar cada vez que alguma violência, algum absurdo fosse cometido, por exemplo, em programas como os pilotados por Gugu Liberato ou Ratinho.“Os próprios apresentadores seriam obrigados a dar um esclarecimento no ar ”, conclui Bucci..Manual de Mídia e Direitos Humanos 8 “Uma questão central:por que os apresentadores de programas de televisão não respondem criminalmente pelo que veiculam quando cometem alguma afronta a direitos humanos, se os jornalistas respondem?” A questão foi proposta pelo jornalista Gilberto Nascimento.Os exemplos dados foram o de uma rebelião de internos da Fundação Estadual do Bem-estar do Menor (Febem)e o da rebelião do sistema penitenciário, ocorrida em 18 de fevereiro de 2001.

Na Casa de Detenção, em São Paulo, a ex-apresentadora de televisão Simony foi feita refém e a cobertura do fato teve grande repercussão.Na opinião de Nascimento, há rebeliões que são fabricadas por funcionários da própria administração penitenciária quando se quer questionar a posse de algum diretor mais ligado a direitos humanos, por exemplo.No caso, o jornalista referia-se à suspeita de que a produção do programa Domingo Legal teria sido avisada com antecedência de que a rebelião iria acontecer, pois caminhões do SBT foram vistos nos arredores da Casa de Detenção antes do início do incidente. A rebelião causou a morte de uma pessoa.

“Estranhei o fato de não ver reação de ninguém, das autoridades, da população. Isso aconteceu porque foi um preso que morreu, uma pessoa que,  provavelmente em função de delitos, de crimes que tenha praticado, não comoveu a opinião pública, não chocou, não deixou ninguém indignado.Afinal de contas, era um criminoso ”, observou Nascimento.“Eu não entendo porque nenhum procurador entrou com um pedido de explicações, de investigação.” Para Nascimento, é óbvio que apresentadores como Gugu Liberato e Ratinho, por exemplo, devem responder pelo o que fazem.O jornalista acredita que o SBT e seu apresentador mais famoso, abaixo apenas de Sílvio Santos, sejam responsáveis pela morte daquele preso.A quem mais responsabilizar dentro da emissora, é preciso investigar.Também se viu no episódio abusos que resultam do fato de as concessões de rádio e televisão no país serem dadas em troca de favores políticos.“O critério para se conseguir uma emissora de televisão ou uma concessão de rádio é votar a favor de projetos do governo.

As pes-.9 Manual de Mídia e Direitos Humanos soas que detêm o poder político em muitos estados ou cidades espalhadas pelo Brasil controlam tudo, todas as informações ”,  denuncia Nascimento. Em alguns casos, esse controle dá-se na forma da corrupção de profissionais de mídia.Nascimento diz ter obtido provas de que muitos radialistas, por exemplo, são assalariados de certos políticos, como Paulo Maluf. “Há alguma possibilidade de controle, a priori, impondo obrigações quando se fazem outorgas, concessões no caso do rádio e da televisão?” A resposta é sim, na opinião de Vera Nusdeo.“A definição a priori do que se espera de um concessionário de emissora quando ele se candidata acontece nos países mais democráticos. Lá, define-se que o operador precisa respeitar tais e tais princípios, bem como o tanto de programação educativa, informativa e regional que deve ser oferecida.” Na prática, a lei deve fixar os parâmetros, deixar as emissoras atuarem e, em caso de descumprimento, delegar a punição ao Ministério Público Federal.

A punição vai da multa à cassação da concessão, ou a não-renovação da mesma.Para tanto, cabe à sociedade montar um arcabouço jurídico.Tal arcabouço prevê inclusive a forma de como a concessão deve ser feita.O ideal é estimular a competição entre os interessados pela concessão de forma que a sociedade possa conhecer propostas de concessão para aquele determinado serviço e escolher a melhor.Esse modelo é algo semelhante ao que ocorreu na Inglaterra. 

Vera também respondeu a uma pergunta de Nascimento, que se mostrou indignado com o fato de que nenhum procurador entrou com alguma ação contra Gugu Liberato, por exemplo,  no caso da rebelião que se supõe ter sido fabricada em conjunto com uma ala dos detentos e que resultou na morte de um deles. A procuradora explicou que, da forma como está a lei hoje, não há como encontrar dentro do direito uma forma de punir..Manual de Mídia e Direitos Humanos 10 A título de analogia, Bucci mencionou o caso da legislação de acidentes de trabalho no País.Até os anos 30, o operário brasileiro caía de um andaime de um prédio que estava sendo construído e, legalmente, a culpa era dele.Quando se perguntava como é que ninguém fazia nada, esbarrava-se na mesma lacuna jurídica de hoje com relação aos desmandos da mídia: não havia leis no país que responsabilizassem os donos das construtoras pela segurança e vida de seus operários.

A partir do momento em que ficou definido que os empresários são os responsáveis pela segurança dos trabalhadores, o número de acidentes de trabalho começou a diminuir.O mesmo se deu com os crimes de desmatamento, por exemplo. No caso da mídia, não há necessidade de uma lei específica,  mas de uma modalidade de ação.Além disso, a regulamentação referente aos canais de televisão precisa ser atualizada.A lei brasileira é de 1962, com alterações feitas em 1967 e, na opinião de Vera, com viés autoritário.As obrigações são rasas, como a exigência para que se respeitem as cores da pátria.A Constituição também é frágil nesse aspecto.Um de seus artigos determina o seguinte:“O cancelamento da concessão ou permissão,  antes de vencido o prazo, depende de decisão judicial.”A lei não esclarece quem dá a decisão, nem quem a propõe. O outro artigo, ainda mais risível, define que “a não-renovação dependerá de aprovação de, no mínimo, dois quintos do Congresso Nacional, em votação nominal ”.

Que político, pergunta ela, tem coragem de expor-se hoje contra o poder de uma emissora sabendo que, no dia seguinte à votação, caso os donos da emissora não tivessem obtido a concessão, poderia ser retratado como um assassino diante de milhões de telespectadores? “Qual o papel do Ministério Público para reprimir eventuais excessos e evitar os abusos?” Para Inês Buschel, promotora aposentada do Ministério Público Estadual, todos os princípios necessários para reger as.11 Manual de Mídia e Direitos Humanos emissoras já estão previstos na Constituição Federal.Ela estabelece a prevalência de fundamentos seguidamente desrespeitados pelas emissoras, como dignidade e direitos humanos.A procuradora não discorda da necessidade de uma regulamentação,  mas lembra que o país já possui um Conselho de Comunicação Social, nunca instalado.Na forma como está na lei ele não tem função executiva, decisória ou punitiva.Ainda assim, Inês defende a sua instalação conforme prevista na lei 8.389, de 1991. Quanto ao Ministério Público, ela acredita que é necessário acabar com a ação por voluntarismo.Tem de haver um compromisso, como uma obrigação constitucional de defesa do regime democrático.

Por outro lado, Inês sustenta que, quanto mais forte a pressão da sociedade sobre seus membros, mais eficaz pode ser a ação dos integrantes do Ministério Público e do Poder Judiciário. Os vários passos do caminho que leva à construção de uma sociedade mais democrática. A lacuna causada pela falta de uma política pública de qualidade da mídia pode ser preenchida pelo órgão idealizado pelos participantes, cuja proposta de criação será apresentada em seguida. Tal entidade tem, na opinião de Eugênio Bucci, um papel capaz de colocar o Brasil num patamar social comparável ao dos países democráticos e desenvolvidos do mundo.Mas a solução da democracia no Brasil ainda depende de um avanço de fundo na sociedade brasileira, especialmente entre os empresários: “Precisamos impor limites à propriedade privada dos meios de comunicação.É questão de garantia de pluralidade de votos e uma questão de competição da ordem econômica.A confluência de vários meios potencializa a concentração.É antidemocrático.Os empresários precisam escolher que negócio ter.Nos Estados Unidos, uma emissora não pode ser produtora da maior parte dos conteúdos que transmite.Faz parte das leis antitrustes.

No Brasil, convive-se apenas com trustes.”.PROPOSTA – Criação de um órgão regulador Os participantes do debate do dia 24 de abril concordaram com a necessidade de criação de um órgão com representação da sociedade civil e que tenha poderes para fixar as normas que definem o número de horas de programação educativa, informativa e regional.Esse órgão faria a licitação, a escolha das concessionárias, acompanharia a execução da concessão, abriria processo administrativo e estabeleceria punições, da advertência à cassação.É possível, através de uma agência deste tipo,  estabelecer um contrato de concessão que garanta a existência de legislação específica para cada região.Aí entraria o Ministério Público protegendo os cidadãos. Esse órgão criado pelo Congresso não seria nem sequer uma autarquia;ficaria distante do Executivo.Criado por lei, responderia ao Congresso.Sua função final seria assegurar que tudo o que passa na televisão seja o mesmo que é possível de se ver na rua.Se não se pode andar sem roupas na rua, também não se deve exibir o nu na televisão da forma como tem sido mostrado. Na conclusão dos debatedores, chegou-se a um consenso:é preciso afrouxar os laços de poder que unem Executivo e empresários dos meios de comunicação.Ou seja, a situação só mudará quando as concessões de rádio e televisão deixarem de ser definidas por critérios políticos.Hoje, as concessões são dadas pelo Presidente da República e, em alguns casos, pelo Ministro das Comunicações. 

 

 

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